O caçador e o observador

Sair e procurar por uma foto é a forma errada de pensar [a fotografia]. Você deve apenas ter uma vida interessante, e contar a história apertando um botão.
Cole Rise

Talvez seja possível dividir a nossa atitude em relação ao fotografar em dois modelos. Modelos são sempre concepções artificiais que não são de fato a realidade, mas que podem nos ajudar a organizar conceitualmente aquilo que observamos. Então, não os levemos muito a sério, mas vamos nos deixar conjecturar um pouco nesse jogo mental.

No primeiro modelo, buscamos ativamente a foto. Saímos especialmente para fotografar, planejando os locais que podem proporcionar boas fotos. Imaginamos as fotos que vamos tirar e adequamos o equipamento ou até a hora do dia para nos aproximarmos do resultado que concebemos. Podemos encaixar nesse grupo também a fotografia preparada num estúdio ou em situações controladas. O fotógrafo age como uma espécie de caçador — ou, sendo menos negativo, um criador — que busca concretizar a sua ideia.

Mike Bugari
Mike Bugari

O outro modelo, que é o preferido do fotógrafo que citei no início do texto, é aquele em que apenas se vive e a fotografia serve para contar, em forma de narrativa visual, um pouco daquilo que se vive. A fotografia não vem antes, não está pré-concebida: ela acontece a partir do que já está lá, como um reconhecimento à beleza ou ao que é interessante no viver em si. O fotógrafo, nesse caso, é um observador. A câmera é quase um acessório, uma extensão do olhar contemplativo do fotógrafo.

Ao contrário do que diz a citação inicial, acho que não existe jeito certo ou errado de pensar ou fazer a fotografia. “Maneiras certas” são conceitos e, como tais, variam de acordo com as cabeças que os elaboram. Quando começamos a argumentar que existe uma maneira certa de se usar uma ferramenta, ou de se criar — e geralmente o jeito “certo” é o jeito de quem está argumentando — perdemos a capacidade de admirar e valorizar aquilo que é diferente. Ser capaz de gostar daquilo que eu não faria, a partir da compreensão do outro, é habilidade importante no nosso momento atual, em que as nossas pequenas diferenças nos separam tanto.

O máximo que posso fazer é uma autoanálise, ao olhar para a forma como transitei dentro desses modelos. Percebo que quando comecei a fotografar, estava mais identificado com o primeiro, buscando ativamente as fotos. A fotografia era uma atividade voltada para um resultado, satisfatória quando ele era obtido e frustrante quando não. Ao longo do tempo, passei gradualmente para o segundo. Percebo hoje, mais observador, que as fotos que faço são menos interessantes visualmente, menos impactantes, menos extraordinárias e menos conceituais. Talvez até menos criativas. Por outro lado, sinto que as fotos atuais são mais sinceras, pois refletem, simplesmente, o que vivo.

Foto do cabeçalho: Tiago Costa

Você fotografa a si mesmo

A fotografia é uma espécie de truque. Quando fotografamos, revelamos aquilo que está na frente da lente, mas ocultamos o que está por trás da câmera. Desta forma, quem vê a foto pode se colocar no lugar de observador e enxergar a cena estabelecendo uma relação direta. As fotografias bem feitas — dentro desse espírito — são aquelas em que caímos nessa ilusão sem lembrar que havia alguém fotografando.

E o que está por trás da câmera que torna-se oculto? É o próprio fotógrafo (a menos que se esteja fazendo um autorretrato). O fotógrafo é um fantasma, que busca criar uma ligação direta entre aquilo que ele fotografa e quem vê suas fotos, montando essa relação de forma engenhosa, a fim de permanecer invisível. O trabalho de muitos fotógrafos é o de estabelecer sentidos e significados baseados nessa ilusão que a câmera fotográfica permite.

