Originalidade e cópia

A visão que temos da originalidade, da criatividade e do processo de criação artística de forma geral talvez seja um pouco idealizada. Pensamos que a criatividade é algo que brota de dentro de nós, que a originalidade se deve a uma genialidade em pensar o que nunca se pensou antes. E que o artista é essa pessoa que gera, do nada, uma série de obras incríveis. Encarar esses processos dessa forma acaba sendo um tiro no pé para quem quer criar, pois ele pode procurar nos lugares errados algo que simplesmente não está lá.

Sejamos honestos: nós não criamos. Nós copiamos, roubamos ideias, adaptamos conceitos que ouvimos dos outros. O cara “criativo” é aquele que consegue remixar tudo que absorveu e produzir uma mistura diferente, uma cópia mais elaborada. Nada é criado do zero. E não há nada de errado com isso. É assim que o processo criativo funciona, e quanto mais cedo entendermos isso, melhor podemos produzir.

Para escrever um texto, uso palavras que não criei, apenas aprendi. Escrevo na forma em que fui ensinado — sou grato a meus professores de português e redação, lá da época do colégio — e na forma que absorvi de tudo que já li até hoje. Para fazer uma foto, uso uma câmera, que não fui eu quem criei, fotografo um mundo, que também não fui eu que criei, utilizo regras e conceitos de outras pessoas sobre o que é bonito, o que é válido, o que é significativo. Uso receitas, regras e materiais externos para escrever e fotografar. Mesmo assim, gostamos de dizer que “criei uma história”, “criei uma foto”. O engraçado é que posso usar da mesma forma uma receita, feijão, cebola, alho e carne de porco, mas não digo que “criei” uma feijoada.

Não há nada exclusivamente meu naquilo que faço. O que eu chamo de “eu” nada mais é do que a soma e a mescla de todas essas influências que recebi. Quando recebo um elogio por um texto ou uma foto, meu ego se alegra e quer tomar para si o mérito, mas sei que quem deveria ser elogiado são meus professores, amigos, familiares e desconhecidos de quem roubei, mesclei e reproduzi a forma de fotografar ou de escrever. E, por sua vez, o mérito também não é deles, mas sim de quem os influenciou.

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Ian

Isso que dizer que, quando se quer fomentar o próprio processo criativo, quando se busca inspiração, não adianta muito ficar consigo mesmo, ruminando ideias até que saia algo que valha a pena. Faz muito mais sentido procurar algo que se gosta e tentar copiar. Ver exposições, livros, olhar para o trabalho de fotógrafos admirados, e tentar fazer igual. Se você copiar bem e bastante, de fontes diferentes, um dia terá uma produção significativa e que será vista como original, pois você produzirá um remix único de tudo aquilo que copiou. E aí, se alguém quiser copiar suas fotos, tome isso como um reconhecimento, e não como uma ofensa. Primeiro, porque 99% das fotos que são feitas são simplesmente ignoradas. Segundo, porque a sua foto não é de fato sua, você já a roubou antes de outros.

A nossa tendência é não gostar muito da ideia de que somos fruto das nossas influências. Gostamos de pensar que somos únicos, especiais, que a nossa criatividade é algo que possuímos, como se pudéssemos criar a criatividade por conta própria. Nosso ego não gosta de dividir os louros com os outros. Mas isso é uma mera ilusão. Tudo que “criamos”, criamos a partir do que já existe, nos apoiando no que foi feito antes. Cada um de nós coloca um pequeno tijolo numa parede gigantesca que é essa criação cultural humana. Nosso tijolo se apoia nos anteriores e servirá de apoio para os posteriores.

Cada texto que escrevemos, cada foto que fazemos, tem embutidos em si 10 mil anos de civilização.

Só a nossa soberba egocêntrica é capaz de nos fazer passar por cima disso para dizer que aquilo que crio é exclusivamente “meu”. É interessante tentar abandonar as nossas restrições egóicas e nos permitirmos copiar, nos apoiar conscientemente nas nossas influências e a enxergar a nossa própria produção como um trabalho coletivo, não algo que é exclusivamente nosso.

P.S.: A ideia desse post foi roubada motivada pelo livro “Steal Like an Artist”, de Austin Kleon, que me foi indicado pela Mariana Rebello.

