Fotografia e empatia

Somos muito apegados ao conceito de eu, de self. Temos como hábito cultivar a nossa própria imagem. Talvez porque isso seja uma das consequências do nosso instinto de sobrevivência. Ou porque a sociedade estimule o individualismo. Independentemente das origens dessa percepção, o fato é que nos vemos como únicos, distintos e separados de tudo aquilo que nos rodeia. Nos vemos como especiais mesmo sabendo que existem sete bilhões de outros seres humanos no planeta.

Isso faz com que seja muito difícil conseguirmos enxergar o mundo através dos olhos do outro. Se estamos parados num engarrafamento, temos a concepção de que queremos chegar a algum lugar e todos os outros carros estão nos atrapalhando. Entretanto, todos ali estão passando exatamente pela mesma coisa, querendo simplesmente chegar onde se quer chegar. Dizemos que estamos presos no trânsito, mas na verdade nós somos o trânsito. Nós somos a fila, o ônibus cheio, a praia lotada. Estamos todos no mesmo barco, mesmo que tentemos nos diferenciar com um carro mais caro, uma roupa da moda ou ideias de vanguarda. Fazemos o que for necessário para combater a concepção de que somos apenas mais um na multidão e acabamos reforçando o abismo que existe entre eu e o outro.

Slimmer Jimmer
Slimmer Jimmer

Mas nos temos à nossa disposição um instrumento que pode ser muito útil para favorecer a empatia – essa capacidade de se colocar no lugar do outro. Esse instrumento é a fotografia. Mas ela só será útil para esse fim se conseguirmos abandonar, por um momento, as reações automáticas que nos fazem julgar tudo a partir das nossas preconcepções e de fato olhar, sem preconceitos e opiniões. Quando vemos uma fotografia sem essa disposição empática, fazemos apenas julgamentos autocentrados: eu não fotografaria assim, eu usaria outra câmera, eu não viajaria para esse lugar, eu gostaria de ter feito essa foto. E com isso perdemos a fantástica oportunidade que temos de enxergar uma fração da vida do outro, a partir do ponto de vista do outro.

Ao mesmo tempo, temos a expectativa de que os outros vejam as nossas fotos da maneira que não conseguimos enxergar as deles. Postamos e publicamos fotos o tempo todo nas redes sociais, blogs, fóruns… Esperando um pouco de atenção, “curtidas” e reconhecimento efêmero. E, já que não conseguimos dar a atenção que buscamos, no máximo entramos num esquema de “eu curto a sua e você curte a minha”. O que no fim resulta em milhões de monólogos tristes e vazios – não porque não tenham valor em si, mas porque a comunicação simplesmente não se estabelece. Todo mundo grita e ninguém ouve. São assim as redes sociais.

E se, ao invés de tentarmos gritar cada vez mais alto, deixássemos de gritar? E se apenas parássemos para ouvir? Se esquecêssemos a pretensa maior importância daquilo que temos para dizer e experimentássemos a incrível possibilidade de ver com os olhos de milhões de outros, que está na ponta dos nossos dedos? E guardássemos para nós nossas fotos, ou no máximo as mostrássemos apenas para quem realmente importa, em vez de buscar freneticamente as aprovações que afagam o nosso ego por apenas alguns segundos? Pode parecer assustador abrir mão da pouca atenção pela qual já temos que nos esforçar tanto. Mais assustador ainda é deixar de cultivar o eu, reafirmar a nossa importância, o tempo todo. Mas aí, por outro lado, talvez possamos simplesmente ser livres.

Fotografia é morte

A maioria absoluta das fotografias tem como intenção o registro de um determinado evento. Ainda que feita com um viés estetizante, buscando embelezar um determinado acontecimento, as fotografias feitas quotidianamente se pautam na magia fotográfica de eternizar, congelar, capturar, solidificar, que ainda está presente no imaginário da maior parte das pessoas. O “isto-foi” de Barthes, tão criticado, é ainda a pedra angular da fotografia na concepção geral.