Alexey Murashko
Alexey Murashko

É possível que a fotografia seja tão atraente porque cria essa possibilidade do autor oculto, um contexto em que se pode falar de algo, se expressar, sem se implicar. Parece que na pintura ou na literatura a responsabilidade do autor estão muito mais presentes. Será que o fotógrafo pode realmente dizer algo sem estar lá, apenas mostrando de forma imparcial e objetiva — coisa que a câmera parece ser? Mesmo que ele deseje, isso não é possível. A relação pura entre a cena e o observador, entre o significado e seu intérprete, não resiste a uma análise um pouco mais demorada. O fotógrafo não pode se excluir do processo porque, por mais que tente, sempre acabará fotografando a si mesmo.

Primeiro porque ele só pode fotografar aquilo que vive. Ele precisar estar em algum lugar para fotografar. Depois, porque o aspecto mais importante da fotografia — o assunto, ou o que fotografar, é uma atitude que está totalmente nas mãos do fotógrafo. Não há equipamento ou automatismo que possa auxiliar nesse aspecto: é o fotógrafo que decidirá o que vai dentro ou fora do quadro. Por mais que se use uma grande angular, não se pode fotografar tudo, e a seleção entre o que é fotografável ou não — o corte — é uma exposição completa do seu autor.

Além disso, existem outros aspectos que, ao serem bem observados, desmontam a ilusão fotográfica e nos permitem enxergar o fotógrafo: como ele utiliza a câmera, o ângulo em que ele se coloca, como ele faz o pós-processamento de suas fotos. E, no final do processo, o próprio fato de publicar ou expor uma foto, seja em que meio for, mostra que aquela imagem, da forma em que é apresentada, corresponde ao que o fotógrafo considera bom para ser visto. A foto pronta e publicada evidencia seus critérios de qualidade e seu julgamento.

A fotografia pode, então, ter um aspecto sedutor ao parecer uma arte meio anônima, em que o fotógrafo pode ter a ilusão de se ocultar e apenas mostrar o que está a sua frente, sem se implicar. Mas essa é uma mera ilusão facilitada pela forma como a câmera funciona. O trabalho do fotógrafo pode até ser menor do que o envolvido em outras artes, mas basta olhar um pouco além do que a cena nos mostra para que possamos enxergá-lo. Afinal de contas, o que o fotógrafo faz é nos convidar para assumir o seu lugar, a sua posição e a sua visão dentro do mundo, num determinado momento. O que pode ser mais revelador do que isso?

Foto do cabeçalho: Johnny De Guzman

O fazer e o ver na fotografia

Como é natural para quem se interessa por fotografia, gosto de tirar fotos. Gosto de mexer na câmera, entender a luz, apertar o disparador, ouvir o “click”. Mas percebo que ao longo do tempo, tenho me interessado cada vez mais por ver fotografias do que fazê-las. O fazer é ativo: é construção, criação. O ver é receptivo: é contemplação e abertura. No fazer há controle; no ver, entrega.

Olhar fotografias de outras pessoas é mais interessante do que ver as minhas. Cada fotógrafo abre, através das imagens que cria, uma janela para seu mundo. Para mim, esse é o maior valor da fotografia: poder olhar dentro da vida de alguém. Com a Internet e redes de compartilhamento como o Flickr, esse potencial é quase infinito. Milhões de janelas e mundos à espera do olhar. O único porém é a melancolia de se ver tantos mundos que não poderei habitar e aos quais resta apenas resignar-me a olhar, de longe.

Wayne Lo
Wayne Lo

A imersão na fotografia alheia desafia a maneira conceitual de ver o mundo. A partir do momento em que se atravessam os julgamentos técnicos e estéticos que nossa mente apresenta em forma de palavras, podemos olhar para as fotografias na sua pureza. Na verdade, é a nossa percepção, ao transcender as palavras, que pode se tornar pura. Fico me perguntando se, a partir dessa percepção não podemos construir, a partir da imagem, um significado mais genuíno. Olhar para uma fotografia pode ser como um espelho: ao descobrir o que ela gera em nós, nos percebemos, nos descobrimos. É um olhar para fora que é rebatido e se torna olhar para dentro.

