Comprar: a solução para todos os problemas

Costumo frequentar fóruns e listas de discussão sobre fotografia. É comum que as pessoas acessem esses espaços para tirar dúvidas sobre qual câmera comprar. Mas é surpreendente que mesmo aqueles que fazem outros tipos de pergunta possam ter como resposta uma lista de compras. Duas situações recentes: uma usuária pergunta: “o que posso fazer para tirar melhores fotos num ambiente com pouca luz?”. A resposta, simples: “compre outra câmera”. Outra pessoa quer entender porque a abertura de sua lente zoom não é sempre a mesma. De alguma forma, essa dúvida singela leva alguém a responder: “compre outra lente”. Como assim?

Comprar se tornou a solução para tudo. Trocamos de câmera sem sequer aprender a extrair todo o potencial que cada modelo descartado nos oferece. Há fotógrafos da agência Magnum que usam compactas, mas a maior parte dos amadores tem conjuntos com câmeras que vão muito além de suas necessidades. Você pode argumentar: “a pessoa pode fazer o que quiser com o dinheiro dela, isso não tem nada a ver comigo”. Será? O fato é que esse padrão de consumo desenfreado afeta a vida de muitas pessoas, inclusive a minha e a sua. O uso de recursos naturais para produzir o que consumimos vai muito além do que o planeta dá conta, além de levar a impactos sociais que talvez você nem imagine. O seu smartphone tem relação direta com o massacre de pessoas no Congo, por exemplo.

No Brasil, reclamamos muito dos custos de câmeras, lentes e outros aparelhos eletrônicos. Atacamos o governo pelos impostos que julgamos abusivos e tomamos o crescimento econômico como algo inquestionavelmente positivo. No entanto, as coisas já são baratas demais, pois os custos sociais e ambientais não são cobrados de quem compra, e sim das populações que sofrem com a extração de materiais e o desmatamento. Na verdade, as coisas deveriam custar muito mais. Desta forma, pensaríamos mais antes de consumir, usaríamos menos recursos e descartaríamos muito menos lixo. E o governo talvez devesse aumentar os impostos para frear o consumo, e não diminui-los. É claro que isso não acontecerá porque o nosso sistema não tem alternativa a não ser consumir sempre mais, até que devore a si mesmo.

Meliha Tunckanat

Mesmo com os preços dos nossos equipamentos e carros muito mais altos dos que, por exemplo, os dos americanos (que inveja deles!), não abandonamos a nossa sede de consumo. Felizmente podemos tomar dívidas e usar nossos cartões de crédito para comprar coisas de que não precisamos e que acabam com os recursos que serão necessários para a sobrevivência das próximas gerações. E, para pagar nossas dívidas, podemos sempre trabalhar mais. Abrir mão de férias, fins de semana, fazer hora extra. Para sustentar nossa fixação por coisas, vendemos a única coisa que de fato temos: o nosso tempo, que poderia ser gasto com nossas famílias e entes queridos, em atividades que não envolvam gastos.

Mas isso não é interessante para as corporações que, através da publicidade, convencem-nos de que vale a pena deixar de viver para ter. Com o esforço dos anúncios e do incentivo a um estilo de vida voraz parece absurda a ideia de optar por trabalhar menos, ganhar menos, crescer menos (enquanto país) e ter menos. Afinal de contas, ter se tornou quase uma medida universal na nossa sociedade. O seu sucesso é medido pelo quanto você tem. O seu amor é medido pelo valor do presente que você dá. Se no Natal você der um presente barato, ou pior, apenas um cartão ou um abraço para alguém com quem se relaciona, essa pessoa pode achar que você não gosta ou não se importa com ela. Mas dê algo caro e ela não terá dúvidas do seu sentimento.