Se tomarmos essa visão como premissa, podemos inferir que o desejo da pessoa que fotografa é, de fato, tornar um momento eterno. O fotógrafo que lança mão de sua câmera numa festa de aniversário, numa viagem ou numa reunião com os amigos deseja que aquele momento dure para sempre; e é a máquina fotográfica que lhe possibilitará isso, através de seu poder mágico.

Infelizmente, o congelamento do tempo oferecido pela câmera tem um inconveniente: ele só se concretiza numa folha de papel ou numa tela. Após o flash, o tempo real continua andando. Não importa o quanto se fotografa, quanto tempo o obturador fica aberto, quantas fotos são feitas em sequência: o relógio não para de andar.


Christian “Kit” Paul

E aí, as pessoas olham para as fotos, que podem ter sido feitas no dia, no ano ou no século anterior. Elas dizem: “eu era feliz”, “eu era jovem”, “eu era bonito”, o que significa, também que: “hoje, eu sou triste”, “hoje, estou velho”, “hoje, sou feio” – ao menos em comparação com o personagem da foto. A fotografia, o momento congelado no papel, torna-se, então, um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará. Não é à toa que muitos autores associam a fotografia à morte.

Dizem que a fotografia imortaliza. Verdade. Mas o que ela imortaliza é aquilo que aparece no papel ou na tela. O que está fora do papel, o nosso mundo real, é mortalizado a cada disparo. A fotografia mata tudo aquilo em que toca, ao congelar um momento que já não é mais o mesmo logo no instante seguinte. Sempre seremos mais velhos do que aquele que aparece nas nossas próprias fotos.

Os álbuns guardam as imagens de um dia, um mês ou uma vida, mas não contêm em si as sensações que elas provocam: estas estão em nós e continuaram mudando junto com o mundo que permaneceu estático na foto. A fotografia escancara o nosso desejo de parar o tempo, de deter o avanço natural das coisas e, traiçoeira, torna mais evidente a nossa incapacidade de fazê-lo. Como se não bastasse, ainda ri, ao nos fazer suspirar frente a algo que não volta mais.

A fotografia como tarefa

Já havia comentado, no texto sobre fotografia e entretenimento, como a fotografia poderia ser vista como uma atividade produtiva, que aplacaria a necessidade de estarmos sempre fazendo alguma coisa, mesmo nas horas livres. Esses dias, relendo o Sobre Fotografia, da Susan Sontag, encontrei uma passagem em que ela fala sobre o mesmo assunto, em meio a uma análise mais complexa sobre o ato fotográfico feito por amadores.

“Viajar se torna uma estratégia de acumular fotos. A própria atividade de tirar fotos é tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso dá forma à experiência: pare, tire uma foto e vá em frente. O método atrai especialmente pessoas submetidas a uma ética cruel de trabalho – alemães, japoneses e americanos. Usar uma câmera atenua a angústia que pessoas submetidas ao imperativo do trabalho sentem por não trabalhar enquanto estão de férias, ocasião em que deveriam divertir-se. Elas têm algo a fazer que é uma imitação amigável do trabalho: podem tirar fotos.” (p.20)

Esse trecho aponta que ficamos tão marcados ao modo de vida do trabalho que temos dificuldade em viver de outra forma, mesmo fora do expediente. A fotografia, para o amador, mais do que um prazer, pode ser uma tarefa. Como tarefa, tem normas a serem seguidas, rotinas de execução, precisam ter começo, meio e fim. No entanto, quando se está trabalhando, esses aspectos são naturais pois a tarefa deve ser cumprida de uma determinada forma, a fim de que seu objetivo seja atingido. Só que não há objetivos na fotografia amadora. Sendo assim, não faz sentido atribuir a ela aspectos de tarefa a ser cumprida.


