Você fotografa a si mesmo

A fotografia é uma espécie de truque. Quando fotografamos, revelamos aquilo que está na frente da lente, mas ocultamos o que está por trás da câmera. Desta forma, quem vê a foto pode se colocar no lugar de observador e enxergar a cena estabelecendo uma relação direta. As fotografias bem feitas — dentro desse espírito — são aquelas em que caímos nessa ilusão sem lembrar que havia alguém fotografando.

E o que está por trás da câmera que torna-se oculto? É o próprio fotógrafo (a menos que se esteja fazendo um autorretrato). O fotógrafo é um fantasma, que busca criar uma ligação direta entre aquilo que ele fotografa e quem vê suas fotos, montando essa relação de forma engenhosa, a fim de permanecer invisível. O trabalho de muitos fotógrafos é o de estabelecer sentidos e significados baseados nessa ilusão que a câmera fotográfica permite.

Alexey Murashko
Alexey Murashko

É possível que a fotografia seja tão atraente porque cria essa possibilidade do autor oculto, um contexto em que se pode falar de algo, se expressar, sem se implicar. Parece que na pintura ou na literatura a responsabilidade do autor estão muito mais presentes. Será que o fotógrafo pode realmente dizer algo sem estar lá, apenas mostrando de forma imparcial e objetiva — coisa que a câmera parece ser? Mesmo que ele deseje, isso não é possível. A relação pura entre a cena e o observador, entre o significado e seu intérprete, não resiste a uma análise um pouco mais demorada. O fotógrafo não pode se excluir do processo porque, por mais que tente, sempre acabará fotografando a si mesmo.

Primeiro porque ele só pode fotografar aquilo que vive. Ele precisar estar em algum lugar para fotografar. Depois, porque o aspecto mais importante da fotografia — o assunto, ou o que fotografar, é uma atitude que está totalmente nas mãos do fotógrafo. Não há equipamento ou automatismo que possa auxiliar nesse aspecto: é o fotógrafo que decidirá o que vai dentro ou fora do quadro. Por mais que se use uma grande angular, não se pode fotografar tudo, e a seleção entre o que é fotografável ou não — o corte — é uma exposição completa do seu autor.

Além disso, existem outros aspectos que, ao serem bem observados, desmontam a ilusão fotográfica e nos permitem enxergar o fotógrafo: como ele utiliza a câmera, o ângulo em que ele se coloca, como ele faz o pós-processamento de suas fotos. E, no final do processo, o próprio fato de publicar ou expor uma foto, seja em que meio for, mostra que aquela imagem, da forma em que é apresentada, corresponde ao que o fotógrafo considera bom para ser visto. A foto pronta e publicada evidencia seus critérios de qualidade e seu julgamento.

A fotografia pode, então, ter um aspecto sedutor ao parecer uma arte meio anônima, em que o fotógrafo pode ter a ilusão de se ocultar e apenas mostrar o que está a sua frente, sem se implicar. Mas essa é uma mera ilusão facilitada pela forma como a câmera funciona. O trabalho do fotógrafo pode até ser menor do que o envolvido em outras artes, mas basta olhar um pouco além do que a cena nos mostra para que possamos enxergá-lo. Afinal de contas, o que o fotógrafo faz é nos convidar para assumir o seu lugar, a sua posição e a sua visão dentro do mundo, num determinado momento. O que pode ser mais revelador do que isso?

Foto do cabeçalho: Johnny De Guzman

O fazer e o ver na fotografia

Como é natural para quem se interessa por fotografia, gosto de tirar fotos. Gosto de mexer na câmera, entender a luz, apertar o disparador, ouvir o “click”. Mas percebo que ao longo do tempo, tenho me interessado cada vez mais por ver fotografias do que fazê-las. O fazer é ativo: é construção, criação. O ver é receptivo: é contemplação e abertura. No fazer há controle; no ver, entrega.

Olhar fotografias de outras pessoas é mais interessante do que ver as minhas. Cada fotógrafo abre, através das imagens que cria, uma janela para seu mundo. Para mim, esse é o maior valor da fotografia: poder olhar dentro da vida de alguém. Com a Internet e redes de compartilhamento como o Flickr, esse potencial é quase infinito. Milhões de janelas e mundos à espera do olhar. O único porém é a melancolia de se ver tantos mundos que não poderei habitar e aos quais resta apenas resignar-me a olhar, de longe.