O fazer fotográfico, da mesma maneira, também apresenta uma relação entre o olhar para dentro e para fora. A fotografia que faço pode ser uma revelação ao ser vista pelo outro. Dentro, há a minha escolha do que fotografar, do que considero importante, da forma como o faço. Apresento isso ao mundo de que forma? Em função do julgamento alheio? De peito aberto, sem medo? Aceito me expor através da fotografia ou apresento uma versão pasteurizada de mim mesmo? É preciso coragem para se fazer uma fotografia transparente.

Embora ao fazer e ver fotografias não pensemos nisso, o fato é que tudo aquilo com o que nos envolvemos, especialmente de uma forma afetiva como fazemos como a arte e a criatividade, diz muito sobre nós. Como enxergamos o mundo, como construímos os seus significados, como nos apresentamos a ele. Se pararmos para trazer à tona essas reflexões, podemos não só nos aprofundar na nossa relação com a fotografia como também usá-la como instrumento de autoconhecimento.

A nossa relação com a fotografia, as palavras e os significados serão tema da oficina O Nome das Coisas, a ser realizada nos dias 28, 29 e 30 de agosto de 2014 no Espaço F/508 de Fotografia, em Brasília.

Foto do cabeçalho: Nuno Dantas.

DxO Filmpack

Quando se está acostumado a fotografar com negativo preto e branco ou positivo colorido, ficamos muito ligados aos resultados característicos desses processos. Esses resultados são tão distantes de fotografias digitais não trabalhadas que dá a impressão de que há um abismo intransponível entre elas.

Por exemplo, as fotografias digitais, quando (mal) convertidas para preto e branco, podem apresentar alguns problemas, especialmente quando se tem na cabeça o referencial da fotografia analógica:

  • pouco contraste, aquele cinzão meio escuro predominante
  • muito contraste, deixando os pretos muito pretos e os brancos muito brancos
  • perda de detalhes nas altas luzes
  • ausência da suavidade nos tons proporcionada pelo grão

Já no caso das fotografias coloridas, as fotografias digitais pareciam não ser capazes de representar bem certos tons de vermelho e outras cores quentes, que aparecem tão bem nos cromos, por exemplo.

Ainda assim, nos últimos tempos tenho visto fotografias digitais com resultados muito bons, inclusive na conversão para preto e branco. Talvez isso se deva à uma melhora na qualidade dos sensores de câmeras mais recentes, o que não parece ser uma boa explicação, pois geralmente esses evoluções são muito mais sutis do que a publicidade dos fabricantes de câmeras nos faz acreditar.

Provavelmente, um fator importante é o tratamento das fotos digitais. É possível que, ao se dedicar a essa etapa da produção de fotografias o suficiente, seja possível obter resultados tão interessantes quantos os da fotografia analógica. Por conta disso, resolvi testar o DxO Filmpack, da DxO Labs. Já adianto que isso não é propaganda: se você quiser usar o Filmpack, pode ir atrás de algumas versões antigas que saíram de graça. Outros programas ou presets que simulam o filme podem ser encontrados para Lightroom, Aperture e Photoshop, como os do Presetpond.

O Filmpack é um programa simples, não voltado para fazer conversões de RAW ou ajustes mais complexos como o Photoshop ou Gimp. Ele pressupõe que você tenha um arquivo já convertido e relativamente equilibrado em termos de exposição e cor. Você só pode editar uma fotografia de cada vez — embora os filtros possam ser aplicados em lote — e a essência do programa é aplicar o visual de um filme específico na foto. Esses filtros, que têm o nome dos filmes que eles pretendem simular estão divididos em categorias: positivo colorido, negativo colorido, negativo preto e branco e filtros criativos.

