Vivemos numa momento histórico muito marcado pelo individualismo. O desenvolvimento e a vida urbana criam condições para que nos isolemos cada vez mais, e com isso percamos a noção do nosso real lugar no mundo. Em “A Solidão dos Moribundos”, Norbert Elias relata como nos afastamos cada vez mais da ideia de morte e desenvolvamos uma crença de imortalidade. “Quem morre são os outros, não eu.” Não falamos sobre morte com crianças, nos sentimos desconfortáveis quando confrontados com a nossa efemeridade, desenvolvemos rituais antissépticos para os momentos em que somos obrigados a enterrar os entes próximos e por aí vai. Por outro lado, em “Pavilhão dos Cancerosos”, Aleksandr Solzhenitsyn mostra como a proximidade da morte (negada até o último momento) nos une, independentemente do que fizemos na vida ou da nossa posição social.
Acredito que um dos resultados dessa falta de contato com a própria finitude é que nos levamos a sério demais. Atribuímos a nós mesmos, às nossas opiniões e às nossas atividades um grau irreal de importância. Passamos os dias absortos na resolução dos nossos grandes problemas: o pagamento das contas, o trabalho chato, o colega incômodo, o final da novela, o desempenho do time de futebol. Tudo parece incrivelmente importante. Nos prendemos aos detalhes do cotidiano por conta da falta de estrutura para nos darmos conta do que é a vida numa perspectiva mais ampla.
Como isso se reflete na fotografia? Primeiro, na criação da nossa identidade fotográfica. Estabelecemos uma série de regras para nós mesmos, criamos uma referência pessoal e navegamos dentro desses limites. “Faço esse tipo de foto”, “esse é o meu equipamento”, “gosto desses fotógrafos”, “uso essa marca de câmera”, “não fotografo nesse estilo” etc. Essa referência nos ajuda a nos sentirmos únicos, especiais, diferenciados. É possível que passemos muito tempo fotografando em função de reafirmar essa identidade, mesmo que isso signifique deixar de fazer coisas que gostaríamos. “Está um fim de tarde lindo hoje, mas não vou fotografá-lo porque pôr-do-sol é muito clichê”, é o que nos dizemos, com o dedo formigando para apertar o botão da câmera.
Uma outra forma de buscar destaque frente aos sete bilhões de outros seres humanos no mundo (como se isso fosse possível) é através do poder econômico. Entre os fotógrafos, isso significa a troca constante de equipamentos, o uso e ostentação de câmeras caras e a busca de desculpas, geralmente técnicas, para a sua aquisição. Alguns estudiosos da psicologia acreditam que a ostentação de bens materiais tem a função de compensar a falta de confiança e potência em áreas como a sexualidade. Pode ser verdade, mas acredito também que serve para tentar dar algum sentido à vida, já que esse movimento geralmente ocorre em momentos da vida em que a pessoa se depara com a perspectiva da morte.
As ideias que formulamos para justificar nossas atitudes também são algo que levamos muito a sério. Nas nossas rodas de conhecidos, nos fóruns e redes sociais da internet, o tempo todo procuramos reafirmá-las ou até mesmo as impor, já que essas palavras sustentam nosso modo de viver. Entretanto, são apenas palavras e conceitos que não se aproximam da experiência de viver — esta, na verdade, está além do alcance da descrição verbal.
Vamos todos morrer, cedo ou tarde. Viraremos pó. Nossas fotos virarão pó, ainda que possivelmente durem um pouco mais do que quem as tirou. Nossas ideias, que prezamos tanto, desaparecerão no momento em que o nosso cérebro desligar. Tanto as fotos quanto os conceitos que criamos com tanto esmero para impressionar os outros, caso persistam além da nossa morte, serão inúteis, pois os outros com quem nos preocupamos também não estarão mais aqui. Daqui a cem anos, 99% da população será de pessoas que ainda não nasceram. Nem eu nem você existiremos mais. E o mundo continuará girando, as coisas continuarão acontecendo. E o que você terá feito com essa fração de tempo até sua morte, que é a única coisa que você de fato tem?
Um ponto importante: não necessariamente a lembrança da própria finitude precisa levar a uma atitude niilista. Parece lógico pensar que se teremos um fim, que se somos apenas um indivíduo entre bilhões de outros existindo temporariamente num planetinha num canto remoto do universo, pouco importa do que fazemos da vida. Mas talvez seja justamente o contrário: se o que somos e temos é tão pouco, é preciso que o tempo seja muito bem aproveitado, que nossas atitudes sejam significativas e compassivas, tanto para si mesmo quanto para com os outros. Afinal de contas, estamos todos no mesmo barco. Na fotografia: sabendo que você fará, na vida, apenas uma fração ínfima das fotos que podem ser feitas, a atitude lógica, na verdade, é que cada uma das oportunidades para fotografar seja muito bem aproveitada.