Fotografia contemplativa

A fotografia é uma atividade que envolve uma série de processos mentais. Pensamos no que fotografar, em que ângulo, com que luz, qual lente, que abertura, velocidade etc. Com isso, ao fotografar, temos em nossas mentes uma série de filtros, regras, expectativas e concepções. Tudo isso ocorre porque fotografamos querendo um certo resultado. A partir dessa expectativa, elaboramos todo um quadro mental de como obter esse resultado. Geralmente, acreditamos que temos que buscar algo fora do comum, que seja impressionante, impactante, chocante.

Embora seja necessária quando se fotografa profissionalmente, quando a fotografia é apenas um hobby toda essa atividade mental pode nos fazer facilmente perder o contato com o momento. Nos voltamos demais para dentro das nossas mentes, o que nos impede de viver de fato. Há uma proposta, entretando, que vai justamente na contramão desse estado de espírito ao fotografar: a fotografia contemplativa. Continue lendo “Fotografia contemplativa”

Fotografia e empatia

Somos muito apegados ao conceito de eu, de self. Temos como hábito cultivar a nossa própria imagem. Talvez porque isso seja uma das consequências do nosso instinto de sobrevivência. Ou porque a sociedade estimule o individualismo. Independentemente das origens dessa percepção, o fato é que nos vemos como únicos, distintos e separados de tudo aquilo que nos rodeia. Nos vemos como especiais mesmo sabendo que existem sete bilhões de outros seres humanos no planeta.

Isso faz com que seja muito difícil conseguirmos enxergar o mundo através dos olhos do outro. Se estamos parados num engarrafamento, temos a concepção de que queremos chegar a algum lugar e todos os outros carros estão nos atrapalhando. Entretanto, todos ali estão passando exatamente pela mesma coisa, querendo simplesmente chegar onde se quer chegar. Dizemos que estamos presos no trânsito, mas na verdade nós somos o trânsito. Nós somos a fila, o ônibus cheio, a praia lotada. Estamos todos no mesmo barco, mesmo que tentemos nos diferenciar com um carro mais caro, uma roupa da moda ou ideias de vanguarda. Fazemos o que for necessário para combater a concepção de que somos apenas mais um na multidão e acabamos reforçando o abismo que existe entre eu e o outro.

Slimmer Jimmer
Slimmer Jimmer

Mas nos temos à nossa disposição um instrumento que pode ser muito útil para favorecer a empatia – essa capacidade de se colocar no lugar do outro. Esse instrumento é a fotografia. Mas ela só será útil para esse fim se conseguirmos abandonar, por um momento, as reações automáticas que nos fazem julgar tudo a partir das nossas preconcepções e de fato olhar, sem preconceitos e opiniões. Quando vemos uma fotografia sem essa disposição empática, fazemos apenas julgamentos autocentrados: eu não fotografaria assim, eu usaria outra câmera, eu não viajaria para esse lugar, eu gostaria de ter feito essa foto. E com isso perdemos a fantástica oportunidade que temos de enxergar uma fração da vida do outro, a partir do ponto de vista do outro.

Ao mesmo tempo, temos a expectativa de que os outros vejam as nossas fotos da maneira que não conseguimos enxergar as deles. Postamos e publicamos fotos o tempo todo nas redes sociais, blogs, fóruns… Esperando um pouco de atenção, “curtidas” e reconhecimento efêmero. E, já que não conseguimos dar a atenção que buscamos, no máximo entramos num esquema de “eu curto a sua e você curte a minha”. O que no fim resulta em milhões de monólogos tristes e vazios – não porque não tenham valor em si, mas porque a comunicação simplesmente não se estabelece. Todo mundo grita e ninguém ouve. São assim as redes sociais.

E se, ao invés de tentarmos gritar cada vez mais alto, deixássemos de gritar? E se apenas parássemos para ouvir? Se esquecêssemos a pretensa maior importância daquilo que temos para dizer e experimentássemos a incrível possibilidade de ver com os olhos de milhões de outros, que está na ponta dos nossos dedos? E guardássemos para nós nossas fotos, ou no máximo as mostrássemos apenas para quem realmente importa, em vez de buscar freneticamente as aprovações que afagam o nosso ego por apenas alguns segundos? Pode parecer assustador abrir mão da pouca atenção pela qual já temos que nos esforçar tanto. Mais assustador ainda é deixar de cultivar o eu, reafirmar a nossa importância, o tempo todo. Mas aí, por outro lado, talvez possamos simplesmente ser livres.

