Vamos considerar uma pessoa que usa a fotografia no seu cotidiano, sem dedicar a ela importância especial. Para ela, a fotografia é uma forma de registrar um determinado momento ou acontecimento de sua vida. Ela fotografa pessoas de quem gosta, eventos importantes, lugares em que esteve. O sentido da fotografia é dizer: “vivi este momento”, “estive aqui”, “estive com esta pessoa” ou “possuo esta coisa”. Pode-se dizer que um dos aspectos dessa fotografia descompromissada com a fotografia em si, que é a que a maior parte das pessoas pratica, é totalmente voltada para o conteúdo. A única preocupação que a pessoa que fotografa tem em relação ao equipamento ou à maneira como as fotografias são processadas é se elas representam de forma adequada o conteúdo que elas desejam mostrar.
Agora, tomemos como exemplo uma pessoa que gosta de fotografia, que a estuda, que tem a fotografia como profissão ou como atividade amadora séria. A tendência é que as pessoas que têm esse perfil passem a enfatizar mais a forma ao conteúdo. As preocupações se voltam para aspectos como composição, iluminação, nitidez, cores, desfoque. A partir dessas preocupações, surge o interesse por equipamentos novos, como câmeras, lentes, filmes, programas de edição de imagem, a fim de ter mais domínio sobre a forma.
Entretanto, não é incomum que a ênfase na forma se torne o único foco da fotografia, levando a uma busca pela aparência perfeita de uma imagem sem conteúdo. Isso acontece, em parte, porque o caminho para a forma perfeita é mais visível e conhecido; ele se dá pelo estudo e aquisição de técnicas e equipamentos. Por outro lado, desenvolver o conteúdo não é tão simples. É mais fácil saber “como fotografar” do que “o que fotografar”.
A forma não se relaciona com o conteúdo em termos de ou, mas sim de e. Se você reparar bem, perceberá que bons fotógrafos são aqueles que conseguem trabalhar bem esses dois campos em suas fotografias. E, mais do que uma forma de fotografar previamente concebida como boa, a forma da boa fotografia é aquela que dialoga com o conteúdo. Portanto, vale a pena refletir sobre como anda, na nossa fotografia, o equilíbrio entre essas duas áreas. Às vezes, quando se depara com uma estagnação na nossa produção fotográfica, uma saída pode ser buscar maneiras de desenvolver a que tem recebido menos atenção.
Vale ressaltar, também, que esses conceitos são puramente didáticos. Na verdade, forma é conteúdo e conteúdo é forma. Cada fotografia é uma coisa só. O que mostramos e como mostramos são apenas perguntas que fazemos para direcionar o nosso olhar, mas o fazer fotográfico é um só.
A busca do significado na fotografia — na forma, no conteúdo, no fazer e no olhar — é tema da oficina O Nome das Coisas, que será realizada em agosto de 2014 no Espaço f/508, em Brasília.
No próximo dia 21 de agosto, estarei novamente no Espaço F/508 de Fotografia, em Brasília, para coordenar a oficina O Nome das Coisas. A proposta do curso é trabalhar o problema do significado na fotografia, com exercícios relacionados ao fazer fotográfico, ao olhar e à construção de significado.
Será minha quarta ida ao F/508. Em 2007, estive pela primeira vez no espaço para um debate sobre fotografia. Em 2011, realizamos a oficina “Interpretação, Realidade e Desconstrução”, baseada nas obras de Arlindo Machado e de Flusser. Em 2013, foi a vez da Fotografia Contemplativa. E agora o tema será a relação entre o texto e a imagem.
Início: 21 de agosto
Horários
Quinta-feira (21): das 19h às 21h
Sexta-feira (22): das 19h às 22h
Sábado (23): das 9h às 12h e das 14h às 17h
Total: 03 aulas
Carga horária: 12 h/aula
Professor: Rodrigo Fernando Pereira
Rodrigo Fernando Pereira é psicólogo, com mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Sua atuação clínica tem fundamentos na teoria comportamental, associada a práticas de atenção plena (mindfulness), aceitação e contato com o momento presente. Desde 2007, mantém o blogCâmara Obscura, voltado a reflexões sobre a fotografia. Nesse mesmo ano, iniciou sua colaboração com o f/508, na forma de um bate papo informal. O trabalho conjunto continuou na forma de publicações (Sentido Vago e Transformações) e na oficina Fotografia: Desconstrução, Realidade e Interpretação, realizada em 2011.