De alguma forma, comprar se tornou uma grande resposta. A fotografia é um prato cheio para os consumistas – para alegria dos fabricantes de câmeras – pois há sempre novas necessidades a serem criadas e novos equipamentos a serem vendidos. Afinal de contas, tem sempre aquela foto perfeita que buscamos e nunca conseguimos. Mas espere! Com o novo modelo que faz 50 fotos por minuto, fotografa com luz negativa e detecta o sorriso de uma ave a um quilômetro de distância, você conseguirá obter a sua foto perfeita. Apesar do nosso entusiasmo inicial, lá no fundo percebemos que já ouvimos essa promessa antes, muitas vezes. E sabemos que ela não foi cumprida. Será que algum dia vamos acordar?

P.S.1: Antes que você pergunte, tenho a mesma Pentax K100D, de seis megapixels, desde 2007. E ainda assim, de tempos e tempos, me questiono se não foi uma compra desnecessária.

P.S.2: A ótima foto que ilustra esse post foi feita por Meliha Tunckanat com uma Olympus Trip 35 e filme Kodak Gold.

Publicidade: podem os fotógrafos lavar as mãos?

Não é difícil perceber que o preço que a sociedade de consumo cobra pelo conforto e pela tecnologia é alto demais. Podemos encarar essa questão de acordo com diversos pontos de vista. Em relação à ecologia, vemos que, embora os alertas em relação ao meio ambiente já estivessem sendo dados há muito tempo, só mais recentemente começamos a sentir as consequências. Há também um ponto de vista social, no qual argumenta-se que o modelo econômico baseado no consumo como é hoje acentua as diferenças entre as camadas da população. Do ponto de vista ideológico, afirma-se que o sistema capitalista, que tem o consumo como seu motor, impede que a democracia ou a igualdade sejam plenas.

Todos esses pontos de vista são válidos. No entanto, eu, como psicólogo, interesso-me por como os mecanismos da sociedade de consumo afetam a vida dos indivíduos e o seu bem estar. Hoje, não somos vistos como cidadãos, ou como indivíduos, e sim como consumidores. Se nos compararmos com as pessoas de dez, vinte ou cinquenta anos atrás, percebemos facilmente que consumimos muito mais. Os itens de consumo duram cada vez menos e são substituídos cada vez mais rapidamente. Isso é facilmente perceptível olhando para o intervalo entre os lançamentos entre câmeras dos principais fabricantes. As primeiras Nikon F ficaram em produção por 10 anos. Agora, vejamos quantos modelos são lançados em apenas um ano. A questão é: somos mais felizes do que a dez, vinte ou cinquenta anos?


Candice Wouters

Não somos, porque toda a questão do consumo depende disso. Se fôssemos mais felizes, consumiríamos menos, o que não pode acontecer. E qual o fator determinante para que não estejamos satisfeitos, tendo tanto conforto e tecnologia à disposição. Não quero ser reducionista, mas acredito que um dos fatores fundamentais é a publicidade. Basicamente, a publicidade, para atingir seus objetivos, precisa nos imbuir de uma sensação de falta, falta essa que só será suprida com um produto. Ou seja, os anúncios implicam o tempo todo no fato de que não podemos ser felizes, nem satisfeitos – a menos que consumamos. No entanto, se o consumo realmente fosse suficiente para nossa satisfação, não precisaríamos continuar consumindo tanto, e teríamos mais satisfação. Acontece que é muito difícil nos satisfazermos com posses materiais, inclusive porque a própria publicidade nos diz que o que acabamos de comprar já não é mais suficiente.

Quem trabalha com publicidade geralmente tem alguns argumentos contra essa percepção. Diz-se, por exemplo, que o marketing e os anúncios apenas refletem aquilo que o consumidor quer e que não se criam necessidades, apenas descobrem-se. No entanto, o que vemos na prática é diferente. As pessoas chegam a extremos para perseguir um padrão alardeado pela mídia que é simplesmente inatingível. Vejo também nos pacientes que atendo a angústia por não conseguir se encaixar em certos modelos midiáticos. Podemos perceber que a publicidade não está apenas nos anúncios, mas nas novelas, filmes, revistas e programas de TV em geral, constantemente criando modelos que as pessoas tendem a seguir. E não só as pessoas que não os atingem que sofrem. Nos raros casos em que as pessoas conseguem, por um momento, sentir-se dentro do padrão, isso também causa angústia e ansiedade tremendos, pois é dificílimo manter esse nível irreal de exigência. Basta ver quantas modelos são acometidas por transtornos alimentares. Então, quando os publicitários dão de ombros e negam ter todo esse poder sobre as pessoas, penso que é uma tremenda hipocrisia. Se não tivessem, não seriam gastos milhões e milhões em publicidade. Campanhas de marketing não raro custam mais caro do que os custos de produção de certos produtos: pagamos mais pelo anúncio do que pelo item em si.


Alex Glickman

Como esses modelos são basicamente visuais, a fotografia tem um papel importante. É através dela que se criam as ilusões dos produtos e vidas ideais que geram o consumo. No entanto, por que, ao fazer uma foto publicitária, não basta ir até o supermercado mais próximo e fotografar o produto? Por que é necessário ter estúdios com esquemas complexos de luz, flashes, lentes e câmeras caríssimas, pós-produção etc? Porque o produto real, que está na prateleira do supermercado, não é suficiente. É preciso ir além, criando uma imagem perfeita, ultrarreal, cuja função é eliciar o desejo e salientar a sensação de falta no observador.

Pode o fotógrafo lavar as mãos em relação à sua contribuição para esse sistema? É claro, ele irá argumentar que não foi ele que determinou que as coisas sejam como são, e que está apenas fazendo o seu trabalho. Ou, ainda, que se ele não fizer, outro fará. É claro que eu não tenho o direito de julgar a forma como as pessoas ganham suas vidas, ainda mais quando se trata de um trabalho honesto. Muitas vezes nem temos clareza das dimensões que a nossa atividade profissional pode atingir numa perspectiva mais ampla. Não obstante, acredito que existam algumas pessoas que têm uma visão crítica sobre o estado de coisas, sobre o modelo social em que vivemos. Que percebem, ainda, que podemos mudar muito pouco do sistema através do voto, já que os candidatos viáveis são aqueles comprometidos com o poder econômico e que a máquina governamental é desenhada para se limitar a escolhas menores. Para essas pessoas, talvez valha a pena refletir se adianta reclamar do governo ou culpar os outros. Uma das alternativas se dá através da análise do próprio meio de vida, considerando como ele afeta as pessoas e a si mesmo. E aí, se você for um fotógrafo publicitário e ao mesmo tempo alguém preocupado com as outras pessoas e com a sociedade de forma geral, talvez valha a pena parar para pensar. Você pode ter mais poder nas mãos do que imagina. O que você vai fazer com isso?

P.S.1: Você já deve ter percebido que o Câmara Obscura não tem publicidade. Arco integralmente com os custos do site e não cogito veicular nenhum espaço para propagandas. Isso permite tanto uma navegação limpa para você quanto liberdade na criação do conteúdo para mim. Se você quer navegar sem anúncios pela Internet, use o plugin AdBlock no Firefox ou Chrome, ou um navegador capaz de bloquear conteúdos, como o Opera.

P.S.2: Esse artigo foi inspirado no texto free of advertising, do blog mnmlist (em inglês).

O paradigma e os usos da fotografia na atualidade

Este texto não tem como objetivo tornar pétreas as classificações que propõe. Serve, antes disso, como organizador das minhas próprias concepções e, num segundo momento, como possível iniciador de um debate. Os conceitos desse artigo são totalmente plásticos, somente servindo, a princípio, como base para outros textos a serem publicados no Câmara Obscura.

