Inveja fotográfica

Gosto muito de ver fotografias. Não ligo tanto para fotógrafos famosos, gosto mesmo de ver a produção dos milhares de fotógrafos anônimos que existem por aí. Uma das formas que utilizo para isso é navegar pelo Flickr, por fóruns de fotografia e sites de fotógrafos amadores. Embora na maior parte do tempo eu passe admirando as imagens, reconheço que de vez em quando bate uma “inveja fotográfica”.

A inveja fotográfica é aquela voz no fundo da cabeça que diz coisas como: queria ter feito essa foto, vivido esse momento, estado nesse lugar, ter essa câmera, visto essa luz, conseguido essas cores. Imagino que isso deva ser algo comum entre os que gostam de fotografia e algo meio inevitável. A questão é: o que fazer com isso?

É claro, podemos não fazer nada. Mas sinto que esse tipo de sensação, quando estamos vendo uma foto, nos faz perder a conexão com a fotografia. É como se tirássemos os olhos da imagem e os virássemos para nós mesmos, para nossas faltas, nossos desejos, nossos anseios. Então, quando sentimos a inveja fotográfica, surge uma boa oportunidade para nos encararmos.

Muitas vezes, não conseguimos fazer isso. Não percebemos que a sensação ruim que temos ao ver as fotos do outro tem mais a ver conosco do que com o outro. E aí, a inveja pode se tornar raiva, agressividade ou desdém. Critica-se o trabalho, o equipamento e até o fotógrafo. Uma das situações em que vejo isso com frequência é quando um fotógrafo tem uma proposta artística diferente e consegue reconhecimento. Quando não se consegue “engolir” a repercussão da fotografia do outro, fala-se que o trabalho não tem qualidade técnica, não tem conteúdo, que é de mau gosto e coisas do tipo. Nesses casos, a crítica tem menos a ver com a produção em si e muito mais com as dificuldades de quem está criticando — não raramente, sob a crítica há a inveja da produção ou do sucesso.

Karla Lopez
Karla Lopez

Por outro lado, se reconhecermos que a sensação negativa provocada pelo trabalho do outro tem a ver com nosso próprio ego, há uma oportunidade de mudança. Podemos, por exemplo, usar aquele trabalho como inspiração. Tentar fazer algo parecido, usar o outro como modelo, é algo totalmente válido no campo da criação fotográfica. Se a questão é o equipamento, talvez seja a questão de trocar o equipamento, ou viajar para o lugar em que aquela foto magnífica do outro foi feita.

Mas essas alternativas devem ser consideradas com cuidado. Pois podemos nos perder nesse processo de pura imitação, comprando câmera atrás de câmera, ficando obcecados por conseguir uma determinada foto e até esquecendo de viver para registrar tudo em fotografias. Podemos olhar para o outro, mas depois há o momento, fundamental, de olhar para si mesmo e para a própria produção. E aí, entender que não é possível tirar todas as boas fotos do mundo, ter todos os equipamentos, estar em todos os lugares. Percebemos que temos limitações, e ao longo da vida teremos apenas a nossa própria história para contar. Em vez de querer tudo, podemos passar a querer fazer o melhor possível dentro dos nossos limites, dentro daquilo que vivemos de fato — e não do que poderíamos ter vivido.

Se entendermos isso, algo muito interessante acontece: passamos a admirar, sem inveja, o trabalho do outro. Aprendemos a valorizar o diferente, pois vemos que o outro tem seu lugar e nós temos o nosso — e eles não precisam ser conflitantes. A inveja desaparece porque não sentimos mais necessidade de tomar posse da fotografia alheia. Deixamos o outro ser quem ele é e ao mesmo tempo valorizamos o nosso próprio trabalho, pois compreendemos que a nossa produção e a do outro não estão competindo, e sim coexistindo. Aceitamos, enfim, que cada caminho é único.

Foto do cabeçalho: Fatma Gultekin

Ser um bom fotógrafo

Quando começamos a nos envolver um pouco mais seriamente com a fotografia, uma das primeiras coisas que pensamos é “quero ser um bom fotógrafo”. É natural, pois reconhecemos que as nossas fotografias, no início, não se parecem com aquelas que vemos em revistas, sites, jornais ou galerias de arte. A partir da percepção dessa diferença, imaginamos que há um caminho a ser percorrido, para que possamos criar fotografias tão impactantes e bonitas como aquelas que tomamos como modelo.

