Sobre autoria

Temos uma tendência a venerar os inventores e seus esforços individuais. Sabemos quem inventou o avião, o telefone, o rádio, a fotografia. Ao pensar nessas pessoas, temos a impressão de que elas criaram, do nada, objetos revolucionários. Olhando de perto, no entanto, podemos perceber que não é bem assim. Por que foram os irmãos Wright e não Leonardo da Vinci que inventou o avião? Entre outros motivos, porque só no início do século passado havia tecnologia suficiente para possibilitar a construção de um aparelho que voasse, ainda que da Vinci dominasse os conceitos necessários para idealizar tal objeto. Quem possibilitou a existência dessa tecnologia? Diversos outros anônimos que aprimoraram técnicas e materiais, por exemplo.

A invenção, assim, não é obra de apenas uma ou duas pessoas. Qualquer tipo de invento é uma somatória de esforços que ocorre durante anos, décadas e, não raro, até séculos. Quando dizemos alguém inventou alguma coisa, estamos reconhecendo apenas aquele que realizou a última etapa do processo, sem olhar para todo o caminho percorrido.


Stephan Olsen

Se formos a fundo nessa concepção, veremos que qualquer tipo de criação humana cai no mesmo tipo de funcionamento. Mesmo as criações intelectuais consideradas artísticas. Quando escrevo um texto, produzo algo impregnado de todas as referências que já tive: da forma dos meus pais falarem, de todos os livros que li, das minhas aulas de gramática e redação, do que leio diariamente na internet, dos modelos que tive ao longo de toda a minha vida. Mesmo os assuntos sobre os quais me interesso têm a ver com aquilo que me foi apresentado por outras pessoas; não nasci com nada disso programado. Tudo o que fazemos é resultado de milhões de condições prévias que moldam o comportamento atual. Por mais que queiramos nos ver como seres únicos e especiais, não passamos do amálgama dos genes e ideias que vieram de outras pessoas.

Na fotografia não poderia ser diferente. Temos fotógrafos que admiramos, fotografias que nos inspiram, técnicas que aprendemos. Tudo isso foi criado por outras pessoas. E o que elas criaram foi influenciado por outras pessoas antes delas. Não há uma criação individual e totalmente autônoma, a partir do zero. Tomamos emprestado muito mais do que admitimos, ou sequer percebemos. Copiamos uns aos outros, querendo ou não.


José Pedro Costa

Qual é, então, o mérito do autor? Se ele apenas reorganiza ideias e conceitos pré-existentes, geralmente adicionando pouco ao que já foi construído, pode ele querer dominar aquilo que produziu? Seria o mesmo que eu tomar um muro em construção, adicionar um tijolo e dizer que o muro é meu. Pode-se argumentar que quem escreve, cria ou produz arte coloca seu tempo e esforço naquela produção. É uma posição válida e acho que isso justifica a existência do crédito (fui eu quem colocou este tijolo). Mas não acho que isso é suficiente para justificar a posse sobre todo o muro, ou seja, o conteúdo.

Uma das formas que encontrei para lidar com essa questão foi liberar todos os meus textos e fotos sob Creative Commons. Mas mesmo essa minha atitude pode ser analisada em função das influências que tive: sendo um acadêmico que desenvolve atividades em universidade pública, é de praxe entender que o que produzo deve voltar, de forma irrestrita, para quem o financiou. Da mesma forma, como entendo que tudo o que escrevo sobre fotografia não é mais do que uma reorganização de outras ideias, não vejo sentido em querer assumir, sobre os artigos, uma ideia de posse. O mesmo vale para a minha fotografia. Por mais que tenha uma relação de afeição com algumas de minhas produções, nunca consegui senti-las como absolutamente minhas. Quando olho para minhas fotos, vejo conceitos elaborados por outra pessoa; técnicas aprendidas com outras pessoas; outros fotógrafos tomados como modelo. Tomar posse da minha própria produção como algo autônomo e independente seria injusto com todos eles.

Sendo assim, talvez seja mais útil, para o autor, em vez de vangloriar seus feitos individuais e buscar a originalidade, entender melhor quais são as suas referências e influências. Se enxergarmos a nós mesmos – assim como nossos trabalhos – como resultado de milhões de condições prévias, não há outro caminho para nos entendermos e àquilo que fazemos a não ser identificar essas condições. E aí, pode ser que o sentimento de posse com o que produzimos caia por terra e faça mais sentido devolvermos livremente para os outros tudo aquilo que inevitavelmente pegamos.