Wayne Lo
Wayne Lo

A imersão na fotografia alheia desafia a maneira conceitual de ver o mundo. A partir do momento em que se atravessam os julgamentos técnicos e estéticos que nossa mente apresenta em forma de palavras, podemos olhar para as fotografias na sua pureza. Na verdade, é a nossa percepção, ao transcender as palavras, que pode se tornar pura. Fico me perguntando se, a partir dessa percepção não podemos construir, a partir da imagem, um significado mais genuíno. Olhar para uma fotografia pode ser como um espelho: ao descobrir o que ela gera em nós, nos percebemos, nos descobrimos. É um olhar para fora que é rebatido e se torna olhar para dentro.

O fazer fotográfico, da mesma maneira, também apresenta uma relação entre o olhar para dentro e para fora. A fotografia que faço pode ser uma revelação ao ser vista pelo outro. Dentro, há a minha escolha do que fotografar, do que considero importante, da forma como o faço. Apresento isso ao mundo de que forma? Em função do julgamento alheio? De peito aberto, sem medo? Aceito me expor através da fotografia ou apresento uma versão pasteurizada de mim mesmo? É preciso coragem para se fazer uma fotografia transparente.

Embora ao fazer e ver fotografias não pensemos nisso, o fato é que tudo aquilo com o que nos envolvemos, especialmente de uma forma afetiva como fazemos como a arte e a criatividade, diz muito sobre nós. Como enxergamos o mundo, como construímos os seus significados, como nos apresentamos a ele. Se pararmos para trazer à tona essas reflexões, podemos não só nos aprofundar na nossa relação com a fotografia como também usá-la como instrumento de autoconhecimento.

A nossa relação com a fotografia, as palavras e os significados serão tema da oficina O Nome das Coisas, a ser realizada nos dias 28, 29 e 30 de agosto de 2014 no Espaço F/508 de Fotografia, em Brasília.

Foto do cabeçalho: Nuno Dantas.

Forma e conteúdo

Vamos considerar uma pessoa que usa a fotografia no seu cotidiano, sem dedicar a ela importância especial. Para ela, a fotografia é uma forma de registrar um determinado momento ou acontecimento de sua vida. Ela fotografa pessoas de quem gosta, eventos importantes, lugares em que esteve. O sentido da fotografia é dizer: “vivi este momento”, “estive aqui”, “estive com esta pessoa” ou “possuo esta coisa”. Pode-se dizer que um dos aspectos dessa fotografia descompromissada com a fotografia em si, que é a que a maior parte das pessoas pratica, é totalmente voltada para o conteúdo. A única preocupação que a pessoa que fotografa tem em relação ao equipamento ou à maneira como as fotografias são processadas é se elas representam de forma adequada o conteúdo que elas desejam mostrar.

Agora, tomemos como exemplo uma pessoa que gosta de fotografia, que a estuda, que tem a fotografia como profissão ou como atividade amadora séria. A tendência é que as pessoas que têm esse perfil passem a enfatizar mais a forma ao conteúdo. As preocupações se voltam para aspectos como composição, iluminação, nitidez, cores, desfoque. A partir dessas preocupações, surge o interesse por equipamentos novos, como câmeras, lentes, filmes, programas de edição de imagem, a fim de ter mais domínio sobre a forma.

Entretanto, não é incomum que a ênfase na forma se torne o único foco da fotografia, levando a uma busca pela aparência perfeita de uma imagem sem conteúdo. Isso acontece, em parte, porque o caminho para a forma perfeita é mais visível e conhecido; ele se dá pelo estudo e aquisição de técnicas e equipamentos. Por outro lado, desenvolver o conteúdo não é tão simples. É mais fácil saber “como fotografar” do que “o que fotografar”.

web4camguy
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A forma não se relaciona com o conteúdo em termos de ou, mas sim de e. Se você reparar bem, perceberá que bons fotógrafos são aqueles que conseguem trabalhar bem esses dois campos em suas fotografias. E, mais do que uma forma de fotografar previamente concebida como boa, a forma da boa fotografia é aquela que dialoga com o conteúdo. Portanto, vale a pena refletir sobre como anda, na nossa fotografia, o equilíbrio entre essas duas áreas. Às vezes, quando se depara com uma estagnação na nossa produção fotográfica, uma saída pode ser buscar maneiras de desenvolver a que tem recebido menos atenção.

Vale ressaltar, também, que esses conceitos são puramente didáticos. Na verdade, forma é conteúdo e conteúdo é forma. Cada fotografia é uma coisa só. O que mostramos e como mostramos são apenas perguntas que fazemos para direcionar o nosso olhar, mas o fazer fotográfico é um só.

A busca do significado na fotografia — na forma, no conteúdo, no fazer e no olhar — é tema da oficina O Nome das Coisas, que será realizada em agosto de 2014 no Espaço f/508, em Brasília.