O impacto da fotografia no meio ambiente

“O futuro não é mais como era antigamente”, diz a música. De fato. Se nos anos 60, com os Jetsons e a corrida espacial o futuro parecia ser um lugar em que a humanidade atingiria seu ápice, conquistando o espaço, subjugando as dificuldades e obtendo grande conforto num ambiente limpo e minimalista, hoje as previsões são diferentes. As mudanças climáticas, a destruição de florestas e formas de vida projetam um futuro sombrio. Andando pelas ruas, vemos cada vez mais pessoas sozinhas trafegando com seus carros excessivamente grandes – e consequentemente devoradores de combustível – uma ilustração do individualismo estímulado pelo capitalismo e que poderá dificultar muito a vida das próximas gerações.

Será que paramos para nos preocupar o quanto os nossos hobbies são agressivos com o meio ambiente? O quanto a fotografia pode ter um impacto negativo para o planeta? Essa é uma pergunta que não pode ser varrida para debaixo do tapete, já que há poucas atividades tão universais quanto fotografar. Vamos olhar para isso com uma perspectiva ambiental.

Nesse aspecto, a fotografia analógica é um desastre. Os materiais usados para a fabriação e revelação dos filmes são altamente tóxicos. E você não precisa usar filme para ter problemas com o impacto da fotografia química. Se você manda suas fotos digitais para revelação num laboratório, estará utilizando os mesmos químicos cancerígenos na revelação do papel fotográfico. Uma atitude responsável do laboratório seria descartar essas substâncias utilizadas na revelação de uma forma adequada. Você já pensou em perguntar ao seu laboratório como eles fazem isso?

Philippe Leroyer
Philippe Leroyer

Se você revela filmes em casa, deveria saber que os químicos utilizados não devem ser descartados no esgoto, simplesmente. Entre outros problemas, eles contém uma grande quantidade de prata, o que contamina rios e cursos de água. Eu não sei como descartar esses materiais sem causar impacto na natureza. Entrar em contato com a secretaria de meio ambiente da sua cidade para saber como fazer isso é uma alternativa. Mas talvez o melhor seja simplesmente parar de revelar filmes em casa. Ou parar de fotografar com filme, simplesmente.

Agora, se você apenas fotografa com o sistema digital e não tem o costume de revelar fotos, também não está livre de causar um impacto negativo no planeta. Especialmente porque a fabriação das câmeras e eletrônicos em geral utiliza uma série de produtos químicos nocivos, como chumbo, além da grande quantidade de energia. O plástico e o metal dos eletrônicos não deve ser descartado no lixo comum e sim encaminhados para centros de reciclagem de eletrônicos. Outro problema das câmeras são as baterias, que contém materiais tóxicos como cádmio. É muito importante que as baterias de câmeras e celulares, assim como pilhas alcalinas, não sejam jogadas no lixo comum.

Embora a fotografia digital seja muito mais ecológica do que a fotografia analógica, isso depende muito dos nossos hábitos de consumo, pois o dano que ela provoca ao meio ambiente está na sua produção e descarte. A frequência e quantidade com que consumimos ou trocamos nossos eletrônicos determina o quanto contribuímos para esses ciclos. Os fabricantes tentam estimular ao máximo que troquemos nossos equipamentos, através de obsolescência programada ou percebida, dificultando consertos, deixando de oferecer peças para reposição. Cabe a nós ter crítica em relação ao consumo, não apenas pela preocupação com o ambiente, mas também com nós mesmos: não é nos bens materiais que vamos encontrar a felicidade que procuramos, por mais que as propagandas tentem nos convencer do contrário.

Apague suas fotos

Quando pensamos num artista criando, o que imaginamos? Geralmente, um espaço de trabalho cheio de ferramentas, material de referência, obras completas, incompletas, rascunhos… Sim, muitos rascunhos, estudos, esboços. Mas e na fotografia? Qual o lugar dos rascunhos e esboços?

O problema da fotografia é que não se pode fazer uma foto aos poucos. Antes de se apertar o botão, só se tem uma ideia, e depois, já a foto pronta. Não dá pra fotografar metade da foto e terminar depois. É impossível ir ajustando a cor do céu enquanto a máquina faz a captura. O fato é que na fotografia, um esboço inevitavelmente será uma foto pronta. Qual a diferença, então, entre o esboço e a obra finalizada? A diferença é que o esboço é a foto que você jogará fora.