Andre Guerette

A consequência imediata dessa visão é que a fotografia amadora acaba sendo encarada de forma desnecessariamente séria, já que está impregnada de “deveres”. A fotografia tem que ser nítida, tem que ser feita no momento certo, tem que ser bem composta, tem que ter uma mensagem, tem que ser fantástica. Assim como no trabalho temos uma série de metas a serem alcançadas, atribuímos à fotografia uma série de qualidades que devem ser atingidas. Do contrário, a fotografia não é boa. A questão é que uma atividade feita por lazer ou amor não tem que ter metas, não tem que passar por nenhum tipo de controle de qualidade. A fotografia pode ser simplesmente um testemunho da relação que temos com aquilo que nos cerca. A qualidade desse testemunho não tem a ver com uma série de critérios técnicos, e sim ao significado que o autor atribui à imagem.

A foto não é uma peça resultante de uma linha de produção, que precisa ser feita sempre da mesma maneira e obedecer a uma série de normas no processo e no resultado: ela é maleável e pode ser produzida como se bem entende. Ainda bem. Pois, ao entender isso, podemos nos ater ao que realmente importa ao fotografar, que é mostrar o nosso mundo, e talvez ainda ter um pouco de diversão no processo. Você pode fazer da sua fotografia aquilo que desejar. Não há nenhum chefe que vai vir conferir se ela foi bem feita. Submeter suas fotografias a um crivo externo – especialmente de pessoas desconhecidas – é pedir pra encontrar vários chefes e transformar sua fotografia em trabalho. Isso não combina com os possíveis papéis da fotografia amadora: ser um lazer ou uma forma de expressão pessoal.

A fotografia amadora não tem que ser nada. Ela pode ser qualquer coisa. Mas você tem autonomia total para decidir isso, sem se basear em nenhum tipo de norma. Sobretudo, ela não tem que ser uma tarefa. Você provavelmente já trabalha o suficiente e não precisa transformar seu lazer, sua criatividade ou sua arte em trabalho. Aprenda a relaxar.

Referência:
Sontag, S. (1977). Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras.

O fotógrafo e o real

Desde a sua criação, no século XIX, a fotografia tem, perante a sociedade, o status de representação fiel da realidade. Com a criação de um dispositivo que registrava as imagens sem a mediação de um agente humano, tornou-se possível a obtenção desses registros apenas pela ação da luz na superfície fotossensível. Por isso, a fotografia logo ganhou espaço na feitura de retratos, e também no registro de eventos historicamente relevantes, atividades que, até então, ficavam a cargo da pintura. Nasceu o chamado fotojornalismo, e cada vez mais, numa escalada constante que permanece até os dias de hoje, a imagem disputa a importância com o texto.

A força do referente, na fotografia, sempre foi avassaladora. Entende-se como referente àquilo que dá forma à imagem, através da reflexão dos raios luminosos. Esse peso do “real” presente na fotografia foi tão grande que mudou o curso da história da arte, sendo um dos responsáveis pelo surgimento do abstracionismo. Roland Barthes, em seu “A Câmara Clara”, evoca esse peso ao dizer que o noema, ou a essência, da fotografia é tão somente atestar a existência de algo: “isto foi”.

Contudo, a partir do século XX dois questionamentos à “pureza” da fotografia foram colocados. Primeiro, é o fotógrafo apenas um manipulador do equipamento, impotente frente ao poder do referente? Segundo, a captura fotográfica, através da câmera, é desprovida da necessidade de codificação e interpretação, ou seja, é de fato uma cópia fiel da realidade?

