Vida online e vida offline

Em seu “Sobre Fotografia”, Susan Sontag aponta algumas funções contundentes da fotografia. Uma delas é o uso da câmera como uma espécie de escudo ou arma, especialmente nas situações em que a realidade é exótica ou incômoda. Como turistas, ao entrar em um novo ambiente, colocamos a câmera na frente do rosto e vemos o mundo através dela. Como a câmera tende a embelezar tudo, a visão do diferente torna-se mais fácil de ser digerida. Nossa visão se tornou fotográfica e a nossa referência de mundo se transformou naquilo que vemos nas fotos, mas do que com os próprios olhos.

Se considerarmos a expansão das redes sociais e a facilidade de compartilhar fotografias digitais, veremos que muitos aspectos da nossa vida necessitam de validação através desses instrumentos. Anunciamos no Twitter o que estamos fazendo, pensando, onde estamos e pra onde iremos. Compartilhamos nossas fotos de viagem e dos momentos significativos quase imediatamente através do Facebook, Flickr, fóruns ou, para os menos “atualizados” tecnologicamente, por e-mail. É quase como se não existíssemos se não estivermos na web; e se algo não foi anunciado nas redes sociais, não aconteceu.

Por que será que não compartilhamos os maus momentos da mesma forma? As redes sociais estão repletas de fotos de pessoas sorridentes, extasiadas, em alegria constante. Não vejo fotos de ninguém entristecido, chorando, com raiva. Parece que de repente os problemas do mundo acabaram. Finalmente chegou o dia em que a humanidade é totalmente feliz. Podemos parar o que estamos fazendo para viver nessa maravilhosa utopia. As mágoas e a feiura continuam existindo, mas apenas numa realidade paralela: no mundo offline.


Zephyrance Lou

Parece-me, na verdade, que a massificação das comunicações e da vida em geral faz com que busquemos constantemente afirmar que somos diferentes e especiais. Quanto mais temos contato com um contingente maior e maior de pessoas, mesmo que virtualmente, mais necessitamos reforçar a nossa individualidade. E aí, como se estivéssemos numa grande competição, precisamos dizer: “veja como seu feliz, como sou bonito/a, como sou bem sucedido/a”. Através de fotografias, obviamente. Não é à toa que as pessoas querem melhores câmeras e aprender a fotografar melhor. A fotografia precisa ser a melhor possível para sustentar esse exercício de afirmação e busca de identidade. Queremos fazer fotografias que pareçam com aquelas que vemos nas propagandas – em parte porque queremos mostrar que temos uma vida que parece com a que se tem nas propagandas.

O que acontece, então, é que se passa a viver em função de mostrar. A fotografia, então, se interpõe nos momentos, impedindo-nos de experimentá-los plenamente. Em vez de mergulharmos nas viagens, nas baladas, nos passeios e até mesmo num momento tranquilo em casa, fotografamos tudo o tempo todo. Perdemo-nos na necessidade de validar tudo por meio da câmera e, pior, perdemos a chance de simplesmente viver de verdade. Não acho que seja tão comum as pessoas substituírem a vida real pela virtual, como se fala muito – acho que isso só acontece em casos extremos – mas o que acho plausível é que a vida online passe a controlar muitos aspectos da vida offline.

Você já considerou fazer uma viagem e não tirar nenhuma fotografia? Já pensou em não contar pra ninguém depois de ter ido a uma festa fenomenal? Em ter tirado uma fotografia fantástica e apenas imprimir para você mesmo, em vez de compartilhar no Flickr? Talvez eu esteja exagerando um pouco, mas se você acha que essas coisas são impensáveis, talvez seja um sinal para considerar se você faz o que faz pelas coisas em si ou pela função que essas atividades têm para outras pessoas. Em outras palavras: para qual vida você vive? A online ou a offline?

10 comentários em “Vida online e vida offline”

  1. Rodrigo, a reflexão sem dúvida é oportuna, mas tenho dúvidas sobre o quanto há de romantismo em carregar no “viver a vida de verdade”.

    Que vida é a vida de verdade? OFF é de verdade e ON, falsa? Ou menos verdadeira, menos real, menos legítima? E se é verdade que “a vida online controla a vida offline”, que mal há nisso necessariamente? Afinal, o ser humano não é um animal social, que vive para/por/pelo outro? Viver não é se mostrar ao outro, ou seja, interagir com o outro?

    E na vida OFF, serão as tristezas e as falhas mais expostas e mais acessíveis do que na vida ON?

  2. “em parte porque queremos mostrar que temos uma vida que parece com a que se tem nas propagandas.”

    Não consigo ver essa relação. Aceitar e desejar o que é considerado como aceitável – uma foto “bonita” – no universo da publicidade é uma coisa. Mas não creio ser possível supor que as pessoas desejam fotografar como se faz na publicidade, porque elas gostariam de viver dentro de um comercial de banco, cerveja ou dentro de algum editorial de estilo de vida….

    Um abração

  3. Como dizem (sobre o bom cinema): de drama, basta o de casa. Recortamos nossas realidades —ou seja, fotografamos— esperando que nossa rede social faça o mesmo, construindo esse inconsciente coletivo do êxitismo online, não paralelo, mas serpenteante. Mas a verdade é que não dá mais pra desligar de um mundo para “voltar” ao outro (http://www.onandoff.org/), o dia a dia está impregnado das relações online, nosso pensamento é digital sendo a rede de relacionamentos eletrônicos componente fundamental da *vida* social e profissional.
    Uma frase estranha à propósito: “Eu vejo o que fotografo”. Creio que quem trabalha com artes visuais embute em seu subconsciente um hardware virtual de captura, que faz da fotogenia a medida da relevância dos fatos visuais.
    O Eu a gente encontra naquilo que não sabemos dividir, nas bobas descobertas que não interessam à ninguém.

  4. Há poucos dias conversava com o namorado sobre isso. Vendo as fotos de amigas, do tempo do colégio, as quais ainda amo muito mas não tenho contato cotidiano. Observei as milhares de fotos em festas, baladas, encontros, praias, barzinhos… festa, festa, festa… Quase tive a sensação de que não me divirto como elas.

    E o namorado parou e disse: se você quiser, a gente faz fotos nossas nos divertindo, jogando RPG ou Xbox, ou quando a gente sai pra comer com o pessoal, pra você mostrar que também se diverte!

    Eu achei desnecessário, mas a reflexão ficou. E você reforçou o que eu achava disso tudo. Obrigada.

  5. Estamos reaprendendo a contar nossa história.
    A imagem gráfica das letras, 🙂 ,por vezes, já esta sendo substituída por uma imagem fotográfica.
    Nunca a humanidade reproduziu e assistiu tanta imagem artificial.
    E a cergueira onde fica?
    Caminhamos para ela!

  6. Adorei o texto!

    Aqui na minha região, Vale do Itajaí/SC como em outros locais do Brasil muitas pessoas vão para as “baladas” para fotografar e não para se divertir, parece que o mais importante é o dia seguinte, em que as fotos escolhidas serão postadas nas redes sociais.

    Anderson

Deixe um comentário para Tereza Jardim Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *