A fotografia sempre teve como característica a possibilidade de estetizar os seus assuntos, tornando aquilo que é fotografado artificialmente belo. Com algum conhecimento de luz, composição, cores e enquadramento, é possível criar cenas que encantam os olhos. Isso sempre foi comum: basta olhar para campanhas ou revistas de moda, seja de que época forem. Antes disso, os pintores desde o renascimento se esforçavam para retratar a nobreza de forma lisonjeira.
O que mudou nesse século, com a fotografia digital e os programas de manipulação e em seguida com os telefones celulares, que podem editar imagens fácil e automaticamente, é que esse processo passou a estar na mão de todos. Os filtros existentes em aplicativos e os automatismos dos smartphones, que atualmente têm grande capacidade de processamento, tornaram muito simples a tarefa de criar imagens que antes demandariam muito trabalho e conhecimento específico.
Não faço críticas à popularização dessas ferramentas. O que gostaria de pensar é nas consequências disso para nós enquanto observadores de fotografias. Que tipo de impacto existe em estarmos constantemente vendo fotos de lugares, situações e pessoas perfeitas?
No seu livro Illusion and Reality: The meaning of anxiety (Ilusão e realidade: O significado da ansiedade), o psicólogo britânico David Smail afirma que
A maior parte das pessoas, na maior parte do tempo, percebem de forma profunda e infeliz o contraste entre o que elas são e o que elas deveriam ser. Mesmo num nível superficial (ainda que muito impregnante), por exemplo, muitas pessoas se sentem fracas e bobas quando elas deveriam ser fortes e confiantes, feias e insignificantes quando elas deveriam ser atraentes e chamativas. Como consequência, nós gastamos uma quantidade enorme de tempo e energia tentando impedir que os outros consigam ver o nosso verdadeiro e vergonhoso eu. Para isso, construímos aquilo que acreditamos ser uma versão pública aceitável de nós mesmos, mas que sabemos ser apenas uma casca vazia.
Basicamente, estamos o tempo todo em contato com as nossas inadequações. Nós tentamos escondê-las e parecer uma pessoa normal, bonita, bem-sucedida e confiante. Sabemos que não o somos, mas vivemos tentando pelo menos aparentar. A fotografia filtrada e embelezadora que está tão presente nas redes sociais, nas revistas e nos blogs pode, então, ser uma ferramenta para tentar passar essa imagem. Nossa tentativa é a de criar uma vida fotogênica, influenciados pela blogueira fitness que tem o corpo perfeito, pela youtuber que lê 10 livros por mês, pelo colega que posta no Instagram as fotos de pratos nos melhores restaurantes e pelo contatinho do Tinder que aparece simpático e descolado nas fotos.
Quando estamos olhando essas fotos feitas por outras pessoas, sofremos por compará-las com a nossa realidade sem filtros. Sem filtros, temos olheiras, espinhas, rugas, comemos mal, passamos dias entediantes, somos preguiçosos, fora de forma, mal-humorados e chatos. Ainda que postemos uma versão editada da nossa vida no Instagram, nós sabemos que aquilo é apenas uma fração da nossa existência, vista pelo melhor ângulo, com a melhor luz e a melhor cor, a fim de esconder as imperfeições que sabemos que estão lá. E aí, mesmo que nossa vida fotogênica seja convincente, não é incomum que nos sintamos uma fraude.
Quanto maior é a distância entra a nossa vida fotogênica e a nossa vida real, maior o sofrimento e maior a tentativa de esconder o nosso rosto sem maquiagem e a nossa foto sem filtro. Talvez fosse melhor apenas deixar para lá essa plasticidade pasteurizada que tanto nos consome. Ainda que possa parecer assustador, poderíamos viver (e até fotografar) nossa vida real que, por mais que seja cheia de falhas, é verdadeira.
Referência
Illusion and reality: The meaning of anxiety, de David Smail. Publicado em 1997 pela Trafalgar Square Publishing.
Foto: Tom Sodoge