Você pode escolher o visual de um filme (cores e tons) e o grão de outro. Além disso, pode fazer ajustes de curvas, contraste, microcontraste, saturação e efeitos como bordas e vazamentos de luz. Isso permite que você faça combinações únicas e salve como filtros personalizados. Abaixo seguem alguns exemplos de fotografias processadas com o DxO.

Forma e conteúdo

Vamos considerar uma pessoa que usa a fotografia no seu cotidiano, sem dedicar a ela importância especial. Para ela, a fotografia é uma forma de registrar um determinado momento ou acontecimento de sua vida. Ela fotografa pessoas de quem gosta, eventos importantes, lugares em que esteve. O sentido da fotografia é dizer: “vivi este momento”, “estive aqui”, “estive com esta pessoa” ou “possuo esta coisa”. Pode-se dizer que um dos aspectos dessa fotografia descompromissada com a fotografia em si, que é a que a maior parte das pessoas pratica, é totalmente voltada para o conteúdo. A única preocupação que a pessoa que fotografa tem em relação ao equipamento ou à maneira como as fotografias são processadas é se elas representam de forma adequada o conteúdo que elas desejam mostrar.

Agora, tomemos como exemplo uma pessoa que gosta de fotografia, que a estuda, que tem a fotografia como profissão ou como atividade amadora séria. A tendência é que as pessoas que têm esse perfil passem a enfatizar mais a forma ao conteúdo. As preocupações se voltam para aspectos como composição, iluminação, nitidez, cores, desfoque. A partir dessas preocupações, surge o interesse por equipamentos novos, como câmeras, lentes, filmes, programas de edição de imagem, a fim de ter mais domínio sobre a forma.

Entretanto, não é incomum que a ênfase na forma se torne o único foco da fotografia, levando a uma busca pela aparência perfeita de uma imagem sem conteúdo. Isso acontece, em parte, porque o caminho para a forma perfeita é mais visível e conhecido; ele se dá pelo estudo e aquisição de técnicas e equipamentos. Por outro lado, desenvolver o conteúdo não é tão simples. É mais fácil saber “como fotografar” do que “o que fotografar”.

web4camguy
web4camguy

A forma não se relaciona com o conteúdo em termos de ou, mas sim de e. Se você reparar bem, perceberá que bons fotógrafos são aqueles que conseguem trabalhar bem esses dois campos em suas fotografias. E, mais do que uma forma de fotografar previamente concebida como boa, a forma da boa fotografia é aquela que dialoga com o conteúdo. Portanto, vale a pena refletir sobre como anda, na nossa fotografia, o equilíbrio entre essas duas áreas. Às vezes, quando se depara com uma estagnação na nossa produção fotográfica, uma saída pode ser buscar maneiras de desenvolver a que tem recebido menos atenção.

Vale ressaltar, também, que esses conceitos são puramente didáticos. Na verdade, forma é conteúdo e conteúdo é forma. Cada fotografia é uma coisa só. O que mostramos e como mostramos são apenas perguntas que fazemos para direcionar o nosso olhar, mas o fazer fotográfico é um só.

A busca do significado na fotografia — na forma, no conteúdo, no fazer e no olhar — é tema da oficina O Nome das Coisas, que será realizada em agosto de 2014 no Espaço f/508, em Brasília.

Foto do cabeçalho: Paul Aningat

Oficina O Nome das Coisas no Espaço F/508 de Fotografia

No próximo dia 21 de agosto, estarei novamente no Espaço F/508 de Fotografia, em Brasília, para coordenar a oficina O Nome das Coisas. A proposta do curso é trabalhar o problema do significado na fotografia, com exercícios relacionados ao fazer fotográfico, ao olhar e à construção de significado.

Será minha quarta ida ao F/508. Em 2007, estive pela primeira vez no espaço para um debate sobre fotografia. Em 2011, realizamos a oficina “Interpretação, Realidade e Desconstrução”, baseada nas obras de Arlindo Machado e de Flusser. Em 2013, foi a vez da Fotografia Contemplativa. E agora o tema será a relação entre o texto e a imagem.