O problema é que na verdade não sabemos muito bem o que é um bom fotógrafo. Nós reconhecemos um bom fotógrafo quando vemos um, mas não sabemos muito bem por quê. Para resolver esse problema, tentamos estabelecer alguns critérios para entender porque fulano é um bom fotógrafo, de modo que possamos ter alguma ideia de como é esse caminho que devemos percorrer. Imaginamos que ser um bom fotógrafo é saber operar uma câmera, saber usar a luz, achar assuntos interessantes, ou até mesmo ganhar dinheiro com a fotografia, ser reconhecido ou ter suas fotos publicadas em algum local de destaque. Cada um de nós cria uma imagem do que é esse bom fotógrafo e se põe a perseguir esse ideal. Dependendo das qualidades que acreditamos que um bom fotógrafo possui, estabelecemos um método para tentar chegar nesse patamar.

Muitas pessoas persegue o caminho técnico, a partir da concepção de que um bom fotógrafo é aquele que sabe como mexer numa câmera. Para esses, a receita é saber usar o modo manual, comprar os melhores equipamentos, entender como usar os programas de edição de imagem.

Alguns outros irão pelo caminho do estudo da arte. Visitam museus, listam os movimentos da história da arte, conhecem os fotógrafos mais reconhecidos nesse campo. Fotografam conceitualmente, buscam ser originais e criar um estilo estético próprio.

Outros podem seguir o ideal jornalístico. Preocupam-se em encontrar eventos que sejam dignos de serem retratados. Estudam os melhores momentos e ângulos para transformar uma cena em uma imagem impactante.

Mais uma possibilidade é seguir o ideal publicitário. Fotografando objetos ou cenas de modo a embelezá-los, torná-los o mais atraentes possível. Geralmente focam na fotografia de estúdio, trabalhando com luzes, sombras, cores e formas. Têm como objetivo aquela fotografia perfeita e atrativa.

Matt Callow
Matt Callow

É claro que os exemplos acima são um pouco caricatos. As pessoas geralmente terão algum grau de mistura desses modelos, ou se identificarão com outros caminhos que não citei. Mas a intenção é apenas mostrar que estabelecemos mentalmente um caminho e acreditamos que lá no fim dele, onde o arco-íris acaba, estará esse pote de ouro, a “boa fotografia”.

A questão é que, lá no começo, quando pensamos “quero ser bom”, nós na verdade já caímos numa armadilha que pode nos afastar da criação, da expressão autêntica daquilo que somos e fotografamos. O “quero ser bom” cria um conceito, um ideal que é colocado lá na frente, e no momento em que passamos a persegui-lo, damos as costas para a alma da nossa fotografia, pois parece que tudo que fazemos antes desse momento futuro perde seu valor. Se tirarmos da frente esse conceito do que é bom ou ruim, percebemos que tudo aquilo que fotografamos é importante, bonito, significativo. Cada momento que passa torna-se inalcançável. E, enquanto nos preocupamos com os nossos próprios critérios para sermos bons, a vida, os momentos e as cenas escorrem pelos nossos dedos.

Nós não precisamos perseguir um ideal, nem nos preocuparmos com sermos bons. Por que desvalorizar o que se tem hoje para colocar lá na frente um objetivo, um dia milagroso em que seremos bons — em que só aí nossas fotografias serão dignas? Em vez disso, podemos focar em cada passo que damos nesse caminho, olhando para o agora e não para o futuro. Entrar em contato com o assunto, com a cena, com o momento. Fotografar como se cada fotografia fosse a única. Porque, se você pensar, não existe essa boa fotografia futura. Só existe, para sempre, aquela que você está fazendo agora.

Oficina virtual de fotografia: Fotografe o que você conhece

Uma das regras que se dissemina para aqueles que querem começar a escrever é: “escreva sobre o que você conhece”. É uma boa dica, pois é mais provável que você crie uma história melhor sobre aquilo que já viveu, sentiu ou experimentou. Talvez possamos pensar na mesma ideia para a fotografia.

Temos uma ideia pré-concebida daquilo que vale a pena ser fotografado. Paisagens fantásticas, viagens extraordinárias, eventos especiais. É claro que essas coisas merecem fotografias, mas elas são uma parte muito pequena das nossas vidas. A melhor história que você pode contar com a sua câmera é aquela que você vive cotidianamente, com a qual tem intimidade e proximidade. Podemos achar que essa nossa história não tem nada de fantástico que justifique fotografar, mas é um engano: se você souber olhar, uma ida à padaria pode ser tão interessante quanto um cruzeiro marítimo.

Proponho, então uma série de exercícios a fim de direcionar o olhar e o fazer fotográfico para o familiar, o cotidiano, o simples.

