Vida online e vida offline

Em seu “Sobre Fotografia”, Susan Sontag aponta algumas funções contundentes da fotografia. Uma delas é o uso da câmera como uma espécie de escudo ou arma, especialmente nas situações em que a realidade é exótica ou incômoda. Como turistas, ao entrar em um novo ambiente, colocamos a câmera na frente do rosto e vemos o mundo através dela. Como a câmera tende a embelezar tudo, a visão do diferente torna-se mais fácil de ser digerida. Nossa visão se tornou fotográfica e a nossa referência de mundo se transformou naquilo que vemos nas fotos, mas do que com os próprios olhos.

Se considerarmos a expansão das redes sociais e a facilidade de compartilhar fotografias digitais, veremos que muitos aspectos da nossa vida necessitam de validação através desses instrumentos. Anunciamos no Twitter o que estamos fazendo, pensando, onde estamos e pra onde iremos. Compartilhamos nossas fotos de viagem e dos momentos significativos quase imediatamente através do Facebook, Flickr, fóruns ou, para os menos “atualizados” tecnologicamente, por e-mail. É quase como se não existíssemos se não estivermos na web; e se algo não foi anunciado nas redes sociais, não aconteceu.

Por que será que não compartilhamos os maus momentos da mesma forma? As redes sociais estão repletas de fotos de pessoas sorridentes, extasiadas, em alegria constante. Não vejo fotos de ninguém entristecido, chorando, com raiva. Parece que de repente os problemas do mundo acabaram. Finalmente chegou o dia em que a humanidade é totalmente feliz. Podemos parar o que estamos fazendo para viver nessa maravilhosa utopia. As mágoas e a feiura continuam existindo, mas apenas numa realidade paralela: no mundo offline.


Zephyrance Lou

Parece-me, na verdade, que a massificação das comunicações e da vida em geral faz com que busquemos constantemente afirmar que somos diferentes e especiais. Quanto mais temos contato com um contingente maior e maior de pessoas, mesmo que virtualmente, mais necessitamos reforçar a nossa individualidade. E aí, como se estivéssemos numa grande competição, precisamos dizer: “veja como seu feliz, como sou bonito/a, como sou bem sucedido/a”. Através de fotografias, obviamente. Não é à toa que as pessoas querem melhores câmeras e aprender a fotografar melhor. A fotografia precisa ser a melhor possível para sustentar esse exercício de afirmação e busca de identidade. Queremos fazer fotografias que pareçam com aquelas que vemos nas propagandas – em parte porque queremos mostrar que temos uma vida que parece com a que se tem nas propagandas.

O que acontece, então, é que se passa a viver em função de mostrar. A fotografia, então, se interpõe nos momentos, impedindo-nos de experimentá-los plenamente. Em vez de mergulharmos nas viagens, nas baladas, nos passeios e até mesmo num momento tranquilo em casa, fotografamos tudo o tempo todo. Perdemo-nos na necessidade de validar tudo por meio da câmera e, pior, perdemos a chance de simplesmente viver de verdade. Não acho que seja tão comum as pessoas substituírem a vida real pela virtual, como se fala muito – acho que isso só acontece em casos extremos – mas o que acho plausível é que a vida online passe a controlar muitos aspectos da vida offline.

Você já considerou fazer uma viagem e não tirar nenhuma fotografia? Já pensou em não contar pra ninguém depois de ter ido a uma festa fenomenal? Em ter tirado uma fotografia fantástica e apenas imprimir para você mesmo, em vez de compartilhar no Flickr? Talvez eu esteja exagerando um pouco, mas se você acha que essas coisas são impensáveis, talvez seja um sinal para considerar se você faz o que faz pelas coisas em si ou pela função que essas atividades têm para outras pessoas. Em outras palavras: para qual vida você vive? A online ou a offline?

Sobre julgamento e fotografia

O ser humano é um julgador por natureza. Ao longo de um mero dia, somos estimulados por um grande número de imagens, sons, odores, textos, ideias. Para que não nos paralisemos frente a tudo isso, processamos de forma extremamente rápida os estímulos de interesse ou não. Além disso, tendemos a classificar os estímulos de acordo com categorias aprendidas durante a vida, como “agradável/desagradável”, “bonito/feio”, “útil/inútil”. Esse processamento foi essencial para a sobrevivência da nossa espécie, uma vez que guia as nossas ações em meio a qualquer tipo de ambiente de forma rápida e objetiva.