Sobre o Curso
A fotografia é um campo aberto: é documento, é arte, é narrativa. Ao mesmo tempo, não é nada disso. Todas as tentativas de definir ou classificar a fotografia falharam. Por isso, a fotografia pode ser qualquer coisa que o autor quiser. Por outro lado, também será qualquer coisa que o observador quiser. Como fica o significado no meio de tudo isso? É possível transmitir uma mensagem através da fotografia? Qual é a relação que se estabelece entre a imagem e as palavras? A oficina “O Nome das Coisas” propõe um mergulho nessas perguntas, procurando as pontes que ligam fotografia e texto, imagens e conceitos.
Atividade intra e extra-classe ao longo do curso: construção de significado na fotografia
Programa
1. Forma (quinta, 21, das 19h às 22h) O que é a fotografia? Desconstrução do modo de fotografar Há significado na forma? 2. Conteúdo (sexta, 22, das 19h às 22h) Onde está o significado na fotografia? Reflexão sobre o significado do fazer pessoal Técnicas de desconstrução do olhar 3. Produção (sábado, 23, das 9h às 12h) Exercícios: “leitura” através da experiência Análise da produção de Hiroshi Sugimoto Criação de textos e narrativas 4. Apresentação (sábado, 23, das 14h às 17h) Apresentação dos trabalhos de fotografia e texto Evocação de significados Discussão: como o significado é transportado pela fotografia?
A proibição de fotografar, especialmente em locais públicos ou abertos ao público, como parques, shoppings, museus, shows, parece ser uma das coisas que mais incomoda os fotógrafos, especialmente os amadores entusiastas. É comum que haja reclamações de pessoas que são impedidas de fazer fotografias nesses locais, especialmente se estão com equipamento que sugere uso comercial das imagens, como câmeras DSLR.
Não pretendo aqui abordar o aspecto legal dessas proibições. Em relação a esse assunto, há o artigo “O que podemos fotografar legalmente?“, redigido por Paula Menezes e publicado no Portal Photos. Mas, só para resumir: você pode fotografar tudo que está em logradouro público; espaços privados (como lojas, shoppings, casas de show) dependem de autorização de quem administra. Mas a questão maior não é tirar fotos, e sim o uso que será feito delas, sendo que há discussão inclusive se imagens monumentos públicos podem ou não ser usados com fins comerciais. Tampouco pretendo discutir a importância da liberdade de imprensa e a possibilidade de fotografar manifestações, acontecimentos de interesse público, abusos de autoridade e situações do tipo.
Isto posto, o que me interessa é, na verdade, os aspectos psicológicos do fotógrafo amador no momento em que é proibido de fotografar, já que parece que muitos fotógrafos recebem esse impedimento como uma grande ofensa, como se o direito de fotografar fosse o artigo mais importante da constituição. Não é raro ver quem se vanglorie de ter fotografado num local em que há essa proibição, ou que conseguiu repelir o veto à fotografia com uma carteirada.
Para entender esse processo, primeiro é preciso entender qual a função da fotografia para aquele que fotografa. O fotógrafo amador, especialmente quando está num local de interesse e decide fotografar, pode estar motivado por diversas razões: para mostrar que esteve ali; para dizer: eu vi e vivi isso; para levar consigo uma memória daquele local; para aplicar uma certa estética ou visão através da câmera a algo de interesse. Se olharmos bem, podemos reunir todos esses motivos e alguns outros possíveis em uma categoria: afirmação do eu.
Através da fotografia, eu me afirmo. Ela é um instrumento pelo qual eu posso garantir que vi, que fiz, que vivi, que passei por aquilo. Daí o costume que se tem de alimentar as redes sociais com selfies com locais, pessoas ou situações interessantes. Mas o entusiasta de fotografia vai além, ele quer mostrar que tem uma “visão” especial sobre um determinado tema, ou um equipamento avançado que, na sua perspectiva, lhe permite evidenciar a beleza de algo que não é visto pelos olhares comuns — especialmente os daqueles que tem um equipamento “inferior”.
Pois bem, está lá o fotógrafo entusiasta gozando do prazer de criar sua arte única, quando ele é advertido por um segurança, uma placa, um aviso sonoro. Com isso, ele é tolhido na sua possibilidade de afirmação egóica. Frustrado, ele pode se voltar contra o agente da proibição: muitas vezes é um funcionário — que é visto como ignorante, por não saber que ele não é um profissional — ou a administração do local, ou o governo. Outra possibilidade é a de tentar fotografar mesmo sem ter autorização, vangloriando-se depois do eu feito, já que nesse caso pôde afirmar-se não só pelo fazer fotográfico, mas também por ter se colocado acima das regras.
