Nós e a tecnologia: uma faca de dois gumes

Em “O Caminho para Wigan Pier”, escrito nos anos 30, George Orwell profetiza: “no futuro, faremos ginástica para exercitar músculos que nunca usaremos”. Era o presságio de que a tecnologia serviria cada vez mais para facilitar a nossa vida e que a contrapartida é uma fragilização do ser humano. Embora Orwell faça o comentário em termos físicos, não é demais pensar que o mesmo se aplica em termos intelectuais.

Somos uma geração mimada pelas facilidades da tecnologia. Em termos comportamentais, o indicativo mais evidente desse processo é que nos tornamos extremamente intolerantes à frustração. Tolerância à frustração é um termo psicológico que descreve o quanto conseguimos lidar com o fato das coisas não serem como queremos. Se por um lado é maravilhoso que a tecnologia nos permita fazer coisas cada vez mais rápida e facilmente, por outro a tendência é que nos tornemos cada vez mais dependentes da tecnologia e impacientes frente às mínimas dificuldades.

O principal trunfo da fotografia digital foi permitir que as fotos pudessem ser visualizadas instantaneamente. As primeiras câmeras a se tornarem populares, as Kodak Brownies, precisavam ser enviadas de volta à fabrica para retirada do filme, revelação das fotos e recolocação de um negativo novo. Com o filme 35mm, o processo de revelação se tornou mais ágil, mas ainda era feito manualmente. Com os minilabs, as fotos finalmente passaram a ficar prontas rapidamente: em uma hora. Mas ainda assim, a tendência de aceleração continuou e hoje podemos ver as fotos antes mesmo de serem batidas, nos LCDs das câmeras compactas e celulares. Quando a Polaroid decidiu parar de fabricar suas câmeras e filmes instantâneos, um de seus executivos de marketing disse: “a Polaroid não vendia câmeras, vendia a possibilidade de ver as fotos na hora, que foi apropriada pelo sistema digital”.


moominsean

Isso faz com que tenhamos uma atitude em relação à fotografia – e, de certa forma, com a vida de forma geral – imediatista e perfeccionista. Não admitimos atrasos, erros, imperfeições. Queremos tudo, para agora, do jeito que esperamos. Até certo tempo, vivíamos muito bem com limitações que hoje seriam intoleráveis. Tínhamos que esperar três anos para assistir um filme na televisão depois de lançado no cinema. Lidávamos bem com o fato de não conseguirmos falar imediatamente com alguém no telefone. Não achávamos estranho ter que colocar manualmente a agulha sobre o disco de vinil para ouvir música. Planejávamos nossa semana de forma a não precisar fazer compras no domingo, quando estava tudo fechado. E achávamos que ter nossas fotos reveladas em uma hora era incrivelmente rápido. Prestávamos, também, menos atenção em se as fotos estavam com as cores equilibradas, cortes adequados, granulação…

Há quem argumente que a facilidades tecnológicas libertam o homem de tarefas menos importantes, deixando mais espaço para o desenvolvimento intelectual. Parece fazer sentido, mas será que esse desenvolvimento está acompanhando a tecnologia? Estamos, na média, nos tornando mais competentes intelectualmente ou apenas uma massa preguiçosa e impaciente?


Leanne Surfleet

Não quero dar a entender que “os velhos tempos é que eram bons”. Pelo contrário, havia coisas muito chata. Como, por exemplo, ter que comprar fichas telefônicas e usar orelhões. Não era possível optar pelo combustível que usaríamos nos carros nem conversar com parentes do outro lado do mundo sem gastar quase nada. O avanço tecnológico pode ser bom ou ruim, dependendo do uso que cada um faz dele. Acredito que se usamos as facilidades da tecnologia para melhorar a nossa vida e a nós mesmos, não há como dizer que isso é algo negativo. Mas se, por outro lado, nos deixamos acostumar com as facilidades e nos tornamos irriquietos, ansiosos e intolerantes com as menores dificuldades, algo está fora do lugar.

No caso da fotografia, o sistema digital propicia oportunidades que eram apenas sonhadas pelos fotógrafos que nos precederam. Podemos ter imediatamente o resultado de qualquer experiência. Podemos fazer um número virtualmente ilimitado de fotos sem nos preocupar com custos de filmes e revelação. Podemos aprender como controlar a câmera rapidamente. Com isso, a fotografia se tornou ainda mais fácil. Aproveitando essas possibilidades, qualquer um pode ser tornar um grande fotógrafo. Esse, pra mim, é um dos aspectos mais virtuosos do digital: a fotografia “séria” deixou de ser uma atividade elitizada, limitada por conta dos custos e dificuldades técnicas. A excelência está nos dedos de qualquer um – desde que haja dedicação e esforço.

