O perturbador Kodachrome

Kodachrome é o nome de uma série de filmes fotográficos positivos (slides) fabricados pela Kodak entre 1935 e 2009. Durante o tempo em que foi produzido, era um dos filmes coloridos mais utilizados, tendo sido fabricado em diversos formatos, tanto para fotografia quanto para filmagem.

Na primeira vez em que vi um slide Kodachrome de 35mm nas minhas mãos, me assustei. O susto foi pelo fato da foto ter sido feita há mais de 30 anos e as cores, o contraste e a estrutura do filme estarem impecáveis. Mesmo não tendo sido armazenados com muito cuidado, os slides pareciam ter sido fotografados no dia anterior. Outros filmes que estavam armazenados juntos estavam praticamente destruídos pelo tempo e pelos fungos. Esses outros filmes, ou mesmo as fotos impressas, vão se desgastando com o tempo, perdendo suas cores e contrastes. Assim, quando vemos uma foto antiga, há uma espécie de embaçamento que nos distancia da imagem e denuncia a época em que foi feita. Quando guardados da forma correta, os Kodachromes aguentam por 50 anos ou mais, preservando suas características. E aí, quando nos deparamos com uma dessas fotos, sem o embaçamento esperado, há um choque pelo não distanciamento, que abala nossa concepção de tempo.

Se você fizer uma busca pelo termo Kodachrome, verá uma série de fotografias feitas com ele há 2, 10, 20, 30 ou até 70 anos. O perturbador nisso tudo é que não há diferença entre as fotos. Todas parecem atuais. Vemos uma reunião de família ou dois irmãos num gramado com cores tão vívidas que é difícil acreditar que aqueles momentos já ficaram tão longe no passado. As fotos abaixo foram feitas com Kodachrome nas décadas de 1950 e 1960.

Só depois de algum tempo pensando na questão do Kodachrome, percebi que a mesma coisa acontecerá daqui a algum tempo com as fotografias digitais. Depois da sua evolução inicial, o aspecto visual das fotos digitais passou a um patamar homogêneo. Se não houver uma grande mudança nesse aspecto geral, e se daqui a algumas décadas as fotos ainda se parecerem com as de hoje – em termos de cores e contraste, mesmo que visualizadas na tela – não teremos mais o embaçamento que nos permite situar a época em que a foto foi feita. Teremos que nos situar através de outros indicadores, como as roupas, cortes de cabelo, design de móveis ou carros. É complicado falar sobre o que pode ou não acontecer numa época em que tudo muda tão rapidamente como nos dias de hoje. Mas, se a fotografia digital continuar essencialmente a mesma, talvez ela faça com que alteremos, ainda que ligeiramente, nossa relação com o tempo, da mesma forma que fez o Kodachrome.

Nós e a tecnologia: uma faca de dois gumes

Em “O Caminho para Wigan Pier”, escrito nos anos 30, George Orwell profetiza: “no futuro, faremos ginástica para exercitar músculos que nunca usaremos”. Era o presságio de que a tecnologia serviria cada vez mais para facilitar a nossa vida e que a contrapartida é uma fragilização do ser humano. Embora Orwell faça o comentário em termos físicos, não é demais pensar que o mesmo se aplica em termos intelectuais.

Somos uma geração mimada pelas facilidades da tecnologia. Em termos comportamentais, o indicativo mais evidente desse processo é que nos tornamos extremamente intolerantes à frustração. Tolerância à frustração é um termo psicológico que descreve o quanto conseguimos lidar com o fato das coisas não serem como queremos. Se por um lado é maravilhoso que a tecnologia nos permita fazer coisas cada vez mais rápida e facilmente, por outro a tendência é que nos tornemos cada vez mais dependentes da tecnologia e impacientes frente às mínimas dificuldades.

O principal trunfo da fotografia digital foi permitir que as fotos pudessem ser visualizadas instantaneamente. As primeiras câmeras a se tornarem populares, as Kodak Brownies, precisavam ser enviadas de volta à fabrica para retirada do filme, revelação das fotos e recolocação de um negativo novo. Com o filme 35mm, o processo de revelação se tornou mais ágil, mas ainda era feito manualmente. Com os minilabs, as fotos finalmente passaram a ficar prontas rapidamente: em uma hora. Mas ainda assim, a tendência de aceleração continuou e hoje podemos ver as fotos antes mesmo de serem batidas, nos LCDs das câmeras compactas e celulares. Quando a Polaroid decidiu parar de fabricar suas câmeras e filmes instantâneos, um de seus executivos de marketing disse: “a Polaroid não vendia câmeras, vendia a possibilidade de ver as fotos na hora, que foi apropriada pelo sistema digital”.


moominsean

Isso faz com que tenhamos uma atitude em relação à fotografia – e, de certa forma, com a vida de forma geral – imediatista e perfeccionista. Não admitimos atrasos, erros, imperfeições. Queremos tudo, para agora, do jeito que esperamos. Até certo tempo, vivíamos muito bem com limitações que hoje seriam intoleráveis. Tínhamos que esperar três anos para assistir um filme na televisão depois de lançado no cinema. Lidávamos bem com o fato de não conseguirmos falar imediatamente com alguém no telefone. Não achávamos estranho ter que colocar manualmente a agulha sobre o disco de vinil para ouvir música. Planejávamos nossa semana de forma a não precisar fazer compras no domingo, quando estava tudo fechado. E achávamos que ter nossas fotos reveladas em uma hora era incrivelmente rápido. Prestávamos, também, menos atenção em se as fotos estavam com as cores equilibradas, cortes adequados, granulação…

Há quem argumente que a facilidades tecnológicas libertam o homem de tarefas menos importantes, deixando mais espaço para o desenvolvimento intelectual. Parece fazer sentido, mas será que esse desenvolvimento está acompanhando a tecnologia? Estamos, na média, nos tornando mais competentes intelectualmente ou apenas uma massa preguiçosa e impaciente?