Xiu Xiu
Xiu Xiu

1. Olhe a sua volta
O que faz parte da sua vida? Quais são os lugares que você frequenta diariamente? Por quais ruas você passa? Com que pessoas interage? Com quem você convive? O que você ama? O que você odeia?

Tente fazer uma lista com as respostas para essas perguntas. Apenas registre, catalogue. Passe a fotografar mentalmente conforme você vive seu dia a dia. Faça um inventário do que é fotografável do seu cotidiano. Coloque no papel, crie categorias, divida por assuntos ou temas. Leve o tempo que quiser nessa etapa. Se tiver que passar meses só olhar, que seja.

2. Reconheça
A partir das coisas que você listou fotograficamente no primeiro exercício, comece a explorar o significado dos lugares, a relação afetiva com as pessoas, os detalhes dos ambientes em que você vive. Tente pensar no que define cada pessoa, na beleza que há nos seus caminhos, na essência de cada momento. Não fotografe nada. Apenas repare, note, descubra. Olhe para seus sentimentos, suas sensações e seus pensamentos a cada momento que você reconhece algo como relevante. Depois, anote tudo isso, se quiser. Mais uma vez, leve o tempo que quiser: “cozinhe” as ideias na sua cabeça à vontade.

3. Fotografe
Agora é a hora de fotografar tudo aquilo que você passou a perceber e a valorizar nos exercícios anteriores. Aqui você pode estudar qual a melhor técnica, o melhor equipamento, a melhor luz e a abordagem que você vai usar para que a fotografia mostre as coisas que você vive tais quais você as enxerga. Pense na relação que você tem com cada lugar ou pessoa, e tente fazer com que isso esteja presente de alguma forma nas fotografias. Entretanto, seja honesto: sua vida não precisa de retoques. A questão aqui é encontrar o valor nas coisas como elas são e não criar uma reinterpretação fantástica.

4. Conte sua história
Por último, você pode criar uma série de fotos. A edição, ou seleção das fotos que entram ou saem, sempre é algo difícil. Geralmente temos problemas em dizer não para aquilo que produzimos. Mas uma série curta, que tenha força naquilo que expressa, é melhor do que uma série longa, prolixa e repetitiva. Apague sem dó. Não use a estética ou os aspectos técnicos como o principal critério para escolher as fotos. Lembre-se de que não se trata de agradar os outros ou de atestar a sua capacidade como fotógrafo, mas sim de reconhecer o valor naquilo que o cerca. As diretrizes devem ser, então, a relevância afetiva e a autenticidade. Se você vê na foto aquilo que vê na vida, a foto ficou boa. Foco, enquadramento e outros aspectos são menos importantes aqui.

Não se preocupe em criar nada extraordinário, nem com a opinião de pessoas que não façam parte da sua vida. Faça esses exercícios por você e pelo que vive. Preste uma homenagem. Use sua câmera como um instrumento de reconhecimento e valorização daquilo e de quem você escolheu fotografar. Pois são essas pessoas, espaços e lugares que compões a sua vida, é isso que você é.

Autoconhecimento através da fotografia

Quando a fotografia assume um papel de relativa importância na vida de alguém, ela pode ser uma ilustração de como aquela pessoa encara a sua própria existência e o mundo à sua volta. Sendo assim, a fotografia pode ser um instrumento de autoconhecimento. Para tanto, é preciso olhar para a própria produção e, mais importante ainda, para a maneira como a fotografia permite nos relacionar com o mundo. Algumas perguntas podem servir como guia para a compreensão de si através da fotografia, como as que são listadas abaixo. Gostaria de ressaltar, no entanto, que essas são apenas direções iniciais, quase uma brincadeira. Pois o autoconhecimento é algo que demanda tempo, coragem e persistência a fim de conseguir olhar para dentro e reconhecer aquilo que se é de fato, pois não é raro que passemos grande parte da vida fazendo o oposto, que é fugir de nós mesmos.

1. Qual é a sua motivação para fotografar?
Muitas razões podem nos levar a começar a fotografar. O encantamento com a estética da fotografia, com sua expressividade, com sua força. A presença da fotografia é quase universal na nossa cultura. E, de uma forma ou de outra, todo mundo fotografa. Sendo assim, é um passo simples encará-la como uma atividade que nos proporcione algum tipo de significado, ou de sentido. Podemos tentar fazer com que a nossa fotografia fale por nós, expresse nossa visão. Todos nós procuramos por algo, e a arte — no caso, a fotografia — pode ser um pilares em que sustentamos nossa busca.