Fotografia: tributo à impermanência

A psicologia diz que o ser humano, ao se comportar voluntariamente, o faz basicamente por dois motivos: obter consequências agradáveis ou evitar/fugir de situações desagradáveis. Cada ação humana, no entanto, é muito complexa e geralmente tem múltiplos fatores envolvidos. Mas as premissas básicas são essas. Não seria demais dizer que, em geral, passamos os nossos dias buscando prazer e fugindo da dor. Quando não conseguimos evitar as situações que nos incomodam, nos sentimos tristes e irritados.

Mas qual é a nossa tendência ao nos encontrarmos numa situação prazerosa, como estar com alguém querido, assistir a um bom filme ou contemplar uma paisagem visualmente estimulante? O movimento é de tentar perpetuar o momento, buscar garantias de que ele continuará ou se repetirá. É muito difícil simplesmente nos satisfazermos com a situação em si: preocupamo-nos com o futuro e com formas de fazer que ela, de alguma forma, dure para sempre. Na nossa cultura, somos lembrados disso o tempo todo. Consumimos desenfreadamente a fim de buscar a satisfação que, quando ocorre, dura muito pouco; na tentativa de perpetuá-la ou mantê-la, voltamos a consumir, num ciclo sem fim.


Justin De La Ornellas

Dentre os diversos aspectos da fotografia – ou, nesse caso, do fotografar – está justamente essa tentativa de manter as coisas como elas são num determinado momento especial. Quando viajamos, nos deparamos com diversos cenários que nos causam boas sensações, seja pelo espetáculo visual, cultural ou histórico. E tentamos levar um pouco disso conosco, através das fotografias. Quando estamos numa festa ou numa reunião de amigos, fotografamos, em parte, em função do desejo de manter um pouco da alegria que é se estar com as pessoas de quem gostamos.

Entretanto, nada dura para sempre. A forma de ser do mundo é a mudança, a finitude das situações, das relações e até mesmo da natureza em si. Ao nos darmos conta disso, chega a ser irônico que utilizemos um dispositivo que captura uma fatia ínfima do tempo – a câmera fotográfica – na tentativa de perpetuá-la. A fotografia, então, é tão antagônica à natureza de constante mudança das coisas que acaba reforçando a ideia de impermanência. Ao olharmos uma foto, ainda na câmera, no instante seguinte em que ela foi tirada, já podemos ver que aquilo já não existe mais. Cada fotografia torna-se, então, imediatamente, um tributo à impermanência daquilo que ela retrata. Não é à toa que alguns autores associam a fotografia com a morte: de certa forma, ela é um atestado de óbito, ainda que apenas de um determinado momento.

Não apague suas fotos (ou, pelo menos, espere um pouco)

Geralmente, quando fotografo usando filme preto e branco, peço apenas a revelação dos negativos, os quais escaneio em casa. Nesta última semana, no entanto, queria fazer algumas ampliações e queria acelerar o processo. Pedi, então, que o laboratorista fizesse folhas de contato para cada um dos filmes revelados. Pois bem, recebi os filmes e vasculhei rapidamente os contatos para escolher as ampliações. Para quem não sabe, no processo manual, os contatos são feitos colocando-se as tiras de negativos sobre uma folha de papel fotográfico, mais ou menos do tamanho de um A4. Ilumina-se a folha, que depois é revelada. No processo automático dos laboratórios comuns os negativos são escaneados e o “contato” é montado pelo software da máquina. Depois, no entanto, olhei as folhas com mais calma, o que me levou a algumas reflexões.

Primeiro, a constatação, que não tem nenhuma novidade, de como o filme é inexoravelmente cruel com os nossos erros. O contato mostra todas as fotos ml expostas, mal concebidas ou que simplesmente deram errado, por qualquer motivo. E, uma vez que na fotografia analógica não há o botão delete, o erro fica marcado para sempre. Mas há um aspecto muito interessante na observação de uma folha de contato, que é poder observar o seu raciocínio fotográfico – do qual os erros fazem parte – de forma completa. As tentativas, as alternativas, aquilo em que insistimos ou o que simplesmente desistimos de fazer. Como na fotografia, especialmente entre os iniciantes, há um mito de que você precisa acertar sempre, olhar para o processo que leva aos acertos pode ser útil para o aprendizado.