Sendo assim, quando nos deparamos com uma situação, uma pessoa ou uma ideia nova, quase instantaneamente já realizamos um julgamento, para que tenhamos base para nosso comportamento. Em geral, utilizamos as nossas experiências anteriores e encontramos – consciente ou inconscientemente – similaridades entre o atual e o passado para basear nossa avaliação. Em frações de segundo temos toda a nova estimulação comparada com um arcabouço de vivências anteriores e categorizada, nos dando condições de reagir adequadamente. Esse processo é natural – e, em muitos casos, necessário. Imagine um dos nossos ancestrais se deparando com um animal desconhecido no meio da savana africana: ele precisava saber rapidamente se havia algum tipo de ameaça ou de utilidade para poder agir de acordo.


James Blann

Há, no entanto, algumas questões que podemos fazer em relação a esse processo, considerando os dias atuais. A partir do momento em que temos consciência de como funcionamos, podemos nos observar funcionando e optar por maneiras diferentes de ser – o que alguns autores chamarão de real liberdade. Vejo três pontos fundamentais.

1. Situações novas são novas. Embora tenhamos um repertório gigantesco de experiências anteriores nas quais nos baseamos, na verdade estamos sempre agindo em função dessas experiências, e não do presente. Isso pode nem sempre funcionar, já que a situação atual é sempre única, por mais parecida que seja com aquilo que já experimentamos.

2. A categorização é falha. Embora seja útil para um julgamento rápido, geralmente a categorização que fazemos é muito simplória. Em frente a um objeto, tendemos a classificá-lo de acordo com proposições dicotômicas, como bonito ou feio, útil ou inútil. O problema é que esse tipo de classificação é muito restrita, levando-nos a avaliar as situações de forma muito rasa.

3. O julgamento em si. Julgamos para poder agir, mas nem todas as situações demandam ação, ou reação. Talvez existam momentos em que seja possível prescindir do julgamento.


Diego Valencia

Essa forma de funcionar é essencial porque não podemos passar o dia refletindo sobre cada estímulo que encontramos. No entanto, há alguma situações em que vale a pena frear esse sistema automático e buscar uma compreensão diferente. Uma delas é ao ver fotografias. Estar em frente a uma fotografia não é uma situação que demanda nenhum tipo de ação específica. Por isso, podemos nos dar ao luxo de julgar de forma diferente, ou até mesmo não julgar. Considerando os três pontos anteriores:

1. Fotografias novas são sempre novas. Se funcionamos de forma automática, tendemos a comparar a fotografia que estamos vendo no momento com fotografias parecidas que já vimos anteriormente. A nossa reação será, então, similar a que já tivemos. Desta forma, faremos sempre o mesmo julgamento, sem dar chance à nova fotografia de evocar novas ideias e concepções. Considerando que vemos centenas de imagens a cada dia, podemos perder a sensibilidade, respondendo de maneira robotizada a estímulos que poderiam nos levar a uma percepção ou experiência diferenciadas.

2.Categorias não dão conta das imagens. Transpor imagens em palavras já é uma empreitada difícil, pois as palavras são naturalmente limitantes. Embora a fotografia também tenha suas limitações, elas são de ordem totalmente diversa. Se, além de tentarmos descrever a imagem com palavras, o fazemos buscando encaixá-la em categorias, teremos nos afastado ainda mais da experiência visual que é a essência da foto. Dizer que uma foto é um retrato nos leva longe da possibilidade de tomar contato com a face da pessoa que foi fotografada.

3. Talvez não seja necessário julgar. Além dos problemas específicos do julgamento citados em textos anteriores, como O Anteparo Técnico e um comentário sobre um texto contra a interpretação da Susan Sontag, o julgamento de forma geral talvez não seja necessário. Podemos simplesmente observar a foto, aceitá-la como ela é e não emitir nenhum tipo de comentário, nem mesmo interno. Assim, é possível de fato ver. Uma alternativa possível é simplesmente observar as sensações e impressões que a foto provoca em nós, sem a preocupação de transformar isso numa ideia ou explicação. Em outras palavras, experienciar a foto em vez de julgá-la.

Este último ponto pode, talvez, ser transposto a outros aspectos da vida além da fotografia. Não é necessário, sempre, ter um julgamento rápido e simplificado para tudo, até porque não é preciso reagir a tudo a todo momento. Há situações que podem ser simplesmente vivenciadas, aceitas como elas são, sem julgamentos, análises ou classificações.