Partindo do pressuposto de Pierre Dubois, que afirma ser a fotografia uma categoria epistemológica per se, pode-se construir, em torno dela, uma análise paradigmática e das diversas correntes de pensamento que irradiam desse paradigma central.

A fotografia, tecnicamente, é definida pelo registro ou impressão, em superfície fotossensível, de uma imagem do ambiente externo projetada no interior de uma câmera escura. Essa definição, bastante consensual, nos coloca a frente dos elementos da fotografia: a) o registro, a fixação, relacionados à permanência no tempo do que foi produzido pelos outros elementos; b) a imagem, que é a própria luz refletida na matéria existente à frente da câmera; c) esse ambiente externo, o referente, é o que terá sua luz refletida fixada; da mesma forma que não há fotografia sem luz, não há fotografia sem referente; d) a câmera escura, o instrumento implícito em toda fotografia, necessário para isolar e selecionar os raios de luz que comporão a imagem que será registrada.

A definição da fotografia não é seu paradigma central, embora nos leve a ele. Uma das concepções mais difundidas é a de Barthes, de que a fotografia, através do registro a partir da luz, atesta que algo (ou alguém) existiu na secção do tempo em que a fotografia foi tirada: “isto foi”. Isso torna a fotografia totalmente dependente do corte da realidade que ela fará. Não se pode fotografar o nada. É esta concepção de representação da realidade, dentro de um formato próprio, que guiará os diversos usos que ela tem, ou as diversas “correntes” de utilização e a consequente relação com o mundo real que cada tipo de abordagem implica.

Embora a fotografia não seja a realidade e sim uma representação, consistindo numa espécie de ilusão, como colocado por Arlindo Machado em A Ilusão Especular, aqui, como o enfoque é totalmente pragmático (o uso da fotografia) basta ter como pressuposto que a fotografia é tida, de forma geral, como representação fiel da realidade. Desde que a fotografia foi inventada, ela adquiriu esse status de verdade, decorrente especialmente do seu uso no jornalismo e pelo próprio uso das pessoas no dia a dia, por mais que esse status seja questionado por diversos autores. As diferentes correntes de uso da fotografia pautam-se por esse poder a ela atribuído de mostrar o real.

A divisão que faço em seguida é puramente para organização do texto; não há limites claros entre elas e, em algumas circunstâncias, esse limite pode até se dissolver por completo, fazendo com que uma foto de uma abordagem acabe tendo mais características de outra. Também não há a pretensão de englobar todas as possibilidades; é uma lista que certamente pode ser ampliada. Tentarei definir o aspecto básico de cada categoria.

1. A fotografia de lembrança

Brian Yap
Brian Yap

Toda fotografia é uma tentativa de criar uma referência para alguma utilização no futuro, mas considero nessa categoria o tipo que é feito mais comumente pelas pessoas. Fotografar festas de aniversário, casamentos, reuniões, viagens etc. Nesse tipo de foto, há pouca preocupação com a composição, com o resultado final. O importante é mostrar que aquilo aconteceu, e servir como base para recordações futuras. É a típica foto de álbum, seja de família, de uma viagem, de um casamento.

Uma vez que não há preocupações excessivas com o resultado, qualquer pessoa pode fazê-lo, e qualquer tipo de equipamento serve. Na verdade, a maior parte das câmeras é usada para esse fim e, portanto, são aquelas fáceis de usar, chamadas de “aponte-e-dispare”. O importante é registrar o evento, não trazer ajustes à captura em si.

Se considerarmos que, em cada fotografia, há um continuum entre o peso do referente e a presença — qualificada — do fotógrafo, em que ambos se confrontam e se complementam, este tipo de foto situa-se próximo do referente, tendo o fotógrafo pouca importância.