2. O que você consegue através das suas fotos?
Nem sempre aquilo que nos mantém fotografando foi o que fez com que começássemos a fotografar. No meio do caminho, podemos conquistar o reconhecimento que almejávamos, o que pode ser tornar uma armadilha: pois passamos a ter como objetivo manter o reconhecimento, e por isso passamos a fotografar para agradar, para manter-se num determinado padrão que funcionou. É fácil nos enrijecer e sabotar a própria criatividade quando a fotografia começa a dar certo. Perguntar-se, então, qual a função atual da fotografia na própria vida é uma forma de entender o que valorizamos, o que exerce influência sobre nós e, sobretudo, se o caminho que estamos percorrendo é o que de fato queremos percorrer. Se não for, talvez seja necessário deixar de fotografar apenas para agradar e receber elogios. Entretanto, passa-se a ser mais coerente com a motivação pessoal, resgatando a autenticidade, muitas vezes tendo a rejeição como preço.

Laura Thorne
Laura Thorne

3. O que você fotografa?
Pessoas? Lugares? Detalhes? Formas? Fotografamos aquilo que nos interessa, que nos é importante, que nos diz algo. Em resumo, fotografamos aquilo que vivemos, que experimentamos. Não podemos fotografar algo com o que não estamos tendo contato direto, no momento. Nas nossas fotos encontramos aquilo com o que nos envolvemos.

Às vezes gostaríamos de fotografar algo diferente daquilo que conseguimos de fato fotografar. Sonhamos com fotografar certos lugares, pessoas ou situações. Podemos entender esse desejo como um desejo de que a nossa vida talvez fosse diferente. Perguntar-se “fotografo aquilo que é significativo para mim?”, de certa forma pode significar: “vivo a vida que quero viver?”.

4. Qual a importância da técnica para você?
A forma como fotografamos e como editamos as nossas fotos pode dizer bastante sobre a nossa forma de lidar com as situações da vida, de forma geral. Você fotografa de forma espontânea, despreocupada ou meticulosa, buscando a melhor técnica, a melhor luz, o melhor enquadramento? O quanto você é severo com a qualidade das suas próprias fotos? Você busca controlar o ambiente em que fotografa, montando cenários, criando luzes? Ou apenas fotografa aquilo que vê, do jeito que está lá? Deixa a fotografia como ela sai da câmera ou passa um bom tempo fazendo ajustes nos programas de edição de imagens? Não existe um jeito certo ou errado de abordar a fotografia, do mesmo jeito que não há uma maneira certa de se viver. A questão apenas é identificar qual é a sua maneira.

5. Qual a importância do equipamento para você?
É impossível fotografar sem uma câmera. A forma como nos relacionamos com a nossa fotografia muitas vezes engloba a forma como nos relacionamos com nosso equipamento. Geralmente desenvolvemos um certo apego, pois é a câmera que nos permite registrar aquilo que vivemos ou criar expressões do que sentimos em uma determinada experiência. No entanto, não é raro que a fotografia se torne um mero pretexto para o consumo e a manipulação de aparelhos. Você sabe que está nesse ponto quando passa mais tempo “testando” seus equipamentos do que de fato colocando-os em uso. Quando de fato estamos usando o equipamento para fotografar, ele fica em último plano. Quando fotografamos para usar o equipamento, ele é o protagonista.

Or Hiltch
Or Hiltch

6. O que você faz com as suas fotos?
Depois de fotografar, as fotos podem ter diversos destinos: permanecerem esquecidas em algum HD ou cartão de memória, serem publicadas em redes sociais ou galerias online, impressas, emolduradas, presenteadas, expostas. Olhar para esse aspecto permite esclarecer melhor qual é o papel da fotografia para você: ela pode servir apenas para recordação, para expressão, para buscar reconhecimento ou dinheiro. Mostrar fotografias é uma forma de falar. De que forma você fala? Você monologa, dialoga? Sua fala é simples ou é complexa? O que você tem a dizer? E a sua fotografia, o que diz?

7. O que você vê quando olha para suas fotos?
Quando você olha para suas fotos, você vê a si mesmo. Na maior parte das vezes, você não estará lá — a menos que você seja um aficionado por autorretratos. Ali estará o que você viu, o que você viveu. Quando você percebe o fluxo do tempo, dos interesses, dos lugares e das pessoas cuja luz passou pelas lentes da sua câmera, você tem uma boa impressão disso que chamamos de “eu”. É possível que esse “eu” seja algo ilusório — assim como as fotografias, que também não são a realidade — mas é nessa ideia de continuidade que se baseia nossa identidade.