Publicidade: podem os fotógrafos lavar as mãos?

Não é difícil perceber que o preço que a sociedade de consumo cobra pelo conforto e pela tecnologia é alto demais. Podemos encarar essa questão de acordo com diversos pontos de vista. Em relação à ecologia, vemos que, embora os alertas em relação ao meio ambiente já estivessem sendo dados há muito tempo, só mais recentemente começamos a sentir as consequências. Há também um ponto de vista social, no qual argumenta-se que o modelo econômico baseado no consumo como é hoje acentua as diferenças entre as camadas da população. Do ponto de vista ideológico, afirma-se que o sistema capitalista, que tem o consumo como seu motor, impede que a democracia ou a igualdade sejam plenas.

Todos esses pontos de vista são válidos. No entanto, eu, como psicólogo, interesso-me por como os mecanismos da sociedade de consumo afetam a vida dos indivíduos e o seu bem estar. Hoje, não somos vistos como cidadãos, ou como indivíduos, e sim como consumidores. Se nos compararmos com as pessoas de dez, vinte ou cinquenta anos atrás, percebemos facilmente que consumimos muito mais. Os itens de consumo duram cada vez menos e são substituídos cada vez mais rapidamente. Isso é facilmente perceptível olhando para o intervalo entre os lançamentos entre câmeras dos principais fabricantes. As primeiras Nikon F ficaram em produção por 10 anos. Agora, vejamos quantos modelos são lançados em apenas um ano. A questão é: somos mais felizes do que a dez, vinte ou cinquenta anos?


Candice Wouters

Não somos, porque toda a questão do consumo depende disso. Se fôssemos mais felizes, consumiríamos menos, o que não pode acontecer. E qual o fator determinante para que não estejamos satisfeitos, tendo tanto conforto e tecnologia à disposição. Não quero ser reducionista, mas acredito que um dos fatores fundamentais é a publicidade. Basicamente, a publicidade, para atingir seus objetivos, precisa nos imbuir de uma sensação de falta, falta essa que só será suprida com um produto. Ou seja, os anúncios implicam o tempo todo no fato de que não podemos ser felizes, nem satisfeitos – a menos que consumamos. No entanto, se o consumo realmente fosse suficiente para nossa satisfação, não precisaríamos continuar consumindo tanto, e teríamos mais satisfação. Acontece que é muito difícil nos satisfazermos com posses materiais, inclusive porque a própria publicidade nos diz que o que acabamos de comprar já não é mais suficiente.

Quem trabalha com publicidade geralmente tem alguns argumentos contra essa percepção. Diz-se, por exemplo, que o marketing e os anúncios apenas refletem aquilo que o consumidor quer e que não se criam necessidades, apenas descobrem-se. No entanto, o que vemos na prática é diferente. As pessoas chegam a extremos para perseguir um padrão alardeado pela mídia que é simplesmente inatingível. Vejo também nos pacientes que atendo a angústia por não conseguir se encaixar em certos modelos midiáticos. Podemos perceber que a publicidade não está apenas nos anúncios, mas nas novelas, filmes, revistas e programas de TV em geral, constantemente criando modelos que as pessoas tendem a seguir. E não só as pessoas que não os atingem que sofrem. Nos raros casos em que as pessoas conseguem, por um momento, sentir-se dentro do padrão, isso também causa angústia e ansiedade tremendos, pois é dificílimo manter esse nível irreal de exigência. Basta ver quantas modelos são acometidas por transtornos alimentares. Então, quando os publicitários dão de ombros e negam ter todo esse poder sobre as pessoas, penso que é uma tremenda hipocrisia. Se não tivessem, não seriam gastos milhões e milhões em publicidade. Campanhas de marketing não raro custam mais caro do que os custos de produção de certos produtos: pagamos mais pelo anúncio do que pelo item em si.


Alex Glickman

Como esses modelos são basicamente visuais, a fotografia tem um papel importante. É através dela que se criam as ilusões dos produtos e vidas ideais que geram o consumo. No entanto, por que, ao fazer uma foto publicitária, não basta ir até o supermercado mais próximo e fotografar o produto? Por que é necessário ter estúdios com esquemas complexos de luz, flashes, lentes e câmeras caríssimas, pós-produção etc? Porque o produto real, que está na prateleira do supermercado, não é suficiente. É preciso ir além, criando uma imagem perfeita, ultrarreal, cuja função é eliciar o desejo e salientar a sensação de falta no observador.