E aí, há muita controvérsia em relação ao que é melhor para se aprender, começar a fotografar com filme ou digital. Muitas escolas de fotografia ainda pedem que os alunos usem câmeras mecânicas. A contra-argumentação dos que defendem o aprendizado digital afirma, com propriedade, que ver o resultado imediato permite entender muito mais rapidamente o efeito das técnicas. E, de fato, isso parece difícil de rebater quando se fala do aprendizado técnico, mas quando se pensa no processo fotográfico mais amplo, envolvendo inclusive questões de estilo, a fotografia digital permite um hábito que pode ser prejudicial, apesar de parecer inocente: nós tendemos a apagar imediatamente as fotos que não ficam boas, perdendo, assim, a chance de vislumbrar o nosso raciocínio fotográfico por inteiro e dificultando o entendimento do processo. É claro que, caso se concorde com essa ideia, a questão é facilmente resolvível simplesmente não apagando as fotos.


Gustavo Gomes

Há uma tendência em se achar que o erro é uma falha no processo de aprendizado. Bem, isso é um erro. Os erros são tão ou mais importantes do que os acertos. É importante variar as formas de se tentar chegar em um determinado resultado. Isso leva à criatividade, à flexibilidade e, inevitavelmente os erros farão parte desse tipo de conduta. O indivíduo que não erra é provavelmente muito menos criativo e flexível do que aquele que erra.

Quando falo em aprendizado, não me refiro apenas ao aprendizado que leva a saber fotografar de forma tecnicamente correta, coisa que conseguimos com poucas semanas de treino. Aprendemos o tempo todo, a vida toda, em qualquer coisa que fazemos. Quando estamos tentando desenvolver um estilo pessoal, ou engajados num ensaio fotográfico, estamos aprendendo, acertando e errando o tempo todo. Isso nunca acaba. E me passou pela cabeça que talvez seja interessante ter o hábito de olhar para nossas folhas de contato. Mesmo que se fotografe com câmeras digitais, significa simplesmente olhar a série toda na tela do computador antes de descartar as que não interessa. Usar os erros para estudo pode permitir uma melhor compreensão do nosso raciocínio fotográfico, das nossas intenções e tentativas. Ficar com as fotos ruins na câmera e no computador por alguns instantes antes de mandá-las para a lixeira não nos matará – provavelmente.

Não me dê ouvidos

Um dos efeitos da revolução nas comunicações que vivemos hoje é que todos podem expressar suas opiniões mais livremente do que nunca e conseguirem diálogo e audiência de pessoas com quem, de outra forma, nunca teriam contato. Isso é um feito extraordinário e a marca da vida contemporânea.

Entretanto, ao mesmo tempo vivemos na era do “ter que”. O imperativo é o modo verbal característico do novo milênio, ordenando que façamos, que ajamos, que compremos. Isso se manifesta de forma muito clara na internet, onde sempre haverá dezenas de pessoas dizendo o que você deve fazer.

Suponha que você queira comprar uma nova câmera, ou fazer um curso de fotografia. Faça essa pergunta online e receberá uma enxurrada de respostas, todas dizendo claramente o que você deve fazer. O problema é que cada uma diz uma coisa, o que mostra que as pessoas não concordam tanto assim com o que é melhor para você. Alguma coisa deve estar errada, então. Continue lendo “Não me dê ouvidos”

Sim, a ficha está caindo

Ontem, o Eduardo Buscariolli indicou a leitura de dois posts de fotógrafos colaboradores da National Geographic Brasil. A NatGeo sempre foi vista como uma referência em fotografia, então é interessante saber o ponto de vista dos seus profissionais sobre o tema. Pois bem, no texto “Liberdade”, de Ivan Petterle, há o seguinte questionamento:

Sinto que existe um cansaço evidente na atual fotografia de caráter documentarista. Mostrar o exótico ou a beleza de coisas naturalmente belas, é na minha opinião, uma armadilha para cair-se na obviedade. Desperdiçamos, assim, uma possibilidade de se fazer imagens originais e criativas. É necessário libertar-nos de velhas e batidas fórmulas que apenas trazem tédio ao público espectador.