Muitos criticam a fotografia digital por dizer que na “época do filme” se pensava mais, não se tiravam tantas fotos como se faz hoje. Mas isso acontecia porque cada foto gastava filme, requeria revelação, ampliação e tempo. Ou seja, dava trabalho. Hoje o resultado é instantâneo. É óbvio que, quando as circunstâncias mudam tanto, a maneira de fotografar também muda. Em relação aos esboços, o que se pode dizer é que antigamente o rascunho era mental: o fotógrafo passava mais tempo analisando cena, luz, ângulo, para só então tirar a foto. Além do custo, havia o risco de cometer um erro que só seria detectado com a foto revelada, quando poderia ser tarde demais. Hoje esse cuidado não é mais necessário. Pode-se fotografar, ver o resultado e fazer outra foto com as devidas alterações para obter o resultado que se tem em mente. Um método não é melhor do que o outro, eles são apenas decorrentes das circunstâncias distintas em torno do ato fotográfico.

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fluffisch

Ou seja, a fotografia digital permite que façamos rascunhos o tempo todo. O problema é o que já comentamos: o “rascunho” já é uma fotografia pronta e podemos não conseguri ver o rascunho como apenas um rascunho. Até porque quem decide o que é rascunho ou não é o próprio fotógrafo, ao ter em mente o que deseja e descartar aquilo que não é o resultado final. O fotógrafo que não consegue descartar suas fotos-rascunho sem piedade corre o risco de ser como aquela tia que aparece no almoço de domingo com um DVD com as 4000 fotos da sua última viagem, para desespero do resto da família.

A chave para fotografar bem é não ter dó de apagar suas fotos. Livros que trazem folhas de contato de fotógrafos consagrados mostram o nível de seleção que eles tinham com o próprio trabalho. Se no tempo do filme eram necessárias 100 fotos para conseguir uma realmente boa, hoje são necessárias 1000. O que significa que você deve enxergar as outras 999 como esboços que vão para a lata do lixo, do mesmo jeito que o desenhista descarta a maior parte do material que produz enquanto cria. Num mundo em que todo mundo fotografa tudo o tempo todo, aquilo que você não mostra pode contar muito mais do que aquilo que você mostra.

Se você olhar para uma foto e tiver dúvidas sobre se ela é boa, é porque não é. Se você achar que uma foto é boa, mesmo assim talvez ela não seja. Quando uma foto é boa você olha e pensa “essa é uma baita foto!”. E, a menos que essa seja sua impressão, não vale a pena manter – menos ainda mostrar – as suas fotos. Enxergue as fotos descartadas como um passo na jornada para as boas fotos, e não o destino. O destino é aquela foto arrebatadora que nos impressiona, nos comove. E, depois de cada uma dessas, começamos novamente a percorrer o caminho, que pode ser mais longo ou mais curto até mais uma foto significativa. As fotos intermediárias, que fazem parte dessa jornada, são muito importantes para você, mas não precisam ser guardadas: aquilo que elas ensinam fica marcado no seu cérebro, não no seu disco rígido. Apague-as sem medo e valorize apenas aquilo que de fato mostra a qualidade da sua fotografia; do contrário, sua produção corre o risco de se tornar banal, repetitiva e desinteressante.

Comprar: a solução para todos os problemas

Costumo frequentar fóruns e listas de discussão sobre fotografia. É comum que as pessoas acessem esses espaços para tirar dúvidas sobre qual câmera comprar. Mas é surpreendente que mesmo aqueles que fazem outros tipos de pergunta possam ter como resposta uma lista de compras. Duas situações recentes: uma usuária pergunta: “o que posso fazer para tirar melhores fotos num ambiente com pouca luz?”. A resposta, simples: “compre outra câmera”. Outra pessoa quer entender porque a abertura de sua lente zoom não é sempre a mesma. De alguma forma, essa dúvida singela leva alguém a responder: “compre outra lente”. Como assim?

Comprar se tornou a solução para tudo. Trocamos de câmera sem sequer aprender a extrair todo o potencial que cada modelo descartado nos oferece. Há fotógrafos da agência Magnum que usam compactas, mas a maior parte dos amadores tem conjuntos com câmeras que vão muito além de suas necessidades. Você pode argumentar: “a pessoa pode fazer o que quiser com o dinheiro dela, isso não tem nada a ver comigo”. Será? O fato é que esse padrão de consumo desenfreado afeta a vida de muitas pessoas, inclusive a minha e a sua. O uso de recursos naturais para produzir o que consumimos vai muito além do que o planeta dá conta, além de levar a impactos sociais que talvez você nem imagine. O seu smartphone tem relação direta com o massacre de pessoas no Congo, por exemplo.