Pode o fotógrafo lavar as mãos em relação à sua contribuição para esse sistema? É claro, ele irá argumentar que não foi ele que determinou que as coisas sejam como são, e que está apenas fazendo o seu trabalho. Ou, ainda, que se ele não fizer, outro fará. É claro que eu não tenho o direito de julgar a forma como as pessoas ganham suas vidas, ainda mais quando se trata de um trabalho honesto. Muitas vezes nem temos clareza das dimensões que a nossa atividade profissional pode atingir numa perspectiva mais ampla. Não obstante, acredito que existam algumas pessoas que têm uma visão crítica sobre o estado de coisas, sobre o modelo social em que vivemos. Que percebem, ainda, que podemos mudar muito pouco do sistema através do voto, já que os candidatos viáveis são aqueles comprometidos com o poder econômico e que a máquina governamental é desenhada para se limitar a escolhas menores. Para essas pessoas, talvez valha a pena refletir se adianta reclamar do governo ou culpar os outros. Uma das alternativas se dá através da análise do próprio meio de vida, considerando como ele afeta as pessoas e a si mesmo. E aí, se você for um fotógrafo publicitário e ao mesmo tempo alguém preocupado com as outras pessoas e com a sociedade de forma geral, talvez valha a pena parar para pensar. Você pode ter mais poder nas mãos do que imagina. O que você vai fazer com isso?

P.S.1: Você já deve ter percebido que o Câmara Obscura não tem publicidade. Arco integralmente com os custos do site e não cogito veicular nenhum espaço para propagandas. Isso permite tanto uma navegação limpa para você quanto liberdade na criação do conteúdo para mim. Se você quer navegar sem anúncios pela Internet, use o plugin AdBlock no Firefox ou Chrome, ou um navegador capaz de bloquear conteúdos, como o Opera.

P.S.2: Esse artigo foi inspirado no texto free of advertising, do blog mnmlist (em inglês).

Nós e a tecnologia: uma faca de dois gumes

Em “O Caminho para Wigan Pier”, escrito nos anos 30, George Orwell profetiza: “no futuro, faremos ginástica para exercitar músculos que nunca usaremos”. Era o presságio de que a tecnologia serviria cada vez mais para facilitar a nossa vida e que a contrapartida é uma fragilização do ser humano. Embora Orwell faça o comentário em termos físicos, não é demais pensar que o mesmo se aplica em termos intelectuais.

Somos uma geração mimada pelas facilidades da tecnologia. Em termos comportamentais, o indicativo mais evidente desse processo é que nos tornamos extremamente intolerantes à frustração. Tolerância à frustração é um termo psicológico que descreve o quanto conseguimos lidar com o fato das coisas não serem como queremos. Se por um lado é maravilhoso que a tecnologia nos permita fazer coisas cada vez mais rápida e facilmente, por outro a tendência é que nos tornemos cada vez mais dependentes da tecnologia e impacientes frente às mínimas dificuldades.

O principal trunfo da fotografia digital foi permitir que as fotos pudessem ser visualizadas instantaneamente. As primeiras câmeras a se tornarem populares, as Kodak Brownies, precisavam ser enviadas de volta à fabrica para retirada do filme, revelação das fotos e recolocação de um negativo novo. Com o filme 35mm, o processo de revelação se tornou mais ágil, mas ainda era feito manualmente. Com os minilabs, as fotos finalmente passaram a ficar prontas rapidamente: em uma hora. Mas ainda assim, a tendência de aceleração continuou e hoje podemos ver as fotos antes mesmo de serem batidas, nos LCDs das câmeras compactas e celulares. Quando a Polaroid decidiu parar de fabricar suas câmeras e filmes instantâneos, um de seus executivos de marketing disse: “a Polaroid não vendia câmeras, vendia a possibilidade de ver as fotos na hora, que foi apropriada pelo sistema digital”.