É bom lembrar, entretanto que há um porém nas fotografias e que nos adverte que talvez não devamos nos apegar demais ao que está ali. A fotografia, por mais fantástica que a possa ser, tem uma limitação crônica: está sempre situada num momento que não é mais. Da mesma forma, você não é mais o que foi ontem, e amanhã será diferente do que é hoje. Conhecer-se significa reconhecer esse fato básico sobre nós mesmos: que o que encontrarmos será sempre algo momentâneo, tal qual um instantâneo fotográfico.

Entrevista para o blog Frame

O Peri, que mantém o blog Frame, sobre fotografia, gentilmente me convidou para um entrevista sobre esse assunto que os blogs têm em comum. Embora já trocássemos ideias em diversos “locais” pela internet, foi uma ótima experiência falar diretamente sobre o tema, e tê-lo como um interlocutor real. Agradeço ao Peri pela oportunidade de conversa e pelas ótimas perguntas, que me ajudaram a rever minha própria trajetória e organizar minhas concepções sobre a fotografia.

A entrevista completa pode ser acessada no Frame. Seguem alguns trechos:

Frame: Você tocou num ponto interessante que é a mudança de sistema de fotografia.
Enquanto a maioria foca no upgrade de seus equipamentos, atualizando sistemas e adquirindo novos materiais, você vai no caminho inverso e reduz o seu, ficando como você mesmo disse, apenas com uma compacta e uma câmera de filme.
A que conclusão você chegou com esta mudança?

Rodrigo: Acho que a redução do equipamento veio junto com uma mudança de estilo de vida, em que reduzi muitas outras coisas, como livros, roupas, eletrônicos… Numa tentativa de viver mais com o essencial. E na fotografia foi a mesma coisa. Eu não precisava de cinco ou seis câmeras. Depois vi que não precisava mais de uma reflex digital. Poderia até deixar de fazer algum tipo específico de foto, mas isso não compensava o “estorvo” de um monte de trambolhos para serem guardados, carregados, consertados. Associado a isso, percebi que poderia fazer a maior parte das fotos que já fazia usando uma compacta, ou até mesmo um celular. Depois dessa mudança, confirmei a hipótese de que eu precisava de muito menos do que eu achava. Não sinto falta, pois procuro pensar naquilo que eu posso fazer com o que tenho em mãos, e não no que poderia fazer se tivesse um outro equipamento.

Frame: E, a fotografia no mundo atual com toda esta velocidade tem deixado de ser “obra” para ser mera produção visual sem um aprofundamento adequado?

Rodrigo: Essa é uma pergunta interessante. Penso que ninguém é obrigado a saber fotografar, do mesmo jeito que ninguém é obrigado a saber preparar um suflê. Quem quiser se aprofundar em um desses assuntos pode ir fazer um curso de fotografia ou de culinária, mas quem não quiser pode simplesmente fotografar no celular (em que o aparelho toma as decisões técnicas para a pessoa) ou ir a um restaurante (em que o cozinheiro prepara o suflê para a pessoa). Não acho que exista um jeito certo ou adequado de produzir fotografias. Todos os jeitos são válidos, porque partem da função que a fotografia tem para cada pessoa. Pode apenas ser o de mostrar um momento como pode ser um hobby, um objeto de estudo ou um trabalho. Cada pessoa pode encará-la da forma que quiser e seria estranho dizer que uma é melhor do que a outra, ou que uma é mais adequada do que a outra. Se a fotografia cumpriu a função que tinha para a pessoa que a fez ou que a viu, ela é válida.

Voltar a ter prazer em fotografar

Muitos fotógrafos parecem chegar a um ponto da sua trajetória em que se sentem perdidos, desanimados e desmotivados em relação à fotografia. O que foi uma atividade significativa e prazerosa passa a ser um esforço. Ele se pergunta: “o que estou fazendo de errado?” e tem dificuldade em entender o que aconteceu no meio desse caminho, onde ele se perdeu. Para entender isso, talvez não baste olhar só para onde ele está, mas para o seu percurso como um todo. Há um componente natural e onipresente nesse processo que parece ser positivo, mas que pode justamente ser a origem da sua perdição: querer fotografar bem.

Todos nós já pensamos nisso em algum momento. Mas existem muitos caminhos pelos quais podemos tentar melhorar a própria fotografia, sendo que a forma como abordamos esse “problema” pode alterar a relação que temos com a fotografia e ser um dos motivos pelos quais chegamos a esse momento de insatisfação e desânimo.