No outro texto, “Jornada fotográfica feita de ousadia e criatividade”, Roberto Linsker sugere: Continue lendo “Sim, a ficha está caindo”

E o Tri-X sobrevive

No início da década, quando a fotografia digital começou a aparecer no mercado, ela pouco competia com o filme, pois sua qualidade ainda era pífia quando comparada àquela obtida pela fotografia analógica. No entanto, ao longo dos anos, a evolução das câmeras digitais tornou o filme algo extremamente obsoleto, já que não só a qualidade se equiparou, como os preços de câmeras digitais caíram vertiginosamente. Por conta disso, muitos filmes deixaram de ser fabricados simplesmente porque não vendiam mais, já que quem os consumia em maiores quantidades – os profissionais – migraram para os sistemas digitais.

No entanto, um filme de 56 anos, preto e branco, ainda é um campeão de vendas, em pleno 2010: o Kodak Tri-X 400. Introduzido em 1940 em grande formato e ISO 200, em 1954 passou a ser comercializada a versão atual: ISO 400, em rolos de 35mm ou 120 (médio formato). O Tri-X é um filme com granulação clássica, rápido (para os padrões da fotografia analógica) e o preferido de muitos fotógrafos conceituados, em especial os documentaristas.

Em São Paulo, o Tri-X ainda é relativamente fácil de encontrar e os preços estão relativamente estabilizados. Na Chromur, eles vendem rolos rebobinados a R$ 17 cada e “originais”, na caixinha, por R$ 26 (preços de 22/10/10), enquanto na Capovilla o rebobinado sai a R$ 25. Um pouco salgado, considerando que nos Estados Unidos um rolo 35mm original sai por US$ 4. Se você tiver uma conta no PayPal e paciência, é fácil encontrar o filme no eBay por esse preço, inclusive em pacotes com 10 rolos a US$ 40.

Parênteses para quem não está familiarizado com o filme rebobinado: os filmes fotográficos, como o Tri-X, também são vendidos em rolos de 100 pés, contidos em uma lata. Nesse caso, é necessário rebobinar o filme para dentro dos cassetes e cortá-los, para utilização nas câmeras. Algumas lojas compram o filme em lata para rebobinar e vender cada cassete a um preço mais baixo que o rolo de 35mm original. Falo em “original” referindo-me ao que vem num cassete próprio, dentro da caixinha da Kodak, mas nos dois casos o filme é o mesmo. Geralmente não há problemas com o rebobinado e você ainda ganha umas exposições extras, já que ao rebobinar eles costumam deixar alguma folga. Já comprei filmes rebobinados que renderam 40 poses.

Diz-se que o Tri-X tolera bem ser puxado para ISO 800, sem necessidade de compensação na revelação, e para ISO 1600, com necessidade de ajuste no tempo de revelação. Caso você queira se aventurar a revelar o Tri-X, o tempo indicado para o revelador D-76 é de 6 minutos e 45 segundos a 20º (9 minutos de 45 segundos para D-76 com diluição 1:1 a 20º). Mais detalhes podem ser encontrados nessa tabela de tempos de revelação de filmes preto e branco da Kodak.

De tempos em tempos, quando quero obter nas fotos o aspecto PB característico do filme, ou quando acho que algum assunto é interessante o suficiente para mantê-lo num suporte físico, uso direto o Tri-X, como fiz numa série recente, Aikido. Abaixo, há uma galeria com fotografias feitas com o Tri-X e disponibilizadas no Flickr sob licença Creative Commons.

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Fontes:
Kodak
Wikipedia
The Online Photographer

Fotógrafos profissionais x iniciantes e amadores: uma questão de mercado

Tem sido muito comum ver fotógrafos profissionais reclamando da canibalização do mercado de serviços fotográficos por iniciantes ou amadores sem experiência que adquiriram recentemente câmeras digitais e acreditam que essa pode ser uma atividade rentável, uma vez que a fotografia de hoje não tem os mesmos custos evidentes da fotografia analógica. Geralmente, eles acusam os amadores de realizar serviços a preços muito baixos ou até mesmo de graça, em troca de crédito ou do direito de imagem para montar seus portfólios, sem perceber o quanto prejudicam uma atividade profissional já estabelecida e o quanto há de custos envolvidos. O quanto há de verdade nisso, e como lidar com a situação?