Seja qual for o comportamento gerado pela não-aceitação da proibição, a reação exagerada denota a incapacidade de lidar com a frustração, de se relacionar com o belo sem o uso da fotografia e de simplesmente aproveitar o momento. É de se admirar que se priorize a fotografia a ponto de entrar em conflito ou claramente desrespeitar o outro, quando ela, para o amador, deveria ser uma atividade de lazer, de desenvolvimento pessoal, de criação. Quando se transforma a fotografia numa batalha guiada pelo próprio ego, talvez valha a pena considerar qual o sentido que ela tem.
Nós gostamos de criar conceitos. Nomes, categorias, rótulos. Sua função é nos ajudar a descrever e entender o mundo. Olhamos para o mundo e, a partir dele, inventamos palavras que significam algo. É muito prático: em vez de termos que descrever ou olhar para o mundo toda vez que queremos nos referir a ele, podemos usar apenas uma ou duas palavras e pronto. Mas, com o tempo, esquecemos que a linguagem não é o mundo, e que os conceitos que criamos não existem por conta própria: eles são apenas uma representação simplificada de algo que vai muito além.
Um desses conceitos é o de estilo na criação fotográfica. Olhamos para os trabalhos de alguns fotógrafos e percebemos que há algo ali. Um padrão, uma repetição, uma conjugação de elementos. No assunto, na estética, na forma de fazer. Algo que, após vermos algumas obras, nos permite identificar outras. O estilo é aquilo que torna as obras reconhecíveis. É a coesão.
Muitos fotógrafos iniciantes acreditam que precisam criar, inventar ou descobrir seu estilo, como se o estilo surgisse antes da produção. Querer encontrar um estilo antes de se aprofundar no fazer fotográfico é como querer estar bronzeado antes de sair no sol. É colocar o carro na frente dos bois.
Esquecem-se que o estilo, como algo isolado, não existe: é apenas uma palavra para descrever uma linha tênue e abstrata que percorre a produção de um autor. Em termos concretos, não há estilo, há apenas o trabalhos. O fotógrafo cria fotografias, ele vê o mundo e o retrata. O que chamamos de estilo é uma criação mental, um conceito, uma interpretação que deriva das obras na visão do espectador. Se nos prendermos demais ao conceito de estilo, perderemos o contato com a obra. Pior, podemos artificializar demais a nossa própria fotografia ao querer enquadrá-la em uma ideia sem que haja conteúdo que a sustente.
Se admiramos o “estilo” de um fotógrafo, na verdade admiramos o que ele faz, como ele faz. É a força do seu trabalho. Quando o trabalho é intenso, quando há dedicação, há o resultado. Para quem cria, é o processo que conta. Se olharmos apenas para o resultado, sem entender o caminho até lá, ficaremos perdidos.
Esqueça o estilo e concentre-se na busca. O que existe, o que você faz, o que os outros veem é a sua fotografia. O que chamamos de estilo é apenas uma consequência, que acontece dependendo da força do seu fazer fotográfico. Estilo é o resultado natural de uma busca sincera.
Há alguns anos, cheguei a ter sete câmeras fotográficas em casa. A maior parte era de máquinas analógicas: reflex, telemétricas e compactas. Uma delas era médio formato, as outras usavam filme 35mm. As digitais eram duas, sendo uma compacta avançada e uma reflex. Havia também uma boa quantidade de lentes e adaptadores, que me permitiam usar as lentes das câmeras analógicas na reflex digital.
Todo esse equipamento “pedia” uma série de acessórios, que também fui adquirindo ao longo dos anos. Tripé, dois flashes, um scanner para os negativos, mesa de luz, impressora, computador de mesa, HD externo, fotômetro, filmes, filtros, tanque para revelação, químicos. A maior parte desse material, novo e usado, foi comprada de várias fontes —desde lojas de rua até o eBay, passando por lojas em viagens para o exterior — num período de três a quatro anos, em que minha paixão pela fotografia teve seu pico.
A relação com a fotografia não parava nos equipamentos. Tive diversos livros, que comprei ou que ganhei de presente de pessoas que sabiam do meu interesse pelo assunto. Em um determinado momento, entre câmeras, lentes, acessórios e livros, toda a minha “coleção” de materiais fotográficos era relativamente grande.
Eram coisas que eu de fato usava. Nunca comprei nada que não fosse ser útil. Nos momentos de maior atividade, cheguei a fotografar com câmeras utilizando todo o equipamento, como o fotômetro externo, revelar filmes preto e branco em casa, escanear e tratar. Os livros que comprei e ganhei foram lidos, relidos e consultados. Sinto que aproveitei todo esse material.