2. A fotografia documental

Como fotografia documental, entendo aquela cujo uso principal é servir a um sistema de informação amplo, que usa a fotografia, mas não se resume a ela. Nesse caso, o papel é ilustrar, evidenciar e servir como documento de um determinado momento da história. Esse propósito exige que a fotografia seja clara, explícita, da mesma forma que o texto de um documento não pode deixar dúvidas sobre seu conteúdo. Ainda que um texto documental possa ter estilo diferenciado (vide “Os Sertões”, de Euclides da Cunha), seu caráter informativo é proeminente; da mesma maneira, uma foto de registro pode ousar, mas sem perder seu referencial documental.

2.1. A fotografia de registro histórico

Gettysburg
Alexander Gardner

A História se inicia com a invenção da escrita. Contudo, não foi a mesma a partir da invenção da fotografia. Enquanto só podemos ter um vislumbre da derrota de Napoleão na Batalha de Leipzig através das pinturas, as fotos dos mortos em combate na Batalha de Gettysburg traz uma outra visão: “isto aconteceu”. “Desse jeito”.

Não havia mais necessidade de pinturas, que, por mais fiéis que fossem, ainda assim não chegavam perto da crueza do registro que a fotografia era capaz de fazer. Portanto, ela passou a ser usada para rechear os arquivos históricos de qualquer instituição ou órgão governamental. Podemos acompanhar o crescimento de uma cidade a partir de sucessivas fotografias, por exemplo.

As fotografias, no entanto, não são garantia de verdade, uma vez que podem ser manipuladas ou usadas de acordo com uma finalidade ideológica específica. Stalin obliterou Trotsky das fotos em que ambos apareciam juntos. A fotografia, aqui, confirma o que não houve, serve a um propósito maior de correção ideológica implantada pelo regime comunista.

Uma faceta interessante da fotografia como registro histórico é que ela permitiu que se registrassem as imagens de pessoas em larga escala. Vários fotógrafos atingiram a notoriedade por levantar, com certa objetividade, o estilo de vida e as características de uma determinada população, como Dorothea Lange, nos Estados Unidos, e Pierre Verger, no Brasil.

É necessário considerar, também, que há uma dimensão temporal nesta categoria. Uma foto pode adquirir, ao longo do tempo, valor histórico que não possuía no momento em que foi produzida. Nesse caso, sua utilidade muda de acordo com o tempo, tal qual um objeto que se torna uma antigüidade: seu uso primário é abandonado e a foto adquire um interesse distinto, como uma foto de família de alguém que venha a ser, no futuro, uma personalidade importante, ou o de uma cidade que sofreu muitas alterações.

2.2. O fotojornalismo

As fotografias de eventos relevantes passarem a ser impressas em jornais junto com as notícias a partir de 1880. Antes disso, para estarem nos jornais, fotografias precisavam ser transformadas em gravuras, pois esse era o único método compatível com a impressão até então. O objetivo dessas fotos, como fica claro aqui, era apenas ilustrar uma notícia, dando suporte ao texto.

A partir da explosão do fotojornalismo na da Segunda Guerra Mundial, as fotos passaram gradualmente a assumir uma postura de maior protagonismo nas notícias, juntamente com o texto. Hoje, muitos textos jornalísticos servem de suporte a imagens impactantes; em alguns casos, o texto que acompanha uma foto se resume à legenda.

Paralelamente, muitos fotojornalistas, como Robert Capa e Cartier-Bresson, passaram a desenvolver um trabalho nos moldes do fotojornalismo, mas que podiam ser considerados peças autorais. Por isso, essa modalidade tem ganhado espaço em galerias de arte, ao serem consideradas uma expressão artística autêntica.

O jornalismo, atualmente, sofre uma crise ocasionada pelas transformações nos meios de comunicação, pela perda da ilusão de imparcialidade e pela influência das questões mercadológicas como a competitividade e os interesses financeiros. Hoje a notícia precisa estar nos websites cinco minutos depois do fato ter ocorrido. Não há mais tempo para que os fotojornalistas se desloquem até os locais de interesse: os próprios leitores enviam fotos para os jornais. O layout e a diagramação tornaram-se mais relevantes do que o texto. E as facilidades da manipulação digital têm levantado questões sobre o que é ou não aceitável modificar numa fotografia, embora existam formas mais sutis de alterar a representação da realidade que sempre foram e serão utilizadas (como as distorções causadas pelo uso de lentes tele ou grande-angulares).