Pois assim que pensamos em fotografar melhor, nos defrontamos com a questão: o que é uma boa fotografia? Pense numa fotografia que você gosta. Tente entender porque você gosta dela. Porque provoca uma reação emocional? Porque é tecnicamente bem feita? Porque ela é organizada geometricamente? Podemos ter muitas explicações, incluindo até aquelas que envolvem teorias de semiótica, comunicação ou psicologia. Mas logo você vai perceber que não há uma boa resposta geral e definitiva para essa pergunta. Nenhuma explicação dá conta de definir todas as boas fotografias. Reconhecemos uma boa fotografia quando vemos uma, mas nossas tentativas de explicá-la através de palavras não conseguem expressar aquilo que vemos. E aí, quando temos uma pergunta cujas respostas não satisfazem, talvez isso signifique que a nossa pergunta não é boa.

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Zephyrance Lou

Geralmente não nos detemos muito nessa análise. Se nos detivéssemos mais, entenderíamos que a boa fotografia não existe. Ou melhor, existe, mas não é passível de uma descrição ou racionalização, como imaginamos. Mas  insistimos em alguma definição, e como não a temos, estabelecemos critérios arbitrários que nos indicam que estamos fotografando bem e passamos a persegui-los. Um dos objetivos concretos que nos diz que estamos fotografando bem é a aprovação externa. Se recebemos um tanto de curtidas nas nossas fotos, aprovação dos amigos, ou até um tanto que faturamos, acreditamos que estamos fazendo uma boa fotografia.

E é justamente aí que começamos a nos perder: ao criar um conceito para definir o que é a boa fotografia, e passar a perseguir esse conceito. Pois quando perseguimos uma ideia, perdemos o contato com a experiência. Podemos ganhar aprovação, respeito e admiração, mas se esse é o nosso fim, então a fotografia se tornou apenas um meio. Querer fotografar bem pode, paradoxalmente, nos distanciar da fotografia. Depois de anos de prática — que é justamente quando estamos fotografando bem — já não conseguimos mais sentir o mesmo prazer, a mesma satisfação ou enxergar na fotografia o mesmo sentido do início. E, quando isso ocorre, quer dizer que o sentido foi abandonado em prol de uma evolução que nunca termina. O fotógrafo percebe, então, que não adianta insistir no caminho que já vinha seguindo: quanto mais ele conseguir sucesso dentro do conceito que substituiu seu amor pela fotografia, mais longe estará do sentido original. Ele se pergunta como, então, resgatar a “inocência perdida”.

Esse resgate é difícil porque envolve deixar de lado os substitutos, tão agradáveis e reforçadores, que ele elegeu como objetivos. Significa não mais usar sua fotografia para conseguir reconhecimento, valorização e sucesso. Significa voltar-se diretamente para a experiência de fotografar. Conectar-se novamente com o que há no mundo que o fez querer fotografar. Apreciar seu equipamento e o que ele lhe possibilita fazer (lembrando que o equipamento, sim, é um meio). Mergulhar nos estados contemplativos em que se coloca ao fotografar, ao tratar imagens, ao revelar um filme. E, claro, amar aquilo que a sua fotografia, quando pronta, mostra, diz, expressa. E estar atento à tentação de usar essa fotografia novamente como um meio para o que ele acabara de abandonar — o reconhecimento, a valorização, o sucesso — ou ele se perderá mais uma vez.

Originalidade e cópia

A visão que temos da originalidade, da criatividade e do processo de criação artística de forma geral talvez seja um pouco idealizada. Pensamos que a criatividade é algo que brota de dentro de nós, que a originalidade se deve a uma genialidade em pensar o que nunca se pensou antes. E que o artista é essa pessoa que gera, do nada, uma série de obras incríveis. Encarar esses processos dessa forma acaba sendo um tiro no pé para quem quer criar, pois ele pode procurar nos lugares errados algo que simplesmente não está lá.

Sejamos honestos: nós não criamos. Nós copiamos, roubamos ideias, adaptamos conceitos que ouvimos dos outros. O cara “criativo” é aquele que consegue remixar tudo que absorveu e produzir uma mistura diferente, uma cópia mais elaborada. Nada é criado do zero. E não há nada de errado com isso. É assim que o processo criativo funciona, e quanto mais cedo entendermos isso, melhor podemos produzir.