Com o tempo, no entanto, minha fotografia foi ficando mais simples. Não tinha o mesmo entusiasmo para carregar muita coisa, para fazer uma fotografia muito complicada, para revelar meus próprios filmes. Precebi que a maior parte das fotografias que eu fazia poderiam ser tiradas com qualquer câmera. Pouco a pouco, fui me desfazendo do equipamento. Doei os livros, o computador de mesa, algumas câmeras. Emprestei outras sem esperar que fossem devolvidas. Os flashes quebraram e não me preocupei em consertá-los ou substitui-los.
Em 2012 comprei minha última câmera: uma compacta avançada, usada, que cabia no bolso. Em diversas viagens e momentos significativos, levei apenas ela. Foi mais do que suficiente. Hoje tenho apenas essa câmera digital e mais uma de filme, com uma lente. Às vezes, quando vejo os equipamentos mais novos, fico um pouco tentado. Ao perceber isso, procuro valorizar aquilo que já tenho. Reconheço, aí, que essas duas câmeras que uso já são suficientes, se não forem excessivas. E, se restar algum impulso de comprar algo novo, é só lembrar do peso que é carregar uma câmera grande, preocupar-me de sair na rua com um equipamento caro, fora tudo aquilo que posso fazer com o dinheiro que seria gasto para comprar e manter um equipamento novo, que o resto de vontade logo desaparece. E fico em paz.
No ano passado, fui a Brasília para uma oficina de fotografia contemplativa no f/508. No dia da saída fotográfica, estava só com o celular. Foi mais do que suficiente para acompanhar a proposta do curso. Não sei se a fotografia que faço se tornou um reflexo do equipamento que levo ou o contrário. Talvez seja algo anterior: uma valorização do simples e do aqui e agora que precede ambos.
Com o objetivo de vivenciar essas experiências, o budismo Zen segue por caminhos que, através de um recolhimento metódico e sistemático, conduzem o homem a perceber, no mais profundo da sua alma, o inefável que carece de fundo e de forma. Em relação ao tiro com arco, isso significa (expresso de maneira bastante aproximada e talvez por isso passível de uma interpretação errônea) que os exercícios espirituais suscetíveis de constituir uma arte da técnica esportiva sejam exercícios místicos. O tiro com arco não persegue um resultado exterior, com o uso do arco e da flecha, mas uma experiência interior, muito mais rica.
Eugen Herrigel — A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen
Henri Cartier-Bresson foi um dos grandes fotógrafos do século XX, sendo até hoje referência para muitos amantes da fotografia. Perguntado sobre suas influências, mais de uma vez Bresson mencionou um livro marcante para a sua forma de fotografar — e que não tinha, aparentemente, nenhuma relação com a fotografia — A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugen Herrigel. Neste livro, o alemão Herrigel conta a sua experiência ao aprender o tiro com arco japonês (Kyudo) com um mestre Zen. O tiro com arco não tinha como objetivo o desempenho esportivo. Era, na verdade, um caminho para a iluminação, ou o contato com o Zen. Qualquer atividade pode ser usada para esse fim, e no Japão o Zen influencia tradicionalmente práticas como a cerimônia do chá ou os arranjos de flores, além do tiro com arco.
Zen é uma palavra que já se tornou parte do nosso cotidiano, sendo associada à calma e a tranquilidade. Mas o Zen “de verdade” é uma escola de budismo que se originou na China e migrou para o Japão. O que é o Zen, então? O que significa? Bem, não dá pra falar em palavras. Qualquer tentativa de explicá-lo trairá sua própria essência, como o próprio Herrigel comenta:
A simples decisão de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um sério exame de consciência, pois tem diante de si o célebre exemplo de um dos maiores mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silêncio, imutável como se nada tivesse ouvido.
Embora não possamos entender diretamente essas experiências com nosso racionalismo ocidental, que precisa apreender tudo em palavras, podemos utilizar a nossa curiosidade em relação à escolha de Bresson por esse livro como sua maior influência. É possível usar a fotografia como um caminho para o aprimoramento pessoal, como instrumento para a busca da verdade?
Quer quiser responder essa pergunta precisará entrar no Zen por si só, abandonando expectativas. Além disso, deve deixar para trás tudo que aprendeu, todos os conceitos que têm sobre aquilo que é e faz — pois, se tem algo que o Zen não é, é conceitual. Da mesma forma que o objetivo do arqueiro zen não é acertar o alvo, e sim acertar a si mesmo, o do fotógrafo que se embrenhar pelo Zen buscará algo muito além de produzir belas fotografias. Há pouco mais que pode ser dito. Uma das maneiras de prosseguir talvez seja simplesmente ler o livro de Herrigel. Baixe uma versão em PDF de A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen ou, ainda, uma versão em inglês: Zen in the Art of Archery.