moominsean

Isso faz com que tenhamos uma atitude em relação à fotografia – e, de certa forma, com a vida de forma geral – imediatista e perfeccionista. Não admitimos atrasos, erros, imperfeições. Queremos tudo, para agora, do jeito que esperamos. Até certo tempo, vivíamos muito bem com limitações que hoje seriam intoleráveis. Tínhamos que esperar três anos para assistir um filme na televisão depois de lançado no cinema. Lidávamos bem com o fato de não conseguirmos falar imediatamente com alguém no telefone. Não achávamos estranho ter que colocar manualmente a agulha sobre o disco de vinil para ouvir música. Planejávamos nossa semana de forma a não precisar fazer compras no domingo, quando estava tudo fechado. E achávamos que ter nossas fotos reveladas em uma hora era incrivelmente rápido. Prestávamos, também, menos atenção em se as fotos estavam com as cores equilibradas, cortes adequados, granulação…

Há quem argumente que a facilidades tecnológicas libertam o homem de tarefas menos importantes, deixando mais espaço para o desenvolvimento intelectual. Parece fazer sentido, mas será que esse desenvolvimento está acompanhando a tecnologia? Estamos, na média, nos tornando mais competentes intelectualmente ou apenas uma massa preguiçosa e impaciente?


Leanne Surfleet

Não quero dar a entender que “os velhos tempos é que eram bons”. Pelo contrário, havia coisas muito chata. Como, por exemplo, ter que comprar fichas telefônicas e usar orelhões. Não era possível optar pelo combustível que usaríamos nos carros nem conversar com parentes do outro lado do mundo sem gastar quase nada. O avanço tecnológico pode ser bom ou ruim, dependendo do uso que cada um faz dele. Acredito que se usamos as facilidades da tecnologia para melhorar a nossa vida e a nós mesmos, não há como dizer que isso é algo negativo. Mas se, por outro lado, nos deixamos acostumar com as facilidades e nos tornamos irriquietos, ansiosos e intolerantes com as menores dificuldades, algo está fora do lugar.

No caso da fotografia, o sistema digital propicia oportunidades que eram apenas sonhadas pelos fotógrafos que nos precederam. Podemos ter imediatamente o resultado de qualquer experiência. Podemos fazer um número virtualmente ilimitado de fotos sem nos preocupar com custos de filmes e revelação. Podemos aprender como controlar a câmera rapidamente. Com isso, a fotografia se tornou ainda mais fácil. Aproveitando essas possibilidades, qualquer um pode ser tornar um grande fotógrafo. Esse, pra mim, é um dos aspectos mais virtuosos do digital: a fotografia “séria” deixou de ser uma atividade elitizada, limitada por conta dos custos e dificuldades técnicas. A excelência está nos dedos de qualquer um – desde que haja dedicação e esforço.

Fotografia: tributo à impermanência

A psicologia diz que o ser humano, ao se comportar voluntariamente, o faz basicamente por dois motivos: obter consequências agradáveis ou evitar/fugir de situações desagradáveis. Cada ação humana, no entanto, é muito complexa e geralmente tem múltiplos fatores envolvidos. Mas as premissas básicas são essas. Não seria demais dizer que, em geral, passamos os nossos dias buscando prazer e fugindo da dor. Quando não conseguimos evitar as situações que nos incomodam, nos sentimos tristes e irritados.

Mas qual é a nossa tendência ao nos encontrarmos numa situação prazerosa, como estar com alguém querido, assistir a um bom filme ou contemplar uma paisagem visualmente estimulante? O movimento é de tentar perpetuar o momento, buscar garantias de que ele continuará ou se repetirá. É muito difícil simplesmente nos satisfazermos com a situação em si: preocupamo-nos com o futuro e com formas de fazer que ela, de alguma forma, dure para sempre. Na nossa cultura, somos lembrados disso o tempo todo. Consumimos desenfreadamente a fim de buscar a satisfação que, quando ocorre, dura muito pouco; na tentativa de perpetuá-la ou mantê-la, voltamos a consumir, num ciclo sem fim.


Justin De La Ornellas

Dentre os diversos aspectos da fotografia – ou, nesse caso, do fotografar – está justamente essa tentativa de manter as coisas como elas são num determinado momento especial. Quando viajamos, nos deparamos com diversos cenários que nos causam boas sensações, seja pelo espetáculo visual, cultural ou histórico. E tentamos levar um pouco disso conosco, através das fotografias. Quando estamos numa festa ou numa reunião de amigos, fotografamos, em parte, em função do desejo de manter um pouco da alegria que é se estar com as pessoas de quem gostamos.