Para escrever um texto, uso palavras que não criei, apenas aprendi. Escrevo na forma em que fui ensinado — sou grato a meus professores de português e redação, lá da época do colégio — e na forma que absorvi de tudo que já li até hoje. Para fazer uma foto, uso uma câmera, que não fui eu quem criei, fotografo um mundo, que também não fui eu que criei, utilizo regras e conceitos de outras pessoas sobre o que é bonito, o que é válido, o que é significativo. Uso receitas, regras e materiais externos para escrever e fotografar. Mesmo assim, gostamos de dizer que “criei uma história”, “criei uma foto”. O engraçado é que posso usar da mesma forma uma receita, feijão, cebola, alho e carne de porco, mas não digo que “criei” uma feijoada.

Não há nada exclusivamente meu naquilo que faço. O que eu chamo de “eu” nada mais é do que a soma e a mescla de todas essas influências que recebi. Quando recebo um elogio por um texto ou uma foto, meu ego se alegra e quer tomar para si o mérito, mas sei que quem deveria ser elogiado são meus professores, amigos, familiares e desconhecidos de quem roubei, mesclei e reproduzi a forma de fotografar ou de escrever. E, por sua vez, o mérito também não é deles, mas sim de quem os influenciou.

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Ian

Isso que dizer que, quando se quer fomentar o próprio processo criativo, quando se busca inspiração, não adianta muito ficar consigo mesmo, ruminando ideias até que saia algo que valha a pena. Faz muito mais sentido procurar algo que se gosta e tentar copiar. Ver exposições, livros, olhar para o trabalho de fotógrafos admirados, e tentar fazer igual. Se você copiar bem e bastante, de fontes diferentes, um dia terá uma produção significativa e que será vista como original, pois você produzirá um remix único de tudo aquilo que copiou. E aí, se alguém quiser copiar suas fotos, tome isso como um reconhecimento, e não como uma ofensa. Primeiro, porque 99% das fotos que são feitas são simplesmente ignoradas. Segundo, porque a sua foto não é de fato sua, você já a roubou antes de outros.

A nossa tendência é não gostar muito da ideia de que somos fruto das nossas influências. Gostamos de pensar que somos únicos, especiais, que a nossa criatividade é algo que possuímos, como se pudéssemos criar a criatividade por conta própria. Nosso ego não gosta de dividir os louros com os outros. Mas isso é uma mera ilusão. Tudo que “criamos”, criamos a partir do que já existe, nos apoiando no que foi feito antes. Cada um de nós coloca um pequeno tijolo numa parede gigantesca que é essa criação cultural humana. Nosso tijolo se apoia nos anteriores e servirá de apoio para os posteriores.

Cada texto que escrevemos, cada foto que fazemos, tem embutidos em si 10 mil anos de civilização.

Só a nossa soberba egocêntrica é capaz de nos fazer passar por cima disso para dizer que aquilo que crio é exclusivamente “meu”. É interessante tentar abandonar as nossas restrições egóicas e nos permitirmos copiar, nos apoiar conscientemente nas nossas influências e a enxergar a nossa própria produção como um trabalho coletivo, não algo que é exclusivamente nosso.

P.S.: A ideia desse post foi roubada motivada pelo livro “Steal Like an Artist”, de Austin Kleon, que me foi indicado pela Mariana Rebello.

Experimentar. Sentir. Fotografar.

Entre os dias 23 e 25 de agosto, foi realizada no Espaço f/508 de fotografia, em Brasília, a Oficina Fotografia Contemplativa: A Beleza do Simples. Ministrada por Rodrigo Fernando Pereira, editor do Câmara Obscura, o curso teve como objetivo estimular nos participantes a flexibilidade, o mindfulness, o retorno ao presente e a aceitação, tendo como instrumento a fotografia. Através de técnicas como meditação, relaxamento e desconstrução da linguagem, criou-se o clima propício para uma saída de fotografia contemplativa no parque Olhos D’Água. A oficina contou ainda com a elaboração de haicais, uma forma de poesia oriental que leva ao contato com o aqui e o agora.

“A fotografia sempre ocupa um lugar que não o seu. Quando fotografamos uma viagem, a fotografia ocupa o lugar por onde passamos, quando fotografamos um evento, ela ocupa a memória daquele momento, quando fotografamos uma série, ocupa o lugar do “EU”. Hoje, assistindo a oficina “Fotografia contemplativa: a beleza do simples”, realizada no f/508 pelo Rodrigo Fernando Pereira, percebi que nesse momento a fotografia ocupou o seu próprio lugar: a poesia.”
Humberto Lemos

Confira alguns dos trabalhos realizados pelos participantes durante a oficina.