Gosto muito de ver fotografias. Não ligo tanto para fotógrafos famosos, gosto mesmo de ver a produção dos milhares de fotógrafos anônimos que existem por aí. Uma das formas que utilizo para isso é navegar pelo Flickr, por fóruns de fotografia e sites de fotógrafos amadores. Embora na maior parte do tempo eu passe admirando as imagens, reconheço que de vez em quando bate uma “inveja fotográfica”.
A inveja fotográfica é aquela voz no fundo da cabeça que diz coisas como: queria ter feito essa foto, vivido esse momento, estado nesse lugar, ter essa câmera, visto essa luz, conseguido essas cores. Imagino que isso deva ser algo comum entre os que gostam de fotografia e algo meio inevitável. A questão é: o que fazer com isso?
É claro, podemos não fazer nada. Mas sinto que esse tipo de sensação, quando estamos vendo uma foto, nos faz perder a conexão com a fotografia. É como se tirássemos os olhos da imagem e os virássemos para nós mesmos, para nossas faltas, nossos desejos, nossos anseios. Então, quando sentimos a inveja fotográfica, surge uma boa oportunidade para nos encararmos.
Muitas vezes, não conseguimos fazer isso. Não percebemos que a sensação ruim que temos ao ver as fotos do outro tem mais a ver conosco do que com o outro. E aí, a inveja pode se tornar raiva, agressividade ou desdém. Critica-se o trabalho, o equipamento e até o fotógrafo. Uma das situações em que vejo isso com frequência é quando um fotógrafo tem uma proposta artística diferente e consegue reconhecimento. Quando não se consegue “engolir” a repercussão da fotografia do outro, fala-se que o trabalho não tem qualidade técnica, não tem conteúdo, que é de mau gosto e coisas do tipo. Nesses casos, a crítica tem menos a ver com a produção em si e muito mais com as dificuldades de quem está criticando — não raramente, sob a crítica há a inveja da produção ou do sucesso.
Por outro lado, se reconhecermos que a sensação negativa provocada pelo trabalho do outro tem a ver com nosso próprio ego, há uma oportunidade de mudança. Podemos, por exemplo, usar aquele trabalho como inspiração. Tentar fazer algo parecido, usar o outro como modelo, é algo totalmente válido no campo da criação fotográfica. Se a questão é o equipamento, talvez seja a questão de trocar o equipamento, ou viajar para o lugar em que aquela foto magnífica do outro foi feita.
Mas essas alternativas devem ser consideradas com cuidado. Pois podemos nos perder nesse processo de pura imitação, comprando câmera atrás de câmera, ficando obcecados por conseguir uma determinada foto e até esquecendo de viver para registrar tudo em fotografias. Podemos olhar para o outro, mas depois há o momento, fundamental, de olhar para si mesmo e para a própria produção. E aí, entender que não é possível tirar todas as boas fotos do mundo, ter todos os equipamentos, estar em todos os lugares. Percebemos que temos limitações, e ao longo da vida teremos apenas a nossa própria história para contar. Em vez de querer tudo, podemos passar a querer fazer o melhor possível dentro dos nossos limites, dentro daquilo que vivemos de fato — e não do que poderíamos ter vivido.
Se entendermos isso, algo muito interessante acontece: passamos a admirar, sem inveja, o trabalho do outro. Aprendemos a valorizar o diferente, pois vemos que o outro tem seu lugar e nós temos o nosso — e eles não precisam ser conflitantes. A inveja desaparece porque não sentimos mais necessidade de tomar posse da fotografia alheia. Deixamos o outro ser quem ele é e ao mesmo tempo valorizamos o nosso próprio trabalho, pois compreendemos que a nossa produção e a do outro não estão competindo, e sim coexistindo. Aceitamos, enfim, que cada caminho é único.
Quando começamos a nos envolver um pouco mais seriamente com a fotografia, uma das primeiras coisas que pensamos é “quero ser um bom fotógrafo”. É natural, pois reconhecemos que as nossas fotografias, no início, não se parecem com aquelas que vemos em revistas, sites, jornais ou galerias de arte. A partir da percepção dessa diferença, imaginamos que há um caminho a ser percorrido, para que possamos criar fotografias tão impactantes e bonitas como aquelas que tomamos como modelo.