O primeiro problema é que a fotografia é, de fato, uma atividade que não requer prática nem habilidade: para sair fotografando basta ter uma câmera e apertar o botão maior. Qualquer pessoa pode oferecer serviços de fotografia sem o mínimo de experiência, sem ter nenhuma formação, estudo, cursos etc. É óbvio que muito provavelmente as fotografias feitas por esses “profissionais” serão de qualidade sofrível, mas como temos uma educação visual muito fraca, sempre haverá um mercado para isso. Mas é uma faixa de mercado que paga muito pouco (ou nada) e que não tem discernimento para valorizar a boa fotografia. Aquele cliente que quer pagar um terço do preço porque tem um sobrinho que acabou de comprar uma câmera e pode fazer o serviço muito provavelmente não pagaria o preço de um bom fotógrafo profissional de jeito algum e, por não ter discermimento entre a boa e a má fotografia, se pautará apenas pelo preço.

Um outro aspecto é a questão do custo. O fotógrafo amador acha que a fotografia digital não tem custo algum. É uma forma errada de ver o negócio, mas não acho que isso seja uma característica específica desse tipo de atividade. Culturalmente, temos uma educação financeira pífia, o que podemos perceber em diversas áreas, especialmente aquelas em que se atua como autônomo. Por isso, antes de se aventurar em qualquer tipo de empreendimento, vale a pena consultar o site do Sebrae, que inclusive disponibiliza um curso gratuito para o empreendedor individual. Desta forma, é possível, entre inúmeras outras coisas, perceber que a fotografia digital tem uma série de custos, como depreciação do equipamento, material de informática, energia elétrica, internet etc. e que, para lucrar com ela, é preciso um planejamento detalhado de como fazer as contas levarem a resultados positivos.

indie charlie

indie charlie

Em relação à posição dos fotógrafos que tentam barrar esse movimento, praguejando contra a fotografia digital, os amadores, barrando entrada de câmeras em eventos e tudo o mais, acredito que isso seja dar murro em ponta de faca. Não adianta querer remar contra a popularização da fotografia e tentar segurar um mercado que é ruim. Não se pode pedir para que os iniciantes não sejam concorrentes, nem mesmo fazendo apelos para que eles não destruam sua atividade profissional. Os tempos mudam e quem não muda junto é engolido mesmo. Vide os laboratórios fotográficos: aqueles que ficaram esperando que os clientes levassem seus cartões de memória para revelar fotos como faziam com os filmes foram os primeiros a fechar as portas; aqueles que buscaram oferecer serviços diferenciados, fotoprodutos, sessões de estúdio, quiosques e outras inovações estão conseguindo sobreviver.

Para o fotógrafo profissional a receita é a mesma. Não adianta ficar reclamando. É preciso, antes de mais nada, focar no mercado que potencialmente consumiria um serviço fotográfico de qualidade, entendendo o que o cliente quer, quais são as suas expectativas e necessidades. Segundo, é preciso se qualificar para poder oferecer essa fotografia diferenciada, claramente diferente daquela oferecida pelos aventureiros. Aproveitar as novas tecnologias e formas de comunicação, como vejo muitos fazendo ao manter blogs e twitter com suas atividades profissionais, é uma boa pedida. E aí vender o seu produto diferenciado para o cliente certo, ou seja, aquele que está disposto a pagar – e bem – pela boa fotografia.

Fotografia contemporânea

O termo “contemporâneo” refere-se ao que é atual, ao que ocorre no nosso tempo. Sendo assim, seguindo literalmente a expressão, poderíamos classificar qualquer fotografia feita hoje como fotografia contemporânea. Será que é possível, no entanto, reunir algumas características da fotografia atual que a distinguiriam da fotografia feita em outros momentos históricos? Parece uma tarefa muito difícil, pois se tivermos em mente que nunca se fotografou tanto, nunca mostramos e vimos tantas fotos o tempo todo, como estabelecer um panorama? Se pensarmos na quantidade de fotos feitas hoje, provavelmente teremos exemplo de todos os tipos de pontos de vista, de métodos, de técnicas…

Não obstante, talvez seja essa quantidade enorme de fotografias que leve justamente ao que é essencial da fotografia do nosso tempo. Até um tempo atrás, só se fotografava o que era fotografável: um evento significativo, uma viagem, um ensaio planejado etc. As dificuldades técnicas e de custo faziam com que a fotografia fosse a validação de algo especial. Hoje, com a facilidade do digital, se fotografa tudo. Qualquer coisa se tornou fotografável. E, se alguns veem nisso algo banalizador, massificador, há uma contrapartida: vemos em fotografias coisas que não víamos antes. E, se soubermos filtrar, veremos nos blogs, nas redes sociais, nas galerias online a poesia e a beleza do dia-a-dia, do simples viver. A fotografia contemporânea tem como característica especial essa possibilidade de olhar de forma poética para o simples, o sutil, o cotidiano que leva à valorização do trivial. E o que temos em 99% das nossas vidas é o trivial, acho isso muito positivo.