No Brasil, reclamamos muito dos custos de câmeras, lentes e outros aparelhos eletrônicos. Atacamos o governo pelos impostos que julgamos abusivos e tomamos o crescimento econômico como algo inquestionavelmente positivo. No entanto, as coisas já são baratas demais, pois os custos sociais e ambientais não são cobrados de quem compra, e sim das populações que sofrem com a extração de materiais e o desmatamento. Na verdade, as coisas deveriam custar muito mais. Desta forma, pensaríamos mais antes de consumir, usaríamos menos recursos e descartaríamos muito menos lixo. E o governo talvez devesse aumentar os impostos para frear o consumo, e não diminui-los. É claro que isso não acontecerá porque o nosso sistema não tem alternativa a não ser consumir sempre mais, até que devore a si mesmo.

Meliha Tunckanat

Mesmo com os preços dos nossos equipamentos e carros muito mais altos dos que, por exemplo, os dos americanos (que inveja deles!), não abandonamos a nossa sede de consumo. Felizmente podemos tomar dívidas e usar nossos cartões de crédito para comprar coisas de que não precisamos e que acabam com os recursos que serão necessários para a sobrevivência das próximas gerações. E, para pagar nossas dívidas, podemos sempre trabalhar mais. Abrir mão de férias, fins de semana, fazer hora extra. Para sustentar nossa fixação por coisas, vendemos a única coisa que de fato temos: o nosso tempo, que poderia ser gasto com nossas famílias e entes queridos, em atividades que não envolvam gastos.

Mas isso não é interessante para as corporações que, através da publicidade, convencem-nos de que vale a pena deixar de viver para ter. Com o esforço dos anúncios e do incentivo a um estilo de vida voraz parece absurda a ideia de optar por trabalhar menos, ganhar menos, crescer menos (enquanto país) e ter menos. Afinal de contas, ter se tornou quase uma medida universal na nossa sociedade. O seu sucesso é medido pelo quanto você tem. O seu amor é medido pelo valor do presente que você dá. Se no Natal você der um presente barato, ou pior, apenas um cartão ou um abraço para alguém com quem se relaciona, essa pessoa pode achar que você não gosta ou não se importa com ela. Mas dê algo caro e ela não terá dúvidas do seu sentimento.

De alguma forma, comprar se tornou uma grande resposta. A fotografia é um prato cheio para os consumistas – para alegria dos fabricantes de câmeras – pois há sempre novas necessidades a serem criadas e novos equipamentos a serem vendidos. Afinal de contas, tem sempre aquela foto perfeita que buscamos e nunca conseguimos. Mas espere! Com o novo modelo que faz 50 fotos por minuto, fotografa com luz negativa e detecta o sorriso de uma ave a um quilômetro de distância, você conseguirá obter a sua foto perfeita. Apesar do nosso entusiasmo inicial, lá no fundo percebemos que já ouvimos essa promessa antes, muitas vezes. E sabemos que ela não foi cumprida. Será que algum dia vamos acordar?

P.S.1: Antes que você pergunte, tenho a mesma Pentax K100D, de seis megapixels, desde 2007. E ainda assim, de tempos e tempos, me questiono se não foi uma compra desnecessária.

P.S.2: A ótima foto que ilustra esse post foi feita por Meliha Tunckanat com uma Olympus Trip 35 e filme Kodak Gold.

Menos eficiência, por favor

Às vezes fotografo com filme, às vezes com digital. Fotografar com filme envolve o seguinte processo: comprar filmes preto e branco pelo e-bay; esperar cerca de um mês até que eles cheguem; colocar o filme na máquina; fotografar por alguns dias até que o filme acabe; levar o filme para revelar; esperar um dia até que a revelação fique pronta; escanear os negativos; tratar os arquivos; enviar as fotos mais interessantes para impressão; esperar até que a impressão fique pronta. Dá pra perceber que esse é um processo bastante longo. Mais do que isso, é um processo quase nada eficiente, especialmente quando comparado à fotografia digital, em que eu posso ter a foto tirada, tratada e impressa em questão de horas e minutos, ao contrário das semanas ou meses que levo com o filme. Mas por que minha fotografia deveria ser eficiente?

No mundo atual, a eficiência é um dogma. Empresas, profissionais, todo mundo está tentando ser o mais eficiente possível. Fazer mais com menos tempo, menos recursos. Essa é a medida de valor de um serviço, ou até mesmo de uma pessoa. A nossa eficiência é medida o tempo todo, desde as notas na escola, a classificação do vestibular, quanto trabalho conseguimos entregar em um dia ou uma semana… Entretanto, a eficiência é apenas um conceito, uma forma de medição, de avaliação, entre muitas outras.