Início: 21 de agosto

Horários

Quinta-feira (21): das 19h às 21h
Sexta-feira (22): das 19h às 22h
Sábado (23): das 9h às 12h e das 14h às 17h

Total: 03 aulas
Carga horária: 12 h/aula

Professor: Rodrigo Fernando Pereira

Rodrigo Fernando Pereira é psicólogo, com mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Sua atuação clínica tem fundamentos na teoria comportamental, associada a práticas de atenção plena (mindfulness), aceitação e contato com o momento presente. Desde 2007, mantém o blogCâmara Obscura, voltado a reflexões sobre a fotografia. Nesse mesmo ano, iniciou sua colaboração com o f/508, na forma de um bate papo informal. O trabalho conjunto continuou na forma de publicações (Sentido Vago e Transformações) e na oficina Fotografia: Desconstrução, Realidade e Interpretação, realizada em 2011.

Sobre o Curso

A fotografia é um campo aberto: é documento, é arte, é narrativa. Ao mesmo tempo, não é nada disso. Todas as tentativas de definir ou classificar a fotografia falharam. Por isso, a fotografia pode ser qualquer coisa que o autor quiser. Por outro lado, também será qualquer coisa que o observador quiser. Como fica o significado no meio de tudo isso? É possível transmitir uma mensagem através da fotografia? Qual é a relação que se estabelece entre a imagem e as palavras? A oficina “O Nome das Coisas” propõe um mergulho nessas perguntas, procurando as pontes que ligam fotografia e texto, imagens e conceitos.

Atividade intra e extra-classe ao longo do curso: construção de significado na fotografia

Programa

1. Forma (quinta, 21, das 19h às 22h)
O que é a fotografia?
Desconstrução do modo de fotografar
Há significado na forma?
 
2. Conteúdo (sexta, 22, das 19h às 22h)
Onde está o significado na fotografia?
Reflexão sobre o significado do fazer pessoal
Técnicas de desconstrução do olhar
 
3. Produção (sábado, 23, das 9h às 12h)
Exercícios: “leitura” através da experiência
Análise da produção de Hiroshi Sugimoto
Criação de textos e narrativas
 
4. Apresentação (sábado, 23, das 14h às 17h)
Apresentação dos trabalhos de fotografia e texto
Evocação de significados
Discussão: como o significado é transportado pela fotografia?

Inscrições e mais informações no site do f/508.

Proibido fotografar

A proibição de fotografar, especialmente em locais públicos ou abertos ao público, como parques, shoppings, museus, shows, parece ser uma das coisas que mais incomoda os fotógrafos, especialmente os amadores entusiastas. É comum que haja reclamações de pessoas que são impedidas de fazer fotografias nesses locais, especialmente se estão com equipamento que sugere uso comercial das imagens, como câmeras DSLR.

Não pretendo aqui abordar o aspecto legal dessas proibições. Em relação a esse assunto, há o artigo “O que podemos fotografar legalmente?“, redigido por Paula Menezes e publicado no Portal Photos. Mas, só para resumir: você pode fotografar tudo que está em logradouro público; espaços privados (como lojas, shoppings, casas de show) dependem de autorização de quem administra. Mas a questão maior não é tirar fotos, e sim o uso que será feito delas, sendo que há discussão inclusive se imagens monumentos públicos podem ou não ser usados com fins comerciais. Tampouco pretendo discutir a importância da liberdade de imprensa e a possibilidade de fotografar manifestações, acontecimentos de interesse público, abusos de autoridade e situações do tipo.

Isto posto, o que me interessa é, na verdade, os aspectos psicológicos do fotógrafo amador no momento em que é proibido de fotografar, já que parece que muitos fotógrafos recebem esse impedimento como uma grande ofensa, como se o direito de fotografar fosse o artigo mais importante da constituição. Não é raro ver quem se vanglorie de ter fotografado num local em que há essa proibição, ou que conseguiu repelir o veto à fotografia com uma carteirada.