O problema é que na verdade não sabemos muito bem o que é um bom fotógrafo. Nós reconhecemos um bom fotógrafo quando vemos um, mas não sabemos muito bem por quê. Para resolver esse problema, tentamos estabelecer alguns critérios para entender porque fulano é um bom fotógrafo, de modo que possamos ter alguma ideia de como é esse caminho que devemos percorrer. Imaginamos que ser um bom fotógrafo é saber operar uma câmera, saber usar a luz, achar assuntos interessantes, ou até mesmo ganhar dinheiro com a fotografia, ser reconhecido ou ter suas fotos publicadas em algum local de destaque. Cada um de nós cria uma imagem do que é esse bom fotógrafo e se põe a perseguir esse ideal. Dependendo das qualidades que acreditamos que um bom fotógrafo possui, estabelecemos um método para tentar chegar nesse patamar.
Muitas pessoas persegue o caminho técnico, a partir da concepção de que um bom fotógrafo é aquele que sabe como mexer numa câmera. Para esses, a receita é saber usar o modo manual, comprar os melhores equipamentos, entender como usar os programas de edição de imagem.
Alguns outros irão pelo caminho do estudo da arte. Visitam museus, listam os movimentos da história da arte, conhecem os fotógrafos mais reconhecidos nesse campo. Fotografam conceitualmente, buscam ser originais e criar um estilo estético próprio.
Outros podem seguir o ideal jornalístico. Preocupam-se em encontrar eventos que sejam dignos de serem retratados. Estudam os melhores momentos e ângulos para transformar uma cena em uma imagem impactante.
Mais uma possibilidade é seguir o ideal publicitário. Fotografando objetos ou cenas de modo a embelezá-los, torná-los o mais atraentes possível. Geralmente focam na fotografia de estúdio, trabalhando com luzes, sombras, cores e formas. Têm como objetivo aquela fotografia perfeita e atrativa.
É claro que os exemplos acima são um pouco caricatos. As pessoas geralmente terão algum grau de mistura desses modelos, ou se identificarão com outros caminhos que não citei. Mas a intenção é apenas mostrar que estabelecemos mentalmente um caminho e acreditamos que lá no fim dele, onde o arco-íris acaba, estará esse pote de ouro, a “boa fotografia”.
A questão é que, lá no começo, quando pensamos “quero ser bom”, nós na verdade já caímos numa armadilha que pode nos afastar da criação, da expressão autêntica daquilo que somos e fotografamos. O “quero ser bom” cria um conceito, um ideal que é colocado lá na frente, e no momento em que passamos a persegui-lo, damos as costas para a alma da nossa fotografia, pois parece que tudo que fazemos antes desse momento futuro perde seu valor. Se tirarmos da frente esse conceito do que é bom ou ruim, percebemos que tudo aquilo que fotografamos é importante, bonito, significativo. Cada momento que passa torna-se inalcançável. E, enquanto nos preocupamos com os nossos próprios critérios para sermos bons, a vida, os momentos e as cenas escorrem pelos nossos dedos.
Nós não precisamos perseguir um ideal, nem nos preocuparmos com sermos bons. Por que desvalorizar o que se tem hoje para colocar lá na frente um objetivo, um dia milagroso em que seremos bons — em que só aí nossas fotografias serão dignas? Em vez disso, podemos focar em cada passo que damos nesse caminho, olhando para o agora e não para o futuro. Entrar em contato com o assunto, com a cena, com o momento. Fotografar como se cada fotografia fosse a única. Porque, se você pensar, não existe essa boa fotografia futura. Só existe, para sempre, aquela que você está fazendo agora.
Uma das regras que se dissemina para aqueles que querem começar a escrever é: “escreva sobre o que você conhece”. É uma boa dica, pois é mais provável que você crie uma história melhor sobre aquilo que já viveu, sentiu ou experimentou. Talvez possamos pensar na mesma ideia para a fotografia.
Temos uma ideia pré-concebida daquilo que vale a pena ser fotografado. Paisagens fantásticas, viagens extraordinárias, eventos especiais. É claro que essas coisas merecem fotografias, mas elas são uma parte muito pequena das nossas vidas. A melhor história que você pode contar com a sua câmera é aquela que você vive cotidianamente, com a qual tem intimidade e proximidade. Podemos achar que essa nossa história não tem nada de fantástico que justifique fotografar, mas é um engano: se você souber olhar, uma ida à padaria pode ser tão interessante quanto um cruzeiro marítimo.
Proponho, então uma série de exercícios a fim de direcionar o olhar e o fazer fotográfico para o familiar, o cotidiano, o simples.
1. Olhe a sua volta O que faz parte da sua vida? Quais são os lugares que você frequenta diariamente? Por quais ruas você passa? Com que pessoas interage? Com quem você convive? O que você ama? O que você odeia?