Entretanto, nada dura para sempre. A forma de ser do mundo é a mudança, a finitude das situações, das relações e até mesmo da natureza em si. Ao nos darmos conta disso, chega a ser irônico que utilizemos um dispositivo que captura uma fatia ínfima do tempo – a câmera fotográfica – na tentativa de perpetuá-la. A fotografia, então, é tão antagônica à natureza de constante mudança das coisas que acaba reforçando a ideia de impermanência. Ao olharmos uma foto, ainda na câmera, no instante seguinte em que ela foi tirada, já podemos ver que aquilo já não existe mais. Cada fotografia torna-se, então, imediatamente, um tributo à impermanência daquilo que ela retrata. Não é à toa que alguns autores associam a fotografia com a morte: de certa forma, ela é um atestado de óbito, ainda que apenas de um determinado momento.

Não apague suas fotos (ou, pelo menos, espere um pouco)

Geralmente, quando fotografo usando filme preto e branco, peço apenas a revelação dos negativos, os quais escaneio em casa. Nesta última semana, no entanto, queria fazer algumas ampliações e queria acelerar o processo. Pedi, então, que o laboratorista fizesse folhas de contato para cada um dos filmes revelados. Pois bem, recebi os filmes e vasculhei rapidamente os contatos para escolher as ampliações. Para quem não sabe, no processo manual, os contatos são feitos colocando-se as tiras de negativos sobre uma folha de papel fotográfico, mais ou menos do tamanho de um A4. Ilumina-se a folha, que depois é revelada. No processo automático dos laboratórios comuns os negativos são escaneados e o “contato” é montado pelo software da máquina. Depois, no entanto, olhei as folhas com mais calma, o que me levou a algumas reflexões.

Primeiro, a constatação, que não tem nenhuma novidade, de como o filme é inexoravelmente cruel com os nossos erros. O contato mostra todas as fotos ml expostas, mal concebidas ou que simplesmente deram errado, por qualquer motivo. E, uma vez que na fotografia analógica não há o botão delete, o erro fica marcado para sempre. Mas há um aspecto muito interessante na observação de uma folha de contato, que é poder observar o seu raciocínio fotográfico – do qual os erros fazem parte – de forma completa. As tentativas, as alternativas, aquilo em que insistimos ou o que simplesmente desistimos de fazer. Como na fotografia, especialmente entre os iniciantes, há um mito de que você precisa acertar sempre, olhar para o processo que leva aos acertos pode ser útil para o aprendizado.

E aí, há muita controvérsia em relação ao que é melhor para se aprender, começar a fotografar com filme ou digital. Muitas escolas de fotografia ainda pedem que os alunos usem câmeras mecânicas. A contra-argumentação dos que defendem o aprendizado digital afirma, com propriedade, que ver o resultado imediato permite entender muito mais rapidamente o efeito das técnicas. E, de fato, isso parece difícil de rebater quando se fala do aprendizado técnico, mas quando se pensa no processo fotográfico mais amplo, envolvendo inclusive questões de estilo, a fotografia digital permite um hábito que pode ser prejudicial, apesar de parecer inocente: nós tendemos a apagar imediatamente as fotos que não ficam boas, perdendo, assim, a chance de vislumbrar o nosso raciocínio fotográfico por inteiro e dificultando o entendimento do processo. É claro que, caso se concorde com essa ideia, a questão é facilmente resolvível simplesmente não apagando as fotos.


Gustavo Gomes

Há uma tendência em se achar que o erro é uma falha no processo de aprendizado. Bem, isso é um erro. Os erros são tão ou mais importantes do que os acertos. É importante variar as formas de se tentar chegar em um determinado resultado. Isso leva à criatividade, à flexibilidade e, inevitavelmente os erros farão parte desse tipo de conduta. O indivíduo que não erra é provavelmente muito menos criativo e flexível do que aquele que erra.

Quando falo em aprendizado, não me refiro apenas ao aprendizado que leva a saber fotografar de forma tecnicamente correta, coisa que conseguimos com poucas semanas de treino. Aprendemos o tempo todo, a vida toda, em qualquer coisa que fazemos. Quando estamos tentando desenvolver um estilo pessoal, ou engajados num ensaio fotográfico, estamos aprendendo, acertando e errando o tempo todo. Isso nunca acaba. E me passou pela cabeça que talvez seja interessante ter o hábito de olhar para nossas folhas de contato. Mesmo que se fotografe com câmeras digitais, significa simplesmente olhar a série toda na tela do computador antes de descartar as que não interessa. Usar os erros para estudo pode permitir uma melhor compreensão do nosso raciocínio fotográfico, das nossas intenções e tentativas. Ficar com as fotos ruins na câmera e no computador por alguns instantes antes de mandá-las para a lixeira não nos matará – provavelmente.