Foto do cabeçalho: Paul Aningat

Razão e emoção na fotografia

Vivemos em uma cultura que valoriza a razão, o pensamento, a ordem, em detrimento da emoção, da intuição e tem dificuldades em lidar com a natureza caótica das coisas. Quando nos envolvemos com uma atividade, como a fotografia, tentamos organizá-la, mentalmente, utilizando os recursos racionais que empregamos diariamente para lidar com o mundo. Isso nos leva a priorizar a forma, os números, as regras e o método.

Consequentemente, nos vemos apegados aos aspectos técnicos das imagens, às especificações das câmeras, aos números, ou seja, a tudo que possa ser organizado e quantificado. Queremos saber quantos megapixels tem o sensor, quão nítida é uma lente, quantas fotos são feitas numa viagem ou num evento, quanto tempo dura uma bateria. Continue lendo “Razão e emoção na fotografia”

Fotografia: o que é importante?

Como acontece com a maior parte dos assuntos, discute-se muito sobre aspectos da fotografia que não são importantes. Foca-se em questões que influenciam muito pouco os resultados e o significado da fotografia para cada pessoa que a tem como paixão ou modo de vida. A partir dos tópicos criados em uma comunidade de discussão de fotografia, elaborei uma pequenas lista de coisas “desimportantes” para nos ajudar a pensar o que fazemos com o pouco tempo que nos é dado e que usamos nessa atividade que para nós é tão especial, seguida por uma lista do que é, para mim, o mais relevante.

O que não importa:

1. Se você usa digital ou filme

2. Quantos megapixels tem sua câmera

3. A camera que você não tem Continue lendo “Fotografia: o que é importante?”

“Contra a Interpretação”, de Sontag, e a fotografia

Sempre que vejo tentativas de explicação de obras de arte ou, mais especificamente, de fotografias, tenho a sensação de que algo não se encaixa ou falta, como se a transposição do visual para o verbal não fosse algo totalmente viável. Deparei-me, esses dias, com um ensaio da Susan Sontag, intitulado “Contra a Interpretação”, em que há o seguinte trecho:

“In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.”

A tradução seria mais ou menos essa: “Na maioria das instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a arte por conta própria. A arte real tem a capacidade de nos deixar nervosos. Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e interpretá-lo, a obra é domada. A interpretação torna a arte manejável, submissa.”

Na fotografia, uma das formas de se reduzir a obra é através da análise técnica, como já descrevi em “O Anteparo Técnico“. No entanto, não é a única forma. Uma outra forma bastante comum é tentar ler o que o autor quis dizer, como se houvesse todo um discurso subliminar em cada fotografia, e esse discurso seria mais importante do que aquilo que é mostrado claramente.

Temos uma tradição dualista que nos leva a pensar que tudo sempre tem uma razão, um motivo ou um conteúdo oculto. Mas na realidade, na maior parte das vezes as coisas são simplesmente o que são, e a busca por esses conteúdos, como diz Sontag em seu texto, é o “elogio que a mediocridade faz ao gênio”. Tanto que muitas formas de arte, como a pintura abstrata, fogem intencionalmente da possibilidade de interpretação – e, por isso, causam ainda mais incômodo.

Tomemos como exemplo a foto que ilustra esse artigo, de Chad Treolar, intitulada “Electrified”. É uma imagem incômoda. No entanto, o autor adiciona uma legenda explicativa ao postá-la, dizendo que é “uma tentativa de visualizar o conceito de que nossos corpos são carregados eletricamente que são essas cargas que, em última instância, dirigem nossos pensamentos”. Tivesse o autor deixado a imagem falar por si só, ela teria muito mais força do que com a sua própria interpretação.

Isso nos leva a pensar em como criticar fotografias. O primeiro passo é aceitar a foto, e não imaginar outra que poderia ter sido feita – mas não foi. O segundo é evitar excessivamente a interpretação, procurando significados ou intenções ocultas pelo autor. Não há forma de arte mais direta que a fotografia; procurar algo por trás é ir contra a própria natureza da obra. Seguindo esse preceito, a análise direta, através da descrição, da leitura atenta é um caminho interessante, reconhecendo não apenas o que a foto é como aquilo que ela suscita em nós como observadores.

Isso é difícil, pois o fato é que temos grande dificuldade em aceitar as coisas como elas são. Em contemplar sem entender, sem traduzir racionalmente aquilo que nos encanta, nos assombra ou nos incomoda. Talvez abrir mão desse expediente seja um primeiro passo para experimentar a arte tal qual ela é, sem tentar domá-la, ou aplacar o próprio incômodo frente aquilo que não pode ser circunscrito por palavras.

Referência: Sontag, S. (1964). Against interpretation. http://www.coldbacon.com/writing/sontag-againstinterpretation.html