Ivan Constantin
Ivan Constantin

Passou-se a discutir, então, o quanto o ato de fotografar era influenciado por quem estava atrás da câmera. Concluiu-se, obviamente, que a fotografia não era assim tão pura. Afinal de contas, o fotógrafo tem, em suas mãos, diversos instrumentos para guiar a captura fotográfica a fim de induzir uma determinada interpretação. O mais poderoso deles talvez seja o corte. Ao decidir o que permanece dentro do retângulo da foto e o que fica fora, o fotógrafo tem o poder de isolar ou contextualizar uma cena, alterando a forma como ela é percebida. Outras formas de distorção também são possíveis, como o uso de lentes de distância focal curta ou longa, que alteram completamente a noção de espaço, já que esticam ou achatam os planos na representação bidimensional do espaço tridimensional. Além disso, as fotos podem ser montadas e manipuladas, tendo como expoente o uso de tais procedimentos durante o período stalinista na antiga União Soviética.

Arlindo Machado, em “A Ilusão Especular”, mostra que mesmo a representação fotográfica obedece à perspectiva central consagrada no renascimento e há uma série de preocupações técnicas para que essa representação realmente se pareça com a realidade, ou seja, torne-se uma boa ilusão. Quando, pela alteração desses elementos técnicos, há um resultado que se afasta desse ideal (como uma imagem tremida, uma luz que achata a imagem, um borrão por movimento), a conseqüência é uma sensação de estranheza, já que a fragilidade da representação vem à tona.

A câmera fotográfica, então, não era mais detentora da verdade e o fotógrafo não era mais um mero apertador de botão. Isso, contudo, reflete mais uma posição teórico-acadêmica do que a visão do senso comum. A fotografia, para a maioria das pessoas, ainda é vista como entidade soberana, tanto que é tida como prova de que algo realmente aconteceu. Quando uma pessoa, flagrada em ato questionável numa imagem argumenta que a foto foi montada ou adulterada, isso não convence ninguém. E, com o uso cada vez maior das imagens pelo jornalismo, esse status não tende a mudar cedo.

skazama
skazama

Esse contexto evidencia a característica da fotografia quando olhada pelo prisma da relação entre o fotógrafo e a sua ferramenta. Ao contrário de outras artes, como a pintura e a literatura, em que há muito mais liberdade e as criações encontram menos obstáculos, na fotografia a obra está intimamente ligada às características do aparelho, como afirma Flusser em “Filosofia da Caixa Preta”. Há, então, uma queda de braço entre o fotógrafo, que busca atribuir à realidade conceitos pessoais, e o referente, que é o que é por si só e não está nem aí para os desejos do fotógrafo.

As técnicas disponíveis pelo fotógrafo, como o corte e a distorção, poderosas quando servem ao propósito de alterar a realidade, podem ser toscas e insuficientes quando o referente é muito diferente daquilo que o fotógrafo quer mostrar. A saída, para o fotógrafo, é construir a sua própria realidade, a partir, especialmente do trabalho no estúdio. Não é à toa que as fotos publicitárias são, na grande maioria dos casos, produzidas em estúdio, em que a realidade pode ser construída para parecer mais real do que a realidade “verdadeira”.

Mas mesmo o trabalho no estúdio tem as suas limitações, e não é tudo que se pode controlar, mesmo com holofotes, maquiagens e fundos infinitos. Essa queda de braço entre aquilo que o fotógrafo quer mostrar contra a forma como o real se apresenta inevitavelmente leva à frustração. Com isso, muitos seguem o caminho adicional de manipulação da imagem, que se assemelha, em sua forma, com a pintura, com o problema que ela ocorre sobre uma base pré-estabelecida, a captura fotográfica.

chillhiro
chillhiro

Percebe-se, então, que essa disputa de controle se dá com o fotógrafo atuando antes e depois do clique, alterando luzes, corte, assunto, abertura, velocidade e manipulando o resultado, a fim de cercar o único fator que ele não tem, de fato, acesso, que é a própria captura fotográfica. Enquanto o obturador está aberto, não há nada que o fotógrafo possa fazer; é o referente que está irradiando sua luz sobre a superfície fotossensível: resta ao operador esperar e torcer para que o resultado seja o que ele espera.