Tente fazer uma lista com as respostas para essas perguntas. Apenas registre, catalogue. Passe a fotografar mentalmente conforme você vive seu dia a dia. Faça um inventário do que é fotografável do seu cotidiano. Coloque no papel, crie categorias, divida por assuntos ou temas. Leve o tempo que quiser nessa etapa. Se tiver que passar meses só olhar, que seja.
2. Reconheça
A partir das coisas que você listou fotograficamente no primeiro exercício, comece a explorar o significado dos lugares, a relação afetiva com as pessoas, os detalhes dos ambientes em que você vive. Tente pensar no que define cada pessoa, na beleza que há nos seus caminhos, na essência de cada momento. Não fotografe nada. Apenas repare, note, descubra. Olhe para seus sentimentos, suas sensações e seus pensamentos a cada momento que você reconhece algo como relevante. Depois, anote tudo isso, se quiser. Mais uma vez, leve o tempo que quiser: “cozinhe” as ideias na sua cabeça à vontade.
3. Fotografe Agora é a hora de fotografar tudo aquilo que você passou a perceber e a valorizar nos exercícios anteriores. Aqui você pode estudar qual a melhor técnica, o melhor equipamento, a melhor luz e a abordagem que você vai usar para que a fotografia mostre as coisas que você vive tais quais você as enxerga. Pense na relação que você tem com cada lugar ou pessoa, e tente fazer com que isso esteja presente de alguma forma nas fotografias. Entretanto, seja honesto: sua vida não precisa de retoques. A questão aqui é encontrar o valor nas coisas como elas são e não criar uma reinterpretação fantástica.
4. Conte sua história Por último, você pode criar uma série de fotos. A edição, ou seleção das fotos que entram ou saem, sempre é algo difícil. Geralmente temos problemas em dizer não para aquilo que produzimos. Mas uma série curta, que tenha força naquilo que expressa, é melhor do que uma série longa, prolixa e repetitiva. Apague sem dó. Não use a estética ou os aspectos técnicos como o principal critério para escolher as fotos. Lembre-se de que não se trata de agradar os outros ou de atestar a sua capacidade como fotógrafo, mas sim de reconhecer o valor naquilo que o cerca. As diretrizes devem ser, então, a relevância afetiva e a autenticidade. Se você vê na foto aquilo que vê na vida, a foto ficou boa. Foco, enquadramento e outros aspectos são menos importantes aqui.
Não se preocupe em criar nada extraordinário, nem com a opinião de pessoas que não façam parte da sua vida. Faça esses exercícios por você e pelo que vive. Preste uma homenagem. Use sua câmera como um instrumento de reconhecimento e valorização daquilo e de quem você escolheu fotografar. Pois são essas pessoas, espaços e lugares que compões a sua vida, é isso que você é.
Quando a fotografia assume um papel de relativa importância na vida de alguém, ela pode ser uma ilustração de como aquela pessoa encara a sua própria existência e o mundo à sua volta. Sendo assim, a fotografia pode ser um instrumento de autoconhecimento. Para tanto, é preciso olhar para a própria produção e, mais importante ainda, para a maneira como a fotografia permite nos relacionar com o mundo. Algumas perguntas podem servir como guia para a compreensão de si através da fotografia, como as que são listadas abaixo. Gostaria de ressaltar, no entanto, que essas são apenas direções iniciais, quase uma brincadeira. Pois o autoconhecimento é algo que demanda tempo, coragem e persistência a fim de conseguir olhar para dentro e reconhecer aquilo que se é de fato, pois não é raro que passemos grande parte da vida fazendo o oposto, que é fugir de nós mesmos.
1. Qual é a sua motivação para fotografar?
Muitas razões podem nos levar a começar a fotografar. O encantamento com a estética da fotografia, com sua expressividade, com sua força. A presença da fotografia é quase universal na nossa cultura. E, de uma forma ou de outra, todo mundo fotografa. Sendo assim, é um passo simples encará-la como uma atividade que nos proporcione algum tipo de significado, ou de sentido. Podemos tentar fazer com que a nossa fotografia fale por nós, expresse nossa visão. Todos nós procuramos por algo, e a arte — no caso, a fotografia — pode ser um pilares em que sustentamos nossa busca.
