Com o objetivo de vivenciar essas experiências, o budismo Zen segue por caminhos que, através de um recolhimento metódico e sistemático, conduzem o homem a perceber, no mais profundo da sua alma, o inefável que carece de fundo e de forma. Em relação ao tiro com arco, isso significa (expresso de maneira bastante aproximada e talvez por isso passível de uma interpretação errônea) que os exercícios espirituais suscetíveis de constituir uma arte da técnica esportiva sejam exercícios místicos. O tiro com arco não persegue um resultado exterior, com o uso do arco e da flecha, mas uma experiência interior, muito mais rica.
Eugen Herrigel — A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen
Henri Cartier-Bresson foi um dos grandes fotógrafos do século XX, sendo até hoje referência para muitos amantes da fotografia. Perguntado sobre suas influências, mais de uma vez Bresson mencionou um livro marcante para a sua forma de fotografar — e que não tinha, aparentemente, nenhuma relação com a fotografia — A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugen Herrigel. Neste livro, o alemão Herrigel conta a sua experiência ao aprender o tiro com arco japonês (Kyudo) com um mestre Zen. O tiro com arco não tinha como objetivo o desempenho esportivo. Era, na verdade, um caminho para a iluminação, ou o contato com o Zen. Qualquer atividade pode ser usada para esse fim, e no Japão o Zen influencia tradicionalmente práticas como a cerimônia do chá ou os arranjos de flores, além do tiro com arco.
Zen é uma palavra que já se tornou parte do nosso cotidiano, sendo associada à calma e a tranquilidade. Mas o Zen “de verdade” é uma escola de budismo que se originou na China e migrou para o Japão. O que é o Zen, então? O que significa? Bem, não dá pra falar em palavras. Qualquer tentativa de explicá-lo trairá sua própria essência, como o próprio Herrigel comenta:
A simples decisão de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um sério exame de consciência, pois tem diante de si o célebre exemplo de um dos maiores mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silêncio, imutável como se nada tivesse ouvido.
Embora não possamos entender diretamente essas experiências com nosso racionalismo ocidental, que precisa apreender tudo em palavras, podemos utilizar a nossa curiosidade em relação à escolha de Bresson por esse livro como sua maior influência. É possível usar a fotografia como um caminho para o aprimoramento pessoal, como instrumento para a busca da verdade?
Quer quiser responder essa pergunta precisará entrar no Zen por si só, abandonando expectativas. Além disso, deve deixar para trás tudo que aprendeu, todos os conceitos que têm sobre aquilo que é e faz — pois, se tem algo que o Zen não é, é conceitual. Da mesma forma que o objetivo do arqueiro zen não é acertar o alvo, e sim acertar a si mesmo, o do fotógrafo que se embrenhar pelo Zen buscará algo muito além de produzir belas fotografias. Há pouco mais que pode ser dito. Uma das maneiras de prosseguir talvez seja simplesmente ler o livro de Herrigel. Baixe uma versão em PDF de A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen ou, ainda, uma versão em inglês: Zen in the Art of Archery.
Foto do cabeçalho: Jordan Woods
O difícil é não racionalizar quando somos criados e temos expectativas da cultura ocidental.
E mesmo que a busca tente, eu acho que para nós é dificílimo não racionalizar.
A meditação é uma das práticas que são tentadas aqui no ocidente visando esta espécie de transe, ou da não-ideia, do não-pensamento, da iluminação ou até mesmo da auto-aceitação.
Eu experimento períodos de transe quando fotografo.
Logicamente muito distante do Zen, e nem penso nesta relação, nunca pensei por este lado.
Mas é um período curto que se torna infinito, tamanha a concentração e a isenção do pensamento como conhecemos, mesmo que nestes períodos eu tenha exata noção do que faço e do que quero, agindo num misto de racionalidade e instinto, se é que isto seja possível … eu acho e para mim é, mas que igualmente torna-se difícil explicar.
Já tentei e escrevi sobre isto no Frame.
Enfim, vale a experiência, sempre.
Abraços.
Peri.
O fazer, e talvez o fazer fotográfico, quando ocorrem de forma totalmente consciente, com atenção a cada movimento, percepção e sensação pode ser considerado uma forma de meditação. Obrigado pelo relato, Peri. Um abraço.
Republicou isso em Photography Luiz L.e comentado:
Acho que eu me encontrei…. rsrsrs!!
Muitas pessoas não entendem o Still Life, acho que nunca tentaram fazer algo dentro desse tipo de fotografia. Antes mesmo de pegar a camera já estou vivenciando a foto, ainda no carro ou quando passo pelo supermercado para comprar alguns itens para a foto, já me encontro absorto por pensamentos distantes, por sentimentos que desejo experimentar naquela foto, passar para aquela imagem. As horas passam rapidamente e quando atinjo meu alvo tenho a sensação de que aquela é a melhor foto que eu já consegui fazer até hoje… rsrsrs!! Depois fica a ânsia de compartilhar, de ver a reação dos amigos… Interessante como tudo isso me induz a produzir mais fotos. A busca do impossível.
Gostei de ler sua opinião, Luiz. Nas suas fotos fica claro que a foto em si, o resultado, é apenas o “depois” de um longo processo que o precedeu. E esse processo é o que conta para cada um de nós. Mérito seu conseguir juntar um método que é relevante em termos pessoais e resultados significativos. Essa busca do impossível é o caminho.
Li há muitos anos este livro de que gosto muito, mas nunca imaginei que o Henri Cartier-Bresson o tivesse como referência.
Pois é, eu também demorei pra descobrir. Foi uma surpresa.
“…Antes mesmo de pegar a camera já estou vivenciando a foto, ainda no carro ou quando passo pelo supermercado para comprar alguns itens para a foto, já me encontro absorto por pensamentos distantes, por sentimentos que desejo experimentar naquela foto, passar para aquela imagem. …”
Cara, esse comentário foi perfeito… passo por coisa similar. As vezes por semanas inteiras, fico numa espécie de fissura, sentindo a foto, esperando ela amadurecer. Não a vejo, mas sinto. Quando finalmente decido pegar a câmera, não sei como acontece, mas as coisas encaixam.
Por isso esse paralelo com o arqueiro zen é bastante verdeiro.
O principal é que você e a foto, todo o caminho até ela não são duas coisas, são a mesma coisa. Essa é uma dificuldade do ocidental, essa noção do indivíduo tão (sei lá) “separatista” (?). Um projeto por exemplo, a nossa forma de execução inicia determinando um fluxo, dividindo em partes e definindo as prioridades de cada parte. Cada vez mais distante do todo. Não gosto muito do Bresson, reconheço como gênio, mas está longe de ser um dos meus prediletos, mas o livro é bem coerente com a prática dele.
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