HeavenlyShell
HeavenlyShell

Para entender esse processo, primeiro é preciso entender qual a função da fotografia para aquele que fotografa. O fotógrafo amador, especialmente quando está num local de interesse e decide fotografar, pode estar motivado por diversas razões: para mostrar que esteve ali; para dizer: eu vi e vivi isso; para levar consigo uma memória daquele local; para aplicar uma certa estética ou visão através da câmera a algo de interesse. Se olharmos bem, podemos reunir todos esses motivos e alguns outros possíveis em uma categoria: afirmação do eu.

Através da fotografia, eu me afirmo. Ela é um instrumento pelo qual eu posso garantir que vi, que fiz, que vivi, que passei por aquilo. Daí o costume que se tem de alimentar as redes sociais com selfies com locais, pessoas ou situações interessantes. Mas o entusiasta de fotografia vai além, ele quer mostrar que tem uma “visão” especial sobre um determinado tema, ou um equipamento avançado que, na sua perspectiva, lhe permite evidenciar a beleza de algo que não é visto pelos olhares comuns — especialmente os daqueles que tem um equipamento “inferior”.

Pois bem, está lá o fotógrafo entusiasta gozando do prazer de criar sua arte única, quando ele é advertido por um segurança, uma placa, um aviso sonoro. Com isso, ele é tolhido na sua possibilidade de afirmação egóica. Frustrado, ele pode se voltar contra o agente da proibição: muitas vezes é um funcionário — que é visto como ignorante, por não saber que ele não é um profissional — ou a administração do local, ou o governo. Outra possibilidade é a de tentar fotografar mesmo sem ter autorização, vangloriando-se depois do eu feito, já que nesse caso pôde afirmar-se não só pelo fazer fotográfico, mas também por ter se colocado acima das regras.

Seja qual for o comportamento gerado pela não-aceitação da proibição,  a reação exagerada denota a incapacidade de lidar com a frustração, de se relacionar com o belo sem o uso da fotografia e de simplesmente aproveitar o momento. É de se admirar que se priorize a fotografia a ponto de entrar em conflito ou claramente desrespeitar o outro, quando ela, para o amador, deveria ser uma atividade de lazer, de desenvolvimento pessoal, de criação. Quando se transforma a fotografia numa batalha guiada pelo próprio ego, talvez valha a pena considerar qual o sentido que ela tem.

Leia também: Cinco razões para deixar sua câmera em casa

Imagem do cabeçalho: Juanma Marcos

Estilo fotográfico

Nós gostamos de criar conceitos. Nomes, categorias, rótulos. Sua função é nos ajudar a descrever e entender o mundo. Olhamos para o mundo e, a partir dele, inventamos palavras que significam algo. É muito prático: em vez de termos que descrever ou olhar para o mundo toda vez que queremos nos referir a ele, podemos usar apenas uma ou duas palavras e pronto. Mas, com o tempo, esquecemos que a linguagem não é o mundo, e que os conceitos que criamos não existem por conta própria: eles são apenas uma representação simplificada de algo que vai muito além.

Um desses conceitos é o de estilo na criação fotográfica. Olhamos para os trabalhos de alguns fotógrafos e percebemos que há algo ali. Um padrão, uma repetição, uma conjugação de elementos. No assunto, na estética, na forma de fazer. Algo que, após vermos algumas obras, nos permite identificar outras. O estilo é aquilo que torna as obras reconhecíveis. É a coesão.

Toffee Maky
Toffee Maky

Muitos fotógrafos iniciantes acreditam que precisam criar, inventar ou descobrir seu estilo, como se o estilo surgisse antes da produção. Querer encontrar um estilo antes de se aprofundar no fazer fotográfico é como querer estar bronzeado antes de sair no sol. É colocar o carro na frente dos bois.