Há também uma questão técnica e estética: uma vez que já entendemos que a fotografia não é um simulacro, e sim uma representação cujo aspecto depende das características do aparelho, não é mas necessário buscar a ilusão perfeita, a fotografia tecnicamente impecável. Daí muitos autores jogarem com métodos alternativos, justamente buscando ressaltar a impressão que querem causar, entendendo a fotografia como uma criação e não como um registro. A fotografia de hoje não precisa mais ser perfeita, nem espetacular, nem contundente. Ela simplesmente mostra o que somos, sem truques ou disfarces.

Como é melhor mostrar do que tentar explicar, reuni algumas fotografias postadas sob licença Creative Commens noFlickr que reúnem as características que comentei. Para ver o nome do autor, basta passar o mouse sobre a foto.

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Fotografia autoral

O termo fotografia autoral – ou fotografia de autor – é usado com frequência para descrever as fotografias que são fruto de um projeto pessoal de um profissional consagrado, ou ainda para referir-se à fotografia que é vista como arte, em oposição à fotografia documental ou utilitária.

Mas o que é a fotografia autoral? Quais são seus limites e delimitações, quais são as suas características essenciais? Não há uma definição rígida sobre isso – se houvesse, não seria necessário escrever um artigo sobre o tema – de forma que podemos especular um pouco sobre as qualidades que colocam a obra nessa categoria diferenciada. Obviamente, esse texto refere-se apenas à minha opinião, uma vez que o tema é tão subjetivo.

Se formos ser literais, todas as fotografias são autorais, uma vez que sempre há um autor. É preciso, então, de alguma forma de classificação. Que critério pode ser estabelecido como decisivo para classificar uma fotografia como autoral? Podemos pensar em algumas possibilidades: estética, originalidade, validação externa, transgressão da relação entre operador e aparelho.

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Estética: não é necessário entrarmos nos aspectos complexos de como analisar visualmente uma fotografia. Para o nosso interesse, podemos pensar numa foto bem resolvida esteticamente, em termos gerais. O que constatamos, no entanto, é que a maior parte das fotografias utilitárias, como as publicitárias, encaixam-se nesse critério. Em contrapartida, veremos que muitas fotografias autorais não têm o mesmo apelo visual, por vezes em detrimento de um conceito ou uma impressão. Concluímos, então, que a estética não é um fator definidor – e nem mesmo necessário – para a fotografia autoral.

Originalidade: é comum a ideia de que a arte deve ser inovadora. Isso pode ter sido verdade até meados do século passado. De lá para cá, as características da obra perderam importância na determinação da sua validade enquanto arte. Na fotografia, a tendência contemporânea tem pouco de inovação e mais de um olhar sobre a vida atual, pouco romantizada e quase antisséptica. Ou seja, a fotografia autoral não requer a reinvenção da roda.

John Curley

Validação externa: poderíamos ser extremamente pragmáticos e pensar na fotografia autoral como aquela que é tachada como arte nas galerias e museus. Embora grande parte da fotografia, especialmente nas galerias, encaixe-se nessa classificação, muitas vezes vemos trabalhos documentais, que foram feitos com objetivos específicos, como os jornalísticos, adquirirem valor artístico por outros aspectos, como o histórico ou o social, o que nos leva a descartar esse critério como determinante.

Transgressão: Flusser, em Filosofia da Caixa Preta, coloca o fotógrafo como um operador da câmera, um funcionário que atua de acordo com um programa pré-estabelecido. Para ele, quando alguém fotografa normalmente, está apenas confirmando esse programa. A fotografia criativa deveria ser a experimental, ou seja, a que quebra o domínio do aparelho através de modificações na câmera ou na ilusão de realidade montada por ela. Embora muito da fotografia autoral tenha um caráter experimental, o que vemos é que isso não é uma condição sine qua non para que sejam produzidos trabalhos relevantes.

