O anteparo técnico

Hoje, ao comprarmos um DVD de cinema, recebemos, muitas vezes, dois discos: um que contém o filme e outro que traz o seu making of. Não nos satisfazemos simplesmente com  a experiência de assistir ao filme: queremos saber como ele foi feito. Quando vamos a um museu, geralmente nos incomodamos com aquilo que não entendemos; precisamos saber das motivações e da técnica do autor. Um audiófilo, quando monta sua sala de música, pode correr o risco de prestar mais atenção na qualidade de cada tipo de som em vez de simplesmente desfrutar a música. Será que há uma certa dificuldade em aceitar as obras visuais, musicais ou cinematográficas pelo que elas são?

Na fotografia não é diferente. Talvez seja um movimento ainda mais acentuado, tendo em vista a supervalorização que os aspectos técnicos geralmente recebem. Ao mostrar uma foto para um fotógrafo ou alguém que entenda minimamente de fotografia, não é raro ouvir perguntas como: “qual o equipamento usado?”, “quais as configurações da câmera?”, “como foi usado o flash?”. Vejo duas vertentes nesse fenômeno. Primeiro, parece existir uma certa dificuldade em simplesmente aceitar o que é visto, em mergulhar na imagem ou na foto, como também acontece quando queremos saber como os filmes são feitos. Coloca-se na frente da foto um anteparo técnico abstrato que impede a sua visualização plena. A percepção da foto passa pelo como, e o entendido de fotografia preocupa-se mais em decifrar o método do que em simplesmente ver o que há para ser visto.

Em segundo lugar, há a ilusão da reprodutibilidade. O fotógrafo que vê uma foto que admira pode acreditar que conhecer as configurações técnicas possibilitará que ele tire fotos semelhantes. Na fotografia digital, cada foto guarda embutida no seu arquivo uma lista de informações sobre a captura, chamada de EXIF. Entre os dados armazenados, estão a distância focal da lente, abertura, velocidade, ISO, modo em que a câmera estava configurada, uso do flash, entre outros. Muitas pessoas nutrem um certo fetiche pelo EXIF de fotos alheias, buscando justamente a tal da reprodutibilidade. Acreditam que podem reproduzir a foto ao simplesmente usar as mesmas configurações de abertura, velocidade etc. Soa absurdo, pois com isso não se garante nem mesmo obter uma exposição correta, já que para cada cena as condições de luz mudam. Além disso, dificilmente o EXIF conterá informações sobre o que tornou uma foto boa, da mesma forma que identificar as figuras de linguagem em um texto não é suficiente para compreender porque a história é boa.

Jon Villegas
Jon Villegas

O que faz uma boa foto é a sua força como mensagem visual. A sua estrutura formal, o seu significado, as impressões que causa durante a “leitura” da imagem. E isso não é identificado através de dados técnicos. Pode-se chegar perto através da semiótica, mas mesmo assim ainda existirão meios controversos e que provavelmente não darão conta da obra como um todo. Afinal, a qualidade de uma foto não está apenas nela, mas também no observador, na sua história, no seu gosto, ou seja, em fatores não mensuráveis ou analisáveis. A apreciação de uma imagem é um contexto bilateral, e a foto em si é apenas um desses lados.

Considero ser um desafio que o cinéfilo, o audiófilo, o leitor, ao se aprofundarem em suas áreas de interesse, não percam de vista a perspectiva “leiga”, ou seja, a capacidade de se emocionar ou se envolver com um filme ou uma sinfonia sem se preocupar em analisá-la. Na fotografia, isso parece ser ainda mais difícil, especialmente para aquele que fotografa, já que ela é fácil nos seus aspectos técnicos, o que pode levá-lo a reduzi-la apenas a isso. Acho fundamental que o bom fotógrafo preserve a sua sensibilidade e a possibilidade de se assombrar, se impressionar com a fotografia, deixando para depois ou simplesmente abrindo mão da pergunta: “como foi feita?” e da tentação do “quero fazer igual”.

10 comentários em “O anteparo técnico”

  1. Claro que a percepção “per se” e a emoção são a chave para apreciarmos uma obra de arte, seja ela visual, musical ou literária. Entretanto é inevitável ao observador abstrair sobre a forma como ela foi criada, pois até os experts e estudiosos o fazem de forma sistemática!

  2. Mais um artigo lindo, caramba!
    Gosto muito da forma como você escreve e, principalmente, o modo como você percebe o universo da fotografia.
    Noto que, a maioria dos meus amigos que fotografam de forma amadora, ligam muito pra essa questão de tentar reproduzir o que foi feito, quando, na verdade, deveriam se preocupar com o “texto” que a imagem quer passar. Muitos deles, quando ficam sabendo que uma foto foi feita com camera analógica, até se espantam: “como essa maravilha foi feita com um equipamento pré-histórico?”
    Acho que não se deve dar tanta importância aos dados técnicos, por mais que às vezes sejam importantes.
    Devemos é mergulhar na foto, tentar imaginar como ela foi feita, o por que etc. Penso que fotos são como textos, que só conseguem atingir o seu objetivo quando alguém os lê, do contrário, é apenas um emaranhado de palavras ou, no caso da imagem, apenas mais uma entre tantas que circulam por aí…

  3. Parabéns pelo artigo Rodrigo.
    Talvez seja uma maneira de se sentir co-proprietário da obra, sintoma da atual sociedade consumista.

  4. Eu já me senti menos profissional por não demonstrar essa curiosidade técnica ao observar fotos alheias.

    Não sabia explicar, mas agora tenho bons argumentos para me justificar quando não perguntar sobre abertura ou lente.

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