Esquecem-se que o estilo, como algo isolado, não existe: é apenas uma palavra para descrever uma linha tênue e abstrata que percorre a produção de um autor. Em termos concretos, não há estilo, há apenas o trabalhos. O fotógrafo cria fotografias, ele vê o mundo e o retrata. O que chamamos de estilo é uma criação mental, um conceito, uma interpretação que deriva das obras na visão do espectador. Se nos prendermos demais ao conceito de estilo, perderemos o contato com a obra. Pior, podemos artificializar demais a nossa própria fotografia ao querer enquadrá-la em uma ideia sem que haja conteúdo que a sustente.

Se admiramos o “estilo” de um fotógrafo, na verdade admiramos o que ele faz, como ele faz. É a força do seu trabalho. Quando o trabalho é intenso, quando há dedicação, há o resultado. Para quem cria, é o processo que conta. Se olharmos apenas para o resultado, sem entender o caminho até lá, ficaremos perdidos.

Esqueça o estilo e concentre-se na busca. O que existe, o que você faz, o que os outros veem é a sua fotografia. O que chamamos de estilo é apenas uma consequência, que acontece dependendo da força do seu fazer fotográfico. Estilo é o resultado natural de uma busca sincera.

Agradeço ao Eduardo Buscariolli pela conversa que gerou a ideia desse texto.
Imagem do cabeçalho: sciencesque

Minimalismo fotográfico

Há alguns anos, cheguei a ter sete câmeras fotográficas em casa. A maior parte era de máquinas analógicas: reflex, telemétricas e compactas. Uma delas era médio formato, as outras usavam filme 35mm. As digitais eram duas, sendo uma compacta avançada e uma reflex. Havia também uma boa quantidade de lentes e adaptadores, que me permitiam usar as lentes das câmeras analógicas na reflex digital.

Todo esse equipamento “pedia” uma série de acessórios, que também fui adquirindo ao longo dos anos. Tripé, dois flashes, um scanner para os negativos, mesa de luz, impressora, computador de mesa, HD externo, fotômetro, filmes, filtros, tanque para revelação, químicos. A maior parte desse material, novo e usado, foi comprada de várias fontes —desde lojas de rua até o eBay, passando por lojas em viagens para o exterior — num período de três a quatro anos, em que minha paixão pela fotografia teve seu pico.

A relação com a fotografia não parava nos equipamentos. Tive diversos livros, que comprei ou que ganhei de presente de pessoas que sabiam do meu interesse pelo assunto. Em um determinado momento, entre câmeras, lentes, acessórios e livros, toda a minha “coleção” de materiais fotográficos era relativamente grande.

Eram coisas que eu de fato usava. Nunca comprei nada que não fosse ser útil. Nos momentos de maior atividade, cheguei a fotografar com câmeras utilizando todo o equipamento, como o fotômetro externo, revelar filmes preto e branco em casa, escanear e tratar. Os livros que comprei e ganhei foram lidos, relidos e consultados. Sinto que aproveitei todo esse material.

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Com o tempo, no entanto, minha fotografia foi ficando mais simples. Não tinha o mesmo entusiasmo para carregar muita coisa, para fazer uma fotografia muito complicada, para revelar meus próprios filmes. Precebi que a maior parte das fotografias que eu fazia poderiam ser tiradas com qualquer câmera. Pouco a pouco, fui me desfazendo do equipamento. Doei os livros, o computador de mesa, algumas câmeras. Emprestei outras sem esperar que fossem devolvidas. Os flashes quebraram e não me preocupei em consertá-los ou substitui-los.

Em 2012 comprei minha última câmera: uma compacta avançada, usada, que cabia no bolso. Em diversas viagens e momentos significativos, levei apenas ela. Foi mais do que suficiente. Hoje tenho apenas essa câmera digital e mais uma de filme, com uma lente. Às vezes, quando vejo os equipamentos mais novos, fico um pouco tentado. Ao perceber isso, procuro valorizar aquilo que já tenho. Reconheço, aí, que essas duas câmeras que uso já são suficientes, se não forem excessivas. E, se restar algum impulso de comprar algo novo, é só lembrar do peso que é carregar uma câmera grande, preocupar-me de sair na rua com um equipamento caro, fora tudo aquilo que posso fazer com o dinheiro que seria gasto para comprar e manter um equipamento novo, que o resto de vontade logo desaparece. E fico em paz.