Ou seja, aqueles que almejam o uso da fotografia como mais do que um registro documental (que sucumbe à força do referente), é preciso que se tenham maneiras criativas de como lidar com a realidade, sem tentar bater de frente com ela, ou o resultado será invariavelmente frustrante. Não é incomum que o fotógrafo frustrado busque novos equipamentos, ou vá cada vez mais longe à procura de imagens que se encaixem naquilo que quer fazer. Isso dificilmente resolve o problema.

Não resolve porque a imagem está circunscrita no aparelho, como coloca Flusser. O fotógrafo, quando busca novas imagens, busca coisas que o aparelho ainda não fez, e isso significa muitas vezes novos referentes, embora a mesma abordagem com referentes distintos pareça repetitiva. A saída pode ser simplesmente deixar de brigar com essa questão, entendendo ser a fotografia também, um testemunho pessoal.

É útil também entender as limitações da fotografia e perceber que muitas vezes a saída mais criativa reside em outras formas de expressão. A fotografia, inexoravelmente, é limitada, embora esse limite seja incrivelmente amplo. Para tornar o caminho menos doloroso, é preciso aceitar o referente, aceitar a limitação do programa fotográfico e adotar uma abordagem que coloque o fotógrafo como complemento desses fatores, de forma que ele seja visível na obra, entendendo que ele é parte da construção, mas não necessariamente a parte dominante.

Fotografia: vedete do admirável mundo novo

No Flickr, mais de três mil fotos são publicadas a cada minuto. No Twitter, o número de mensagens superou os dez bilhões. A previsão de Flusser, feita 20 anos atrás, de que seríamos subjugados pelas imagens técnicas (telas de computadores, de televisão, de celulares) e apenas nos submeteríamos a uma avalanche infinita de informações “novas” a cada dia nunca pareceu tão concreta. A esperança de que talvez fosse possível usar a difusão da informática a das telecomunicações para o aumento da consciência sobre o funcionamento desse sistema, ao permitir uma espécie de contracontrole, diminui a cada movimento que “facilita” a comunicação.

Os e-mails já estão fora de moda. Os blogs já parecem pesados e antiquados. Fóruns de discussão são ferramentas rudimentares e seletivas. As formas de comunicação pela internet seguem a lógica da sigla TLDR, que significa too long; didn’t read, ou seja, “muito longo; não li”. A comunicação é cada vez mais fácil, imediata, curta, objetiva, clara. Porque escrever um e-mail se com 140 caracteres se cria uma mensagem no celular ou no Twitter?

Paul Hockett
Paul Hockett

No seu célebre 1984, escrito nos anos 50, George Orwell descreve a sociedade totalitária futurística no qual todos são vigiados através das teletelas. São monitores que ao mesmo tempo mostram e captam imagens, utilizados como instrumento de controle do governo. A privacidade não existia e cada cidadão precisava controlar até mesmo seus pensamentos: falar mal do líder (o Grande Irmão, ou Big Brother) até mesmo durante o sono poderia evidenciar um traidor, que era punido exemplarmente. O que Orwell não previu é que não seria necessário um governo totalitário para forçar as pessoas a perder sua privacidade. As pessoas voluntariamente, e com prazer, abrem suas vidas e sua intimidade para quem quiser ver. E não estou falando daqueles que aparecem em reality shows na TV, como o que tem o título ironicamente baseado no romance de Orwell. Falo de todos nós que nos expomos diariamente no Facebook, no Orkut, no Twitter, no Flickr. Somos o sonho de qualquer ditador.

No entanto, não há ditador. Há apenas um sistema baseado na comunicação cada vez mais rápida e simples, que premia com 15 minutos de fama e segue em frente, na necessidade voraz de produzir, a cada segundo, “novas” informações e “novas” imagens.  A arte já era “contemporânea” antes mesmo da telemática de Flusser se tornar tão evidente: já não importa mais a qualidade dos trabalhos, o valor das obras. Vale a rede do comunicação, os contatos, o networking. Quem faz o artista não é sua produção, é sua capacidade de se adequar a essas contingências. Para os que não aceitam esse novo estado de coisas: o próprio Flusser já diz que não adianta gastar voz contra a qualidade dos trabalhos ou pela restauração dos valores ultrapassados; é preciso conhecer o sistema e subvertê-lo de dentro, já que ele não é planejado nem controlado por ninguém. Ele simplesmente existe.