Leanne Surfleet

Não quero dar a entender que “os velhos tempos é que eram bons”. Pelo contrário, havia coisas muito chata. Como, por exemplo, ter que comprar fichas telefônicas e usar orelhões. Não era possível optar pelo combustível que usaríamos nos carros nem conversar com parentes do outro lado do mundo sem gastar quase nada. O avanço tecnológico pode ser bom ou ruim, dependendo do uso que cada um faz dele. Acredito que se usamos as facilidades da tecnologia para melhorar a nossa vida e a nós mesmos, não há como dizer que isso é algo negativo. Mas se, por outro lado, nos deixamos acostumar com as facilidades e nos tornamos irriquietos, ansiosos e intolerantes com as menores dificuldades, algo está fora do lugar.

No caso da fotografia, o sistema digital propicia oportunidades que eram apenas sonhadas pelos fotógrafos que nos precederam. Podemos ter imediatamente o resultado de qualquer experiência. Podemos fazer um número virtualmente ilimitado de fotos sem nos preocupar com custos de filmes e revelação. Podemos aprender como controlar a câmera rapidamente. Com isso, a fotografia se tornou ainda mais fácil. Aproveitando essas possibilidades, qualquer um pode ser tornar um grande fotógrafo. Esse, pra mim, é um dos aspectos mais virtuosos do digital: a fotografia “séria” deixou de ser uma atividade elitizada, limitada por conta dos custos e dificuldades técnicas. A excelência está nos dedos de qualquer um – desde que haja dedicação e esforço.

E o Tri-X sobrevive

No início da década, quando a fotografia digital começou a aparecer no mercado, ela pouco competia com o filme, pois sua qualidade ainda era pífia quando comparada àquela obtida pela fotografia analógica. No entanto, ao longo dos anos, a evolução das câmeras digitais tornou o filme algo extremamente obsoleto, já que não só a qualidade se equiparou, como os preços de câmeras digitais caíram vertiginosamente. Por conta disso, muitos filmes deixaram de ser fabricados simplesmente porque não vendiam mais, já que quem os consumia em maiores quantidades – os profissionais – migraram para os sistemas digitais.

No entanto, um filme de 56 anos, preto e branco, ainda é um campeão de vendas, em pleno 2010: o Kodak Tri-X 400. Introduzido em 1940 em grande formato e ISO 200, em 1954 passou a ser comercializada a versão atual: ISO 400, em rolos de 35mm ou 120 (médio formato). O Tri-X é um filme com granulação clássica, rápido (para os padrões da fotografia analógica) e o preferido de muitos fotógrafos conceituados, em especial os documentaristas.

Em São Paulo, o Tri-X ainda é relativamente fácil de encontrar e os preços estão relativamente estabilizados. Na Chromur, eles vendem rolos rebobinados a R$ 17 cada e “originais”, na caixinha, por R$ 26 (preços de 22/10/10), enquanto na Capovilla o rebobinado sai a R$ 25. Um pouco salgado, considerando que nos Estados Unidos um rolo 35mm original sai por US$ 4. Se você tiver uma conta no PayPal e paciência, é fácil encontrar o filme no eBay por esse preço, inclusive em pacotes com 10 rolos a US$ 40.

Parênteses para quem não está familiarizado com o filme rebobinado: os filmes fotográficos, como o Tri-X, também são vendidos em rolos de 100 pés, contidos em uma lata. Nesse caso, é necessário rebobinar o filme para dentro dos cassetes e cortá-los, para utilização nas câmeras. Algumas lojas compram o filme em lata para rebobinar e vender cada cassete a um preço mais baixo que o rolo de 35mm original. Falo em “original” referindo-me ao que vem num cassete próprio, dentro da caixinha da Kodak, mas nos dois casos o filme é o mesmo. Geralmente não há problemas com o rebobinado e você ainda ganha umas exposições extras, já que ao rebobinar eles costumam deixar alguma folga. Já comprei filmes rebobinados que renderam 40 poses.

Diz-se que o Tri-X tolera bem ser puxado para ISO 800, sem necessidade de compensação na revelação, e para ISO 1600, com necessidade de ajuste no tempo de revelação. Caso você queira se aventurar a revelar o Tri-X, o tempo indicado para o revelador D-76 é de 6 minutos e 45 segundos a 20º (9 minutos de 45 segundos para D-76 com diluição 1:1 a 20º). Mais detalhes podem ser encontrados nessa tabela de tempos de revelação de filmes preto e branco da Kodak.

De tempos em tempos, quando quero obter nas fotos o aspecto PB característico do filme, ou quando acho que algum assunto é interessante o suficiente para mantê-lo num suporte físico, uso direto o Tri-X, como fiz numa série recente, Aikido. Abaixo, há uma galeria com fotografias feitas com o Tri-X e disponibilizadas no Flickr sob licença Creative Commons.

Fontes:
Kodak
Wikipedia
The Online Photographer