Alex Sandifer

Vivemos sob uma série de conceitos que são tidos como verdades e passamos a aplicá-los a todas as áreas da nossa vida. Ligamos a TV e vemos propagandas de maneiras mais eficientes de fritar um bife, ou até mesmo produtos para que consigamos relaxar de forma mais eficiente! Passamos a nos preocupar com isso sem um mínimo de questionamento e sem perceber quão nocivos certos conceitos são. Já temos que ser muito eficientes no nosso trabalho, por que deveríamos adotar a mesma postura nos momentos de lazer, sendo que é justamente essa corrida por eficiência que nos faz precisar do lazer?

A menos que você seja um fotógrafo profissional cujos clientes demandam eficiência, sua fotografia não ter que ser eficiente. Tentar torná-la mais eficiente provavelmente acabará com todo ou boa parte do prazer que é fotografar. Imagine-se numa viagem de férias. Agora, imagine-se aplicando o conceito de eficiência na sua viagem: você traçaria um plano para fazer o máximo de coisas, ver o máximo de lugares, no menor tempo possível. Se você quisesse ser realmente eficiência, apenas passaria por cada local, sem se deter por um minuto. Não parece muito relaxante ou prazeroso, não? Por que sua fotografia deveria ser assim?

Abrir mão da eficiência significa abrir mão de outras coisas. Talvez você não fotografe tudo que vê. Talvez perca algumas boas fotos. Talvez você apenas contemple uma cena em vez de fotografá-la. Talvez você opte por sair mais sem sua câmera. Talvez você não faça aquela foto de por do sol magnífico que renderia dezenas de curtidas no Facebook. Talvez você não tenha suas fotos online alguns minutos após tirá-las. Talvez você não precise ter mais o equipamento mais moderno. É uma escolha.

Então, para lembrar:

  • Eficiência é apenas um conceito
  • Eficiência é um conceito que só faz sentido dentro de certas circunstâncias
  • Sua fotografia não é uma dessas circunstâncias

Quem tem medo do Instagram?

Se encararmos a fotografia dentro do seu percurso histórico, veremos que ela se iniciou de forma extremamente elitista e foi se tornando cada vez mais popular. Em sua gênese, era uma atividade que dependia de um conhecimento técnico bastante complexo e restrito, fazendo com que pudesse ser relizada apenas por profissionais que dominassem essas informações. A primeira revolução que tornou a atividade fotográfica mais popular foi a Kodak Brownie, câmera lançada no início do século passado e que permitia que pessoas sem conhecimentos técnicos pudessem fotografar e ter suas fotos reveladas. Depois disso, outros avanços tecnológicos incrementaram o acesso de mais e mais pessoas à arte fotográfica: o filme 35mm, o filme colorido, as câmeras automáticas, a revelação em uma hora, as câmeras digitais e, mais recentemente, a fotografia com telefones celulares e seus aplicativos, como o Instagram.

Há um aspecto comum a todos esses momentos: aqueles que dominavam o conhecimento necessário para produzir o resultado têm uma reação de aversão à nova tecnologia, ressentindo-se pelo fato desse conhecimento agora não ser mais essencial para fotografar bem. A frase do momento entre fotógrafos amargurados é: “hoje em dia qualquer um com um celular ou uma câmera digital se acha fotógrafo”. Podemos imaginar, ao longo da história, as reclamações emburradas daqueles que tiveram a sensação de superioridade derrubada pela tecnologia:

1900: “agora qualquer um com uma Brownie já se acha fotógrafo, nem precisa saber como revelar um filme”
1930: “agora qualquer um com essas camerazinhas de 35mm se acha fotógrafo, nem precisa carregar uma câmera de fole”
1950: “agora qualquer mané pode fazer fotos coloridas”
1970: “agora qualquer dona de casa pode fotografar com essas máquinas eletrônicas, nem precisa saber como medir a exposição”
1980: “agora o cara leva o negativo no laboratório e sai com as fotos em uma hora! Cadê a dificuldade?”
2000: “as câmeras digitais acabaram com o encanto da fotografia, na hora você já vê como ficou e se estiver ruim, apaga”
2010: “agora qualquer adolescente com Photoshop sabe transformar fotos ruins em boas”
2012: “qualquer um com Instagram faz efeitos sem nem saber usar o Photoshop”


I, Timmy

Dá pra perceber o ranço que existe quando algo se populariza, se torna mais fácil… O pessoal das “antigas” fala do romantismo, de que não é mais necessário estudar as bases da fotografia para se fazer boas fotos. Mas, no fundo, é simples birra porque algo que antes os fazia se sentir especial, um conhecimento de difícil acesso, se torna disponível a todos. E aqueles cujo ego está baseado na posse de algo — como o conhecimento — detestam perder aquilo pelo qual se sentem melhores do que os outros.

