Em relação a aspectos técnicos, a popularização da fotografia digital é um fenômeno que só encontra similares na invenção do filme colorido e das câmeras automáticas. Esta revolução tornou mais fácil a vida dos fotógrafos profissionais e possibilitou que qualquer pessoa fotografe, transfira a imagem para o computador e a compartilhe com milhares de pessoas em questão de minutos.
Indo ao centro de SP, na rua 7 de abril, no entanto, você encontrará várias lojas que sobrevivem vendendo câmeras usadas — praticamente todas de filme. As principais fabricantes, como Kodak, Ilford e Fuji ainda abastecem o mercado com seus rolos em cassetes ou latas. Há uma considerável opção de filmes PB e coloridos em lojas especializadas. Fora do Brasil, a oferta é ainda maior. Se procurar na internet, você encontrará uma série de aficionados por fotografia com filme. Grupos do Flickr, como o “I Shoot Film” contam com mais de 4 mil usuários.
Qual a justificativa para essa atividade que vai contra a maré? Em qualquer fórum de fotografia, nacional ou estrangeiro, você encontrará uma série de tópicos que discutem as vantagens de cada formato. Os fanáticos por filme dizem que a latitude é maior; o PB digital não tem o mesmo apsecto do filme; as cores do cromo são inigualáveis; a fotografia analógica força a pensar mais nas fotos; e há aqueles até que adoram o fato de esperar para ver como ficaram suas fotos.
Em contrapartida, os advogados do digital afirmam que a praticidade do sistema é imbatível; que a resolução dos sensores já superou a dos filmes; que as cores podem ser processadas em editores de imagem; que o processamento digital permite muito mais controle por parte do fotógrafo; e que nada melhor do que ver a foto logo que ela foi tirada: não há mais fotos “queimadas”, tremidas ou erradas que não possam ser refeitas imediatamente.
Como é possível concluir, essas discussões não vão muito longe pois são baseadas em visões “apaixonadas” em relação a um ou outro sistema (geralmente aquele que se possui). É possível que o digital logo solucione as últimas defasagens em relação ao filme, na medida em que surjam sensores com mais latitude, as possibilidades de conversão via software para PB tornem-se mais eficazes e os metódos de impressão em alta qualidade se aprimorem.
Eu uso o digital e o filme. Minhas melhores fotos são feitas com filme — não porque o filme seja melhor, mas porque nas situações em que imagino que posso fazer boas fotos, utilizo mais a câmera analógica. A digital é usada em fotos mais “corriqueiras” e potencialmente de menor qualidade estética.
Uma condição essencial para mim é que não sou profissional. Por isso, posso me dar ao luxo de escolher uma maneira menos prática, menos rápida e menos fácil de fotografar, ao utilizar uma câmera mecânica. O motivo principal pelo qual uso filme não está entre os citados pelos defensores do filme que listei acima. Gosto do filme pelo fato dele ser capaz de reter, para sempre, a luz refletida naquilo que esteve frente à lente.
Quando fotografo alguém, passo a ter um negativo marcado pela luz que refletiu diretamente naquela pessoa, como um sudário de haleto de prata. As filmagens do dirigível Hidenburg em chamas guardaram a marca da própria luz do hélio queimando. Os negativos das fotografias de Stalin, Churchill, contém fisicamente a própria marca da sua luz. Até mesmo a luz refletida por Kennedy no momento em que foi morto está registrada dessa forma. Não é à toa que muitas pessoas, mesmo esclarecidas, tinham receido de que a fotografia “roubassem” um pouco de sua alma ao serem retratadas.
Há alguns fatores técnicos fortalecendo minha opção, como a possibilidade do uso de um formato “full frame” (especialmente no ganho com profundidade de campo) e pelo aspecto dos filmes PB e coloridos. Ainda assim, como é possível ver, meu principal motivo para usar filme é quase místico. Justifico isso por acreditar que, quando produzimos algo que queremos que seja relevante, o resultado é importante, mas o processo pelo qual esse resultado é produzido também tem seu peso — talvez mais para o próprio autor do que para o espectador.
Por isso já comparei a fotografia analógica com a litogravura, a ilustração através de matrizes gravadas na pedra. A sensação de um artista que tem sua obra gravada na pedra talvez seja parecida com a que tenho quando vejo minhas fotos gravadas nos sais de prata, por mais desimportante que isso possa parecer. Infelizmente, nunca terei essa necessidade meio ritualística atendida pelo sistema digital.
Foto: Csuka András