2. O que você consegue através das suas fotos?
Nem sempre aquilo que nos mantém fotografando foi o que fez com que começássemos a fotografar. No meio do caminho, podemos conquistar o reconhecimento que almejávamos, o que pode ser tornar uma armadilha: pois passamos a ter como objetivo manter o reconhecimento, e por isso passamos a fotografar para agradar, para manter-se num determinado padrão que funcionou. É fácil nos enrijecer e sabotar a própria criatividade quando a fotografia começa a dar certo. Perguntar-se, então, qual a função atual da fotografia na própria vida é uma forma de entender o que valorizamos, o que exerce influência sobre nós e, sobretudo, se o caminho que estamos percorrendo é o que de fato queremos percorrer. Se não for, talvez seja necessário deixar de fotografar apenas para agradar e receber elogios. Entretanto, passa-se a ser mais coerente com a motivação pessoal, resgatando a autenticidade, muitas vezes tendo a rejeição como preço.
3. O que você fotografa?
Pessoas? Lugares? Detalhes? Formas? Fotografamos aquilo que nos interessa, que nos é importante, que nos diz algo. Em resumo, fotografamos aquilo que vivemos, que experimentamos. Não podemos fotografar algo com o que não estamos tendo contato direto, no momento. Nas nossas fotos encontramos aquilo com o que nos envolvemos.
Às vezes gostaríamos de fotografar algo diferente daquilo que conseguimos de fato fotografar. Sonhamos com fotografar certos lugares, pessoas ou situações. Podemos entender esse desejo como um desejo de que a nossa vida talvez fosse diferente. Perguntar-se “fotografo aquilo que é significativo para mim?”, de certa forma pode significar: “vivo a vida que quero viver?”.
4. Qual a importância da técnica para você?
A forma como fotografamos e como editamos as nossas fotos pode dizer bastante sobre a nossa forma de lidar com as situações da vida, de forma geral. Você fotografa de forma espontânea, despreocupada ou meticulosa, buscando a melhor técnica, a melhor luz, o melhor enquadramento? O quanto você é severo com a qualidade das suas próprias fotos? Você busca controlar o ambiente em que fotografa, montando cenários, criando luzes? Ou apenas fotografa aquilo que vê, do jeito que está lá? Deixa a fotografia como ela sai da câmera ou passa um bom tempo fazendo ajustes nos programas de edição de imagens? Não existe um jeito certo ou errado de abordar a fotografia, do mesmo jeito que não há uma maneira certa de se viver. A questão apenas é identificar qual é a sua maneira.
5. Qual a importância do equipamento para você? É impossível fotografar sem uma câmera. A forma como nos relacionamos com a nossa fotografia muitas vezes engloba a forma como nos relacionamos com nosso equipamento. Geralmente desenvolvemos um certo apego, pois é a câmera que nos permite registrar aquilo que vivemos ou criar expressões do que sentimos em uma determinada experiência. No entanto, não é raro que a fotografia se torne um mero pretexto para o consumo e a manipulação de aparelhos. Você sabe que está nesse ponto quando passa mais tempo “testando” seus equipamentos do que de fato colocando-os em uso. Quando de fato estamos usando o equipamento para fotografar, ele fica em último plano. Quando fotografamos para usar o equipamento, ele é o protagonista.
6. O que você faz com as suas fotos?
Depois de fotografar, as fotos podem ter diversos destinos: permanecerem esquecidas em algum HD ou cartão de memória, serem publicadas em redes sociais ou galerias online, impressas, emolduradas, presenteadas, expostas. Olhar para esse aspecto permite esclarecer melhor qual é o papel da fotografia para você: ela pode servir apenas para recordação, para expressão, para buscar reconhecimento ou dinheiro. Mostrar fotografias é uma forma de falar. De que forma você fala? Você monologa, dialoga? Sua fala é simples ou é complexa? O que você tem a dizer? E a sua fotografia, o que diz?
7. O que você vê quando olha para suas fotos?
Quando você olha para suas fotos, você vê a si mesmo. Na maior parte das vezes, você não estará lá — a menos que você seja um aficionado por autorretratos. Ali estará o que você viu, o que você viveu. Quando você percebe o fluxo do tempo, dos interesses, dos lugares e das pessoas cuja luz passou pelas lentes da sua câmera, você tem uma boa impressão disso que chamamos de “eu”. É possível que esse “eu” seja algo ilusório — assim como as fotografias, que também não são a realidade — mas é nessa ideia de continuidade que se baseia nossa identidade.
É bom lembrar, entretanto que há um porém nas fotografias e que nos adverte que talvez não devamos nos apegar demais ao que está ali. A fotografia, por mais fantástica que a possa ser, tem uma limitação crônica: está sempre situada num momento que não é mais. Da mesma forma, você não é mais o que foi ontem, e amanhã será diferente do que é hoje. Conhecer-se significa reconhecer esse fato básico sobre nós mesmos: que o que encontrarmos será sempre algo momentâneo, tal qual um instantâneo fotográfico.