Não me dê ouvidos

Um dos efeitos da revolução nas comunicações que vivemos hoje é que todos podem expressar suas opiniões mais livremente do que nunca e conseguirem diálogo e audiência de pessoas com quem, de outra forma, nunca teriam contato. Isso é um feito extraordinário e a marca da vida contemporânea.

Entretanto, ao mesmo tempo vivemos na era do “ter que”. O imperativo é o modo verbal característico do novo milênio, ordenando que façamos, que ajamos, que compremos. Isso se manifesta de forma muito clara na internet, onde sempre haverá dezenas de pessoas dizendo o que você deve fazer.

Suponha que você queira comprar uma nova câmera, ou fazer um curso de fotografia. Faça essa pergunta online e receberá uma enxurrada de respostas, todas dizendo claramente o que você deve fazer. O problema é que cada uma diz uma coisa, o que mostra que as pessoas não concordam tanto assim com o que é melhor para você. Alguma coisa deve estar errada, então. Continue lendo “Não me dê ouvidos”

Sim, a ficha está caindo

Ontem, o Eduardo Buscariolli indicou a leitura de dois posts de fotógrafos colaboradores da National Geographic Brasil. A NatGeo sempre foi vista como uma referência em fotografia, então é interessante saber o ponto de vista dos seus profissionais sobre o tema. Pois bem, no texto “Liberdade”, de Ivan Petterle, há o seguinte questionamento:

Sinto que existe um cansaço evidente na atual fotografia de caráter documentarista. Mostrar o exótico ou a beleza de coisas naturalmente belas, é na minha opinião, uma armadilha para cair-se na obviedade. Desperdiçamos, assim, uma possibilidade de se fazer imagens originais e criativas. É necessário libertar-nos de velhas e batidas fórmulas que apenas trazem tédio ao público espectador.

No outro texto, “Jornada fotográfica feita de ousadia e criatividade”, Roberto Linsker sugere: Continue lendo “Sim, a ficha está caindo”

Fotógrafos profissionais x iniciantes e amadores: uma questão de mercado

Tem sido muito comum ver fotógrafos profissionais reclamando da canibalização do mercado de serviços fotográficos por iniciantes ou amadores sem experiência que adquiriram recentemente câmeras digitais e acreditam que essa pode ser uma atividade rentável, uma vez que a fotografia de hoje não tem os mesmos custos evidentes da fotografia analógica. Geralmente, eles acusam os amadores de realizar serviços a preços muito baixos ou até mesmo de graça, em troca de crédito ou do direito de imagem para montar seus portfólios, sem perceber o quanto prejudicam uma atividade profissional já estabelecida e o quanto há de custos envolvidos. O quanto há de verdade nisso, e como lidar com a situação?

O primeiro problema é que a fotografia é, de fato, uma atividade que não requer prática nem habilidade: para sair fotografando basta ter uma câmera e apertar o botão maior. Qualquer pessoa pode oferecer serviços de fotografia sem o mínimo de experiência, sem ter nenhuma formação, estudo, cursos etc. É óbvio que muito provavelmente as fotografias feitas por esses “profissionais” serão de qualidade sofrível, mas como temos uma educação visual muito fraca, sempre haverá um mercado para isso. Mas é uma faixa de mercado que paga muito pouco (ou nada) e que não tem discernimento para valorizar a boa fotografia. Aquele cliente que quer pagar um terço do preço porque tem um sobrinho que acabou de comprar uma câmera e pode fazer o serviço muito provavelmente não pagaria o preço de um bom fotógrafo profissional de jeito algum e, por não ter discermimento entre a boa e a má fotografia, se pautará apenas pelo preço.