No ano passado, fui a Brasília para uma oficina de fotografia contemplativa no f/508. No dia da saída fotográfica, estava só com o celular. Foi mais do que suficiente para acompanhar a proposta do curso. Não sei se a fotografia que faço se tornou um reflexo do equipamento que levo ou o contrário. Talvez seja algo anterior: uma valorização do simples e do aqui e agora que precede ambos.

O fotógrafo zen

Com o objetivo de vivenciar essas experiências, o budismo Zen segue por caminhos que, através de um recolhimento metódico e sistemático, conduzem o homem a perceber, no mais profundo da sua alma, o inefável que carece de fundo e de forma. Em relação ao tiro com arco, isso significa (expresso de maneira bastante aproximada e talvez por isso passível de uma interpretação errônea) que os exercícios espirituais suscetíveis de constituir uma arte da técnica esportiva sejam exercícios místicos. O tiro com arco não persegue um resultado exterior, com o uso do arco e da flecha, mas uma experiência interior, muito mais rica.
Eugen Herrigel — A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen

Henri Cartier-Bresson foi um dos grandes fotógrafos do século XX, sendo até hoje referência para muitos amantes da fotografia. Perguntado sobre suas influências, mais de uma vez Bresson mencionou um livro marcante para a sua forma de fotografar — e que não tinha, aparentemente, nenhuma relação com a fotografia — A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugen Herrigel. Neste livro, o alemão Herrigel conta a sua experiência ao aprender o tiro com arco japonês (Kyudo) com um mestre Zen. O tiro com arco não tinha como objetivo o desempenho esportivo. Era, na verdade, um caminho para a iluminação, ou o contato com o Zen. Qualquer atividade pode ser usada para esse fim, e no Japão o Zen influencia tradicionalmente práticas como a cerimônia do chá ou os arranjos de flores, além do tiro com arco.

Anton Novoselov
Anton Novoselov

Zen é uma palavra que já se tornou parte do nosso cotidiano, sendo associada à calma e a tranquilidade. Mas o Zen “de verdade” é uma escola de budismo que se originou na China e migrou para o Japão. O que é o Zen, então? O que significa? Bem, não dá pra falar em palavras. Qualquer tentativa de explicá-lo trairá sua própria essência, como o próprio Herrigel comenta:

A simples decisão de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um sério exame de consciência, pois tem diante de si o célebre exemplo de um dos maiores mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silêncio, imutável como se nada tivesse ouvido.

Embora não possamos entender diretamente essas experiências com nosso racionalismo ocidental, que precisa apreender tudo em palavras, podemos utilizar a nossa curiosidade em relação à escolha de Bresson por esse livro como sua maior influência. É possível usar a fotografia como um caminho para o aprimoramento pessoal, como instrumento para a busca da verdade?

Quer quiser responder essa pergunta precisará entrar no Zen por si só, abandonando expectativas. Além disso, deve deixar para trás tudo que aprendeu, todos os conceitos que têm sobre aquilo que é e faz — pois, se tem algo que o Zen não é, é conceitual. Da mesma forma que o objetivo do arqueiro zen não é acertar o alvo, e sim acertar a si mesmo, o do fotógrafo que se embrenhar pelo Zen buscará algo muito além de produzir belas fotografias. Há pouco mais que pode ser dito. Uma das maneiras de prosseguir talvez seja simplesmente ler o livro de Herrigel. Baixe uma versão em PDF de A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen ou, ainda, uma versão em inglês: Zen in the Art of Archery.

Foto do cabeçalho: Jordan Woods