Daniela Munoz-Santos
Daniela Munoz-Santos

A fotografia digital é a vedete dos novos tempos. Ao permitir sua visualização e disseminação imediata (já existem câmeras que fazem upload automático das fotos para o Facebook ou outras redes sociais), ao não ser necessário o conhecimento de nenhum tipo de código para sua produção e leitura, como na escrita, ela é o combustível perfeito para essa roda de moinho que precisa de impulso constante. O conteúdo importa pouco, desde que seja de fácil compreensão e de preferência com uma forma impactante. Isso ajuda na sensação de que aquilo que está sendo visto é novo e relevante, embora se preste atenção por apenas um segundo e um minuto depois já foi esquecido, na medida em que nossa atenção já flutuou por dezenas de outros estímulos. Em última análise, não passa de mais do mesmo.

Obviamente, existem ótimos trabalhos expostos na internet (como os que ilustram este artigo, e foram postados justamente… no Flickr). A questão é que infelizmente eles se pulverizam sobre o mar de banalidades. Se forem vistos, poderão ao menos gerar uma dezena de comentários vazios e delegados ao esquecimento, logo em seguida. Os trabalhos mais apreciados na rede são aqueles que seguem a lógica do TLDR, que também vale para imagens: fotos de fácil compreensão, mensagem rasa, clara e limpa, que  alimente a roda e não a trave, exigindo reflexão ou uma leitura mais apurada.

Tenho visto as pessoas que de fato gostam da fotografia lidando de diferentes formas com esse cenário. Algumas simplesmente não conseguem se adaptar a ele, não postando fotos na internet e mantendo o velho hábito de imprimir as imagens ou apenas compartilhá-las com conhecidos. Outros, de forma inversa, entendem que é preciso lutar pela visibilidade a cada dia, e de fato obtêm sucesso com um trabalho consistente: embora muitas vezes ele seja pautado simplesmente pelos comentários de desconhecidos e envolva uma necessária repetição, o que inevitavelmente acaba tolhendo as possibilidades criativas. Alguns preferem uma perspectiva mais introspectiva, buscando fotografar para si mesmos, ainda que publiquem os resultados na internet. Inevitavelmente, nesse caso, há um conflito entre a perspectiva pessoal e a expectativa geral, de que as fotos devem comunicar algo menos particular. E há aqueles que não se preocupam tanto com a questão, simplesmente publicando imagens de forma indiscriminada: e essas imagens médias são o grosso desse oceano.

Andre Fromont
Andre Fromont

E há, de fato, poucas alternativas para quem fotografa e quer, de alguma forma, validar ou expor seu trabalho. Afinal de contas, a explosão da internet e de outras formas modernas de comunicação fazem com que se você não está online, é como se não existisse. O dilema é como se situar entre a inexistência e a pulverização no oceano de informações. Se alguém souber a resposta, me avise.

Passaram-se duas horas desde que comecei a escrever esse texto. Nesse meio tempo, mais de 360 mil fotos foram publicadas apenas no Flickr. Diversas pessoas acordaram e narraram suas atividades no Twitter. Inevitável pensar que é quase um exercício de simplesmente falar sozinho. Estarmos totalmente conectados, ao invés de propiciar a troca e a criação em conjunto de que Flusser fala, a partir de um patamar que é impossível de se obter sozinho, apenas nos torna mais narcisistas. Mas, se você chegou ao fim desse texto, é porque a lógica do TLDR ainda não é universal. E talvez nem tudo esteja perdido.