Um outro aspecto é a questão do custo. O fotógrafo amador acha que a fotografia digital não tem custo algum. É uma forma errada de ver o negócio, mas não acho que isso seja uma característica específica desse tipo de atividade. Culturalmente, temos uma educação financeira pífia, o que podemos perceber em diversas áreas, especialmente aquelas em que se atua como autônomo. Por isso, antes de se aventurar em qualquer tipo de empreendimento, vale a pena consultar o site do Sebrae, que inclusive disponibiliza um curso gratuito para o empreendedor individual. Desta forma, é possível, entre inúmeras outras coisas, perceber que a fotografia digital tem uma série de custos, como depreciação do equipamento, material de informática, energia elétrica, internet etc. e que, para lucrar com ela, é preciso um planejamento detalhado de como fazer as contas levarem a resultados positivos.

indie charlie

indie charlie

Em relação à posição dos fotógrafos que tentam barrar esse movimento, praguejando contra a fotografia digital, os amadores, barrando entrada de câmeras em eventos e tudo o mais, acredito que isso seja dar murro em ponta de faca. Não adianta querer remar contra a popularização da fotografia e tentar segurar um mercado que é ruim. Não se pode pedir para que os iniciantes não sejam concorrentes, nem mesmo fazendo apelos para que eles não destruam sua atividade profissional. Os tempos mudam e quem não muda junto é engolido mesmo. Vide os laboratórios fotográficos: aqueles que ficaram esperando que os clientes levassem seus cartões de memória para revelar fotos como faziam com os filmes foram os primeiros a fechar as portas; aqueles que buscaram oferecer serviços diferenciados, fotoprodutos, sessões de estúdio, quiosques e outras inovações estão conseguindo sobreviver.

Para o fotógrafo profissional a receita é a mesma. Não adianta ficar reclamando. É preciso, antes de mais nada, focar no mercado que potencialmente consumiria um serviço fotográfico de qualidade, entendendo o que o cliente quer, quais são as suas expectativas e necessidades. Segundo, é preciso se qualificar para poder oferecer essa fotografia diferenciada, claramente diferente daquela oferecida pelos aventureiros. Aproveitar as novas tecnologias e formas de comunicação, como vejo muitos fazendo ao manter blogs e twitter com suas atividades profissionais, é uma boa pedida. E aí vender o seu produto diferenciado para o cliente certo, ou seja, aquele que está disposto a pagar – e bem – pela boa fotografia.

Fotografia contemporânea

O termo “contemporâneo” refere-se ao que é atual, ao que ocorre no nosso tempo. Sendo assim, seguindo literalmente a expressão, poderíamos classificar qualquer fotografia feita hoje como fotografia contemporânea. Será que é possível, no entanto, reunir algumas características da fotografia atual que a distinguiriam da fotografia feita em outros momentos históricos? Parece uma tarefa muito difícil, pois se tivermos em mente que nunca se fotografou tanto, nunca mostramos e vimos tantas fotos o tempo todo, como estabelecer um panorama? Se pensarmos na quantidade de fotos feitas hoje, provavelmente teremos exemplo de todos os tipos de pontos de vista, de métodos, de técnicas…

Não obstante, talvez seja essa quantidade enorme de fotografias que leve justamente ao que é essencial da fotografia do nosso tempo. Até um tempo atrás, só se fotografava o que era fotografável: um evento significativo, uma viagem, um ensaio planejado etc. As dificuldades técnicas e de custo faziam com que a fotografia fosse a validação de algo especial. Hoje, com a facilidade do digital, se fotografa tudo. Qualquer coisa se tornou fotografável. E, se alguns veem nisso algo banalizador, massificador, há uma contrapartida: vemos em fotografias coisas que não víamos antes. E, se soubermos filtrar, veremos nos blogs, nas redes sociais, nas galerias online a poesia e a beleza do dia-a-dia, do simples viver. A fotografia contemporânea tem como característica especial essa possibilidade de olhar de forma poética para o simples, o sutil, o cotidiano que leva à valorização do trivial. E o que temos em 99% das nossas vidas é o trivial, acho isso muito positivo.

Há também uma questão técnica e estética: uma vez que já entendemos que a fotografia não é um simulacro, e sim uma representação cujo aspecto depende das características do aparelho, não é mas necessário buscar a ilusão perfeita, a fotografia tecnicamente impecável. Daí muitos autores jogarem com métodos alternativos, justamente buscando ressaltar a impressão que querem causar, entendendo a fotografia como uma criação e não como um registro. A fotografia de hoje não precisa mais ser perfeita, nem espetacular, nem contundente. Ela simplesmente mostra o que somos, sem truques ou disfarces.

Como é melhor mostrar do que tentar explicar, reuni algumas fotografias postadas sob licença Creative Commens noFlickr que reúnem as características que comentei. Para ver o nome do autor, basta passar o mouse sobre a foto.

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