Fotografia contemplativa

A fotografia é uma atividade que envolve uma série de processos mentais. Pensamos no que fotografar, em que ângulo, com que luz, qual lente, que abertura, velocidade etc. Com isso, ao fotografar, temos em nossas mentes uma série de filtros, regras, expectativas e concepções. Tudo isso ocorre porque fotografamos querendo um certo resultado. A partir dessa expectativa, elaboramos todo um quadro mental de como obter esse resultado. Geralmente, acreditamos que temos que buscar algo fora do comum, que seja impressionante, impactante, chocante.

Embora seja necessária quando se fotografa profissionalmente, quando a fotografia é apenas um hobby toda essa atividade mental pode nos fazer facilmente perder o contato com o momento. Nos voltamos demais para dentro das nossas mentes, o que nos impede de viver de fato. Há uma proposta, entretando, que vai justamente na contramão desse estado de espírito ao fotografar: a fotografia contemplativa. Continue lendo “Fotografia contemplativa”

Fotografia e empatia

Somos muito apegados ao conceito de eu, de self. Temos como hábito cultivar a nossa própria imagem. Talvez porque isso seja uma das consequências do nosso instinto de sobrevivência. Ou porque a sociedade estimule o individualismo. Independentemente das origens dessa percepção, o fato é que nos vemos como únicos, distintos e separados de tudo aquilo que nos rodeia. Nos vemos como especiais mesmo sabendo que existem sete bilhões de outros seres humanos no planeta.

Isso faz com que seja muito difícil conseguirmos enxergar o mundo através dos olhos do outro. Se estamos parados num engarrafamento, temos a concepção de que queremos chegar a algum lugar e todos os outros carros estão nos atrapalhando. Entretanto, todos ali estão passando exatamente pela mesma coisa, querendo simplesmente chegar onde se quer chegar. Dizemos que estamos presos no trânsito, mas na verdade nós somos o trânsito. Nós somos a fila, o ônibus cheio, a praia lotada. Estamos todos no mesmo barco, mesmo que tentemos nos diferenciar com um carro mais caro, uma roupa da moda ou ideias de vanguarda. Fazemos o que for necessário para combater a concepção de que somos apenas mais um na multidão e acabamos reforçando o abismo que existe entre eu e o outro.

Slimmer Jimmer
Slimmer Jimmer

Mas nos temos à nossa disposição um instrumento que pode ser muito útil para favorecer a empatia – essa capacidade de se colocar no lugar do outro. Esse instrumento é a fotografia. Mas ela só será útil para esse fim se conseguirmos abandonar, por um momento, as reações automáticas que nos fazem julgar tudo a partir das nossas preconcepções e de fato olhar, sem preconceitos e opiniões. Quando vemos uma fotografia sem essa disposição empática, fazemos apenas julgamentos autocentrados: eu não fotografaria assim, eu usaria outra câmera, eu não viajaria para esse lugar, eu gostaria de ter feito essa foto. E com isso perdemos a fantástica oportunidade que temos de enxergar uma fração da vida do outro, a partir do ponto de vista do outro.

Ao mesmo tempo, temos a expectativa de que os outros vejam as nossas fotos da maneira que não conseguimos enxergar as deles. Postamos e publicamos fotos o tempo todo nas redes sociais, blogs, fóruns… Esperando um pouco de atenção, “curtidas” e reconhecimento efêmero. E, já que não conseguimos dar a atenção que buscamos, no máximo entramos num esquema de “eu curto a sua e você curte a minha”. O que no fim resulta em milhões de monólogos tristes e vazios – não porque não tenham valor em si, mas porque a comunicação simplesmente não se estabelece. Todo mundo grita e ninguém ouve. São assim as redes sociais.

E se, ao invés de tentarmos gritar cada vez mais alto, deixássemos de gritar? E se apenas parássemos para ouvir? Se esquecêssemos a pretensa maior importância daquilo que temos para dizer e experimentássemos a incrível possibilidade de ver com os olhos de milhões de outros, que está na ponta dos nossos dedos? E guardássemos para nós nossas fotos, ou no máximo as mostrássemos apenas para quem realmente importa, em vez de buscar freneticamente as aprovações que afagam o nosso ego por apenas alguns segundos? Pode parecer assustador abrir mão da pouca atenção pela qual já temos que nos esforçar tanto. Mais assustador ainda é deixar de cultivar o eu, reafirmar a nossa importância, o tempo todo. Mas aí, por outro lado, talvez possamos simplesmente ser livres.