Há algo de diferente nesse novo milênio que também se encaixa nessa questão: hoje não podemos mais deter a informação como fazíamos antes. O conhecimento se tornou público, democrático, acessível e disponível. Tentar barrar o acesso a ele é uma luta perdida. Não é mais possível ganhar status, dinheiro ou reconhecimento simplesmente por possuir um conhecimento ou uma informação e vendendo o acesso a ele, pois ele não é mais restrito. Até mesmo na música isso finalmente ficou claro, e hoje os artistas ganham dinheiro fazendo shows e não mais vendendo CDs.

É fantástico que hoje qualquer pessoa possa fazer uma foto com um aspecto visual interessante apenas usando seu celular. Aqueles que quiserem se destacar não poderão mais fazer isso simplesmente por estar de posse de um conhecimento que os outros não tem — assim era fácil. Agora, terão que se sobressair fazendo algo interessante com o conhecimento que todos têm. E nesse mundo em que todos têm as ferramentas à disposição, só quem de fato tem mérito se destaca. Mas esses fotógrafos capazes e talentosos nunca tiveram medo do Instagram.

A eloquência das séries

Nós, fotógrafos amadores ou profissionais, temos uma relação quase de fetiche com a foto perfeita. Usualmente, nossos esforços são voltados para conseguir essa imagem idealizada, seja qual for a nossa forma de fotografar. Pensamos na melhor luz, no melhor equipamento, no momento crucial, no tratamento adequado. Não é à toa: as boas fotografias têm um poder meio mágico de, em apenas um quadro, condensar uma mensagem, uma impressão ou uma cena marcante.

Além disso, temos os nossos modelos: associamos os nomes de grandes fotógrafos a uma ou outra imagem mais conhecida, como se elas pudessem representar toda a obra do artista. É possível que isso tenha se originado na pintura, em que cada quadro é visto isoladamente, ainda que o pintor tenha um mesmo tema nos seus trabalhos. Com isso, tendemos a nos lançar, muitas vezes empenhando um grande esforço, na busca dessa imagem idealizada, aquela foto que nos trará orgulho e irá para a parede, num lugar de destaque.

No entanto, convenhamos, a fotografia é uma prática imensamente mais fácil e rápida do que a pintura. Dificilmente passaremos dias, semanas ou até meses trabalhando numa única foto. Ao contrário, podemos obter uma fotografia em uma ínfima fração de segundo. Podemos, ainda, tirar várias fotos em poucos segundos. Será que essa característica não indica que um caminho mais promissor seja justamente o de criar bons conjuntos de fotografias?

Uma série é um grupo de fotografias que se comunicam e se complementam, seja por serem do mesmo tema, assunto ou por apresentarem uma execução técnica semelhante. Com isso, o processo de criação é totalmente diferente de quando se procura a foto única. O fotógrafo se perguntará: qual será o tema?, quantas fotos terá a série?, como elas dialogarão entre si?, como elas serão apresentadas? Na série, o valor de cada uma das fotos está na sua contribuição para o conjunto, como a peça de um quebra-cabeça. Isso faz com que busquemos menos uma foto perfeita e mais uma parte perfeita tendo em vista o todo.

Séries, obviamente, podem comunicar mais do que apenas uma foto. Mas o segredo para sua força está na coesão. É importante que as imagens tenham relação estreita entre si, seja pelo conteúdo como pela forma. O observador, em vez de se concentrar em apenas uma foto, circulará pelas partes da série, buscando apreender um sentido geral. Esse sentido vem justamente daquilo que une as fotos.

A série seguinte, cujo autor se apresenta com o apelido Sigma.DP2.Kiss.X3, tem como eixo a descrição de um ambiente. Aspectos técnicos, como a luz, as cores e o foco curto ajudam na coesão.

Já o conjunto seguinte, de Mr. Wood, se apoia na técnica não ortodoxa que permeia as fotos. A temática rural, ou seja, o conteúdo, é o elemento secundário por trás da coesão da série.