Todos esses fatores estão relacionados a essa revolução que vem ocorrendo no jornalismo. Só daqui a alguns anos veremos como os jornais, as agências de notícias e os grandes grupos de comunicação terão se adaptado às novas condições econômicas e tecnológicas. E aí veremos, também, qual o lugar que a fotografia ocupará nessa nova ordem. Algo me diz que continuará importante — e talvez até demais — em detrimento do texto.

3. A fotografia autoral

westpark
westpark

Desde o seu surgimento, era discutido se a fotografia poderia ser ou não considerada arte. Embora tenha sido reconhecida como tal, e esteja presente em galerias e museus, ela ainda tem um aspecto diferenciado que dificulta sua equiparação às outras formas de arte. Com isso, ela é tanto engrandecida como a Arte por excelência ou diminuída como um artesanato fácil e banal (essa mais frequentemente, especialmente pelo senso comum).

Pensando novamente no continuum entre o referente e o fotógrafo, esta categoria é o oposto da fotografia de registro: aqui são as variáveis autorais que terão mais força. Contudo, da mesma forma que para qualquer foto simples é preciso alguém que aperte o botão, para um trabalho autoral também é necessário um referente. Ainda que a foto seja um ponto de partida (ver “a fotografia como elemento compositivo”) ou ator precisa de um corte que corresponde sempre a uma secção da realidade.

O que caracteriza a fotografia de autor, no entanto, é a forma como o trabalho do fotógrafo se faz presente na imagem. Seja pela escolha do assunto, pelos recursos técnicos utilizados, o fotógrafo, ou o conceito criado por ele, são protagonistas da foto, sendo que o referente e os recursos utilizados são coadjuvantes na realização da ideia. Mesmo que a foto seja de um simples objeto, como a que ilustra essa seção, percebe-se claramente que o objeto em si tem menos importância do que toda a concepção do artista sobre a estética da imagem.

4. A fotografia como elemento compositivo


Alexander Cano

A fotografia, na esfera das artes plásticas, ganhou mais uma uso, que é o de elemento compositivo de uma outra obra. Seja pela simples montagem de fotogramas, ou por projeções, pinturas sobre fotografias, esculturas fotográficas, parte de instalações etc, muitos artistas optaram por inserir a fotografia dentro de um outro contexto, modificando ou até mesmo acentuando a sua natureza. Com isso, há uma tentativa, por parte do autor, de ir além do referente, ou até mesmo de dialogar com a sua crueza através de outros conceitos envolvidos na obra. Pode-se discutir, inclusive, se colagens, viragens e espalhamentos são ainda fotografias ou já deixaram de sê-lo, passando a uma outra categoria.

5. A fotografia utilitária

Toda fotografia, em última análise, é utilitária, pois serve a um propósito. O diferencial nessa categoria, no entanto, é que a sua finalidade dita de maneira clara a forma que a foto, como resultado final do processo, precisará ter. O uso não é conseqüente da forma, ele é anterior. Nessa categoria se inserem, por exemplo, fotos para documentos, para fichas criminais, para estudos científicos, para catálogos de diversas naturezas e, em especial, a fotografia publicitária. Enfocarei com destaque apenas esta última.

5.1. A fotografia publicitária

Incase
Incase

Esse uso da fotografia merece um destaque não por ser mais relevante, em termos históricos ou criativos, mas pela sua quantidade e pela influência que ela exerce na sociedade atual. Como toda fotografia utilitária, o uso da fotografia publicitária define sua forma.