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Podemos perceber, então, que qualquer critério rígido que busque classificar a fotografia autoral não dá conta de englobar todos esses tipos de trabalho. Não é a minha intenção propor uma solução pra isso, mas podemos pensar em alguns caminhos. Uma das questões é que, se estamos falando de um autor, então esse autor deve estar na foto. Não basta apertar o botão. Antes que se pense em questões técnicas, não estou falando de como fotografar, ou de usar o modo manual, nada disso. Refiro-me a desenvolver uma linguagem pessoal coesa, consistente, expressiva, que revele, através das imagens, o autor por trás delas.

Da mesma forma que reconhecemos um determinado escritor ou um músico pelo seu estilo, pela forma, o mesmo se aplica ao autor fotográfico. Fotógrafos consagrados conseguem imprimir sua linguagem independentemente da função da foto, seja ela experimental, documental ou utilitária. Portanto, a fotografia autoral tem uma característica abstrata que permeia a produção, mas que é sólida o suficiente para lhe dar unidade e coerência. Sendo assim, qualquer um pode tornar a sua fotografia autoral. No entanto, isso não está no referente, nem na câmera: o autor precisa encontrar a si mesmo.

“Contra a Interpretação”, de Sontag, e a fotografia

Sempre que vejo tentativas de explicação de obras de arte ou, mais especificamente, de fotografias, tenho a sensação de que algo não se encaixa ou falta, como se a transposição do visual para o verbal não fosse algo totalmente viável. Deparei-me, esses dias, com um ensaio da Susan Sontag, intitulado “Contra a Interpretação”, em que há o seguinte trecho:

“In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.”

A tradução seria mais ou menos essa: “Na maioria das instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a arte por conta própria. A arte real tem a capacidade de nos deixar nervosos. Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e interpretá-lo, a obra é domada. A interpretação torna a arte manejável, submissa.”

Na fotografia, uma das formas de se reduzir a obra é através da análise técnica, como já descrevi em “O Anteparo Técnico“. No entanto, não é a única forma. Uma outra forma bastante comum é tentar ler o que o autor quis dizer, como se houvesse todo um discurso subliminar em cada fotografia, e esse discurso seria mais importante do que aquilo que é mostrado claramente.

Temos uma tradição dualista que nos leva a pensar que tudo sempre tem uma razão, um motivo ou um conteúdo oculto. Mas na realidade, na maior parte das vezes as coisas são simplesmente o que são, e a busca por esses conteúdos, como diz Sontag em seu texto, é o “elogio que a mediocridade faz ao gênio”. Tanto que muitas formas de arte, como a pintura abstrata, fogem intencionalmente da possibilidade de interpretação – e, por isso, causam ainda mais incômodo.

Tomemos como exemplo a foto que ilustra esse artigo, de Chad Treolar, intitulada “Electrified”. É uma imagem incômoda. No entanto, o autor adiciona uma legenda explicativa ao postá-la, dizendo que é “uma tentativa de visualizar o conceito de que nossos corpos são carregados eletricamente que são essas cargas que, em última instância, dirigem nossos pensamentos”. Tivesse o autor deixado a imagem falar por si só, ela teria muito mais força do que com a sua própria interpretação.

Isso nos leva a pensar em como criticar fotografias. O primeiro passo é aceitar a foto, e não imaginar outra que poderia ter sido feita – mas não foi. O segundo é evitar excessivamente a interpretação, procurando significados ou intenções ocultas pelo autor. Não há forma de arte mais direta que a fotografia; procurar algo por trás é ir contra a própria natureza da obra. Seguindo esse preceito, a análise direta, através da descrição, da leitura atenta é um caminho interessante, reconhecendo não apenas o que a foto é como aquilo que ela suscita em nós como observadores.

Isso é difícil, pois o fato é que temos grande dificuldade em aceitar as coisas como elas são. Em contemplar sem entender, sem traduzir racionalmente aquilo que nos encanta, nos assombra ou nos incomoda. Talvez abrir mão desse expediente seja um primeiro passo para experimentar a arte tal qual ela é, sem tentar domá-la, ou aplacar o próprio incômodo frente aquilo que não pode ser circunscrito por palavras.

Referência: Sontag, S. (1964). Against interpretation. http://www.coldbacon.com/writing/sontag-againstinterpretation.html