Não se leve (nem a sua fotografia) tão a sério

Vivemos numa momento histórico muito marcado pelo individualismo. O desenvolvimento e a vida urbana criam condições para que nos isolemos cada vez mais, e com isso percamos a noção do nosso real lugar no mundo. Em “A Solidão dos Moribundos”, Norbert Elias relata como nos afastamos cada vez mais da ideia de morte e desenvolvamos uma crença de imortalidade. “Quem morre são os outros, não eu.” Não falamos sobre morte com crianças, nos sentimos desconfortáveis quando confrontados com a nossa efemeridade, desenvolvemos rituais antissépticos para os momentos em que somos obrigados a enterrar os entes próximos e por aí vai.  Por outro lado, em “Pavilhão dos Cancerosos”, Aleksandr Solzhenitsyn mostra como a proximidade da morte (negada até o último momento) nos une, independentemente do que fizemos na vida ou da nossa posição social.

Acredito que um dos resultados dessa falta de contato com a própria finitude é que nos levamos a sério demais. Atribuímos a nós mesmos, às nossas opiniões e às nossas atividades um grau irreal de importância. Passamos os dias absortos na resolução dos nossos grandes problemas: o pagamento das contas, o trabalho chato, o colega incômodo, o final da novela, o desempenho do time de futebol. Tudo parece incrivelmente importante. Nos prendemos aos detalhes do cotidiano por conta da falta de estrutura para nos darmos conta do que é a vida numa perspectiva mais ampla.


Thomas Mies

Como isso se reflete na fotografia? Primeiro, na criação da nossa identidade fotográfica. Estabelecemos uma série de regras para nós mesmos, criamos uma referência pessoal e navegamos dentro desses limites. “Faço esse tipo de foto”, “esse é o meu equipamento”, “gosto desses fotógrafos”, “uso essa marca de câmera”, “não fotografo nesse estilo” etc. Essa referência nos ajuda a nos sentirmos únicos, especiais, diferenciados. É possível que passemos muito tempo fotografando em função de reafirmar essa identidade, mesmo que isso signifique deixar de fazer coisas que gostaríamos. “Está um fim de tarde lindo hoje, mas não vou fotografá-lo porque pôr-do-sol é muito clichê”, é o que nos dizemos, com o dedo formigando para apertar o botão da câmera.

Uma outra forma de buscar destaque frente aos sete bilhões de outros seres humanos no mundo (como se isso fosse possível) é através do poder econômico. Entre os fotógrafos, isso significa a troca constante de equipamentos, o uso e ostentação de câmeras caras e a busca de desculpas, geralmente técnicas, para a sua aquisição. Alguns estudiosos da psicologia acreditam que a ostentação de bens materiais tem a função de compensar a falta de confiança e potência em áreas como a sexualidade. Pode ser verdade, mas acredito também que serve para tentar dar algum sentido à vida, já que esse movimento geralmente ocorre em momentos da vida em que a pessoa se depara com a perspectiva da morte.

As ideias que formulamos para justificar nossas atitudes também são algo que levamos muito a sério. Nas nossas rodas de conhecidos, nos fóruns e redes sociais da internet, o tempo todo procuramos reafirmá-las ou até mesmo as impor, já que essas palavras sustentam nosso modo de viver. Entretanto, são apenas palavras e conceitos que não se aproximam da experiência de viver — esta, na verdade, está além do alcance da descrição verbal.


so11e

Vamos todos morrer, cedo ou tarde. Viraremos pó. Nossas fotos virarão pó, ainda que possivelmente durem um pouco mais do que quem as tirou. Nossas ideias, que prezamos tanto, desaparecerão no momento em que o nosso cérebro desligar. Tanto as fotos quanto os conceitos que criamos com tanto esmero para impressionar os outros, caso persistam além da nossa morte, serão inúteis, pois os outros com quem nos preocupamos também não estarão mais aqui. Daqui a cem anos, 99% da população será de pessoas que ainda não nasceram. Nem eu nem você existiremos mais. E o mundo continuará girando, as coisas continuarão acontecendo. E o que você terá feito com essa fração de tempo até sua morte, que é a única coisa que você de fato tem?

Um ponto importante: não necessariamente a lembrança da própria finitude precisa levar a uma atitude niilista. Parece lógico pensar que se teremos um fim, que se somos apenas um indivíduo entre bilhões de outros existindo temporariamente num planetinha num canto remoto do universo, pouco importa do que fazemos da vida. Mas talvez seja justamente o contrário: se o que somos e temos é tão pouco, é preciso que o tempo seja muito bem aproveitado, que nossas atitudes sejam significativas e compassivas, tanto para si mesmo quanto para com os outros. Afinal de contas, estamos todos no mesmo barco. Na fotografia: sabendo que você fará, na vida, apenas uma fração ínfima das fotos que podem ser feitas, a atitude lógica, na verdade, é que cada uma das oportunidades para fotografar seja muito bem aproveitada.