A publicidade tem como objetivo fazer com que uma pessoa tenda adotar uma certa atitude em relação a algo, seja um produto, uma ideia, ou uma outra pessoa (um político, por exemplo). Na maior parte das vezes, isso significa consumir um produto. Ao longo do tempo, as propagandas passaram por diversas reinvenções, sempre com o intuito de provocar melhores respostas nas pessoas em direção a uma determinada atitude. Para isso, o expediente mais utilizado é associar uma idéia ou uma sensação de ganho, de prazer, a um determinado produto. Como o frescor do creme dental, o conforto de uma tecnologia, a sensação de poder de um carro, a sensualidade de uma roupa, a alegria da cerveja etc. Esses conceitos, geralmente, são transmitidos através de imagens, construídas sob medida para aquela finalidade. Portanto, a forma é essencial. Nem as pessoas, nem os produtos, podem ter defeitos. Para isso, usa-se a maquiagem, a luz certa, os retoques e objetos em escala exagerada. A propaganda cria uma realidade ampliada, hiperbólica, hiper-realista, voltada para o impacto, para a sensação.

Uma das consequências irônicas desse expediente é que nos dessensibilizamos. Com tanta estimulação, já não somos sensíveis e receptivos da mesma forma. Por isso, as imagens têm que ser cada vez mais impactantes, perfeitas, coloridas, chocantes. Ou isso ou ninguém reparará mais nelas. Uma segunda consequência é que essa hiper-realidade ideal disseminada pela publicidade acaba por penetrar no imaginário das pessoas, que passam a adotar, individualmente, aquele mundo como ideal pessoal. Isso gera uma insatisfação com o real “verdadeiro” e impele a pessoa a uma espiral de consumo a fim de atingir esse ideal que nunca será alcançado.

É importante, para esse propósito, que as imagens pareçam reais, para justamente atestar que aquele ideal existe e pode ser alcançado — desde que você esteja disposto a consumir. Para isso, nada melhor do que a fotografia, com seu status de verdade, especialmente quando é ampliada e retocada de forma a eliminar quaisquer imperfeições.

Hoje, no entanto, através de recursos de computação gráfica que tornaram as montagens e edições de fotos muito mais fáceis, e seguindo a perspectiva hiper-realista, a publicidade hoje envolve superproduções que tomam como elementos de composição fotografias, arte digital e outras mídias, extirpando o caráter unitário e autônomo dessas ferramentas. A ironia maior é que, naquilo que você paga por um produto, está embutido o custo que a empresa teve para convencê-lo a comprar.

5.2. A fotografia como suporte

Dan Brady
Dan Brady (grafite de Bansky)

A arte também pode usar a fotografia de maneira extremamente utilitária. Cada vez mais a produção artística está mais ligada à rede de informações e menos ao valor das obras por si só. Com o alcance dos meios de comunicação em massa, vemos infinitamente mais fotografias de obras de arte do que as obras em si. Provavelmente apenas uma minúscula parcela da população conhece os quadros mais famosos do Louvre ao vivo; mas uma grande parcela os conhece através de suas fotografias. Além disso, outras formas de manifestação artística, como instalações, performances ou os grafites de Bansky têm como característica a efemeridade: a fotografia entra aqui como uma forma de perpetuar o trabalho para uma exposição mais permanente, como catálogos ou sites na internet (e que me obriga a colocar o crédito para o fotógrafo e o artista). Assim como a fotografia documental, nesses casos a foto em si é apenas um veículo. O referente, ou a obra, assume total protagonismo.

Embora os usos da fotografia sejam mais amplos, essas categorias são suficientes para referência de outros artigos que virão a ser publicados. É interessante notar que, embora os usos e as formas variem muito, a captura fotográfica, na sua essência, permanece a mesma. Esse paradigma central sólido é útil para a nossa análise, uma vez que permite generalizar para suas diversas utilizações aquilo que se levanta a partir dele.