Desde a sua criação, no século XIX, a fotografia tem, perante a sociedade, o status de representação fiel da realidade. Com a criação de um dispositivo que registrava as imagens sem a mediação de um agente humano, tornou-se possível a obtenção desses registros apenas pela ação da luz na superfície fotossensível. Por isso, a fotografia logo ganhou espaço na feitura de retratos, e também no registro de eventos historicamente relevantes, atividades que, até então, ficavam a cargo da pintura. Nasceu o chamado fotojornalismo, e cada vez mais, numa escalada constante que permanece até os dias de hoje, a imagem disputa a importância com o texto.
A força do referente, na fotografia, sempre foi avassaladora. Entende-se como referente àquilo que dá forma à imagem, através da reflexão dos raios luminosos. Esse peso do “real” presente na fotografia foi tão grande que mudou o curso da história da arte, sendo um dos responsáveis pelo surgimento do abstracionismo. Roland Barthes, em seu “A Câmara Clara”, evoca esse peso ao dizer que o noema, ou a essência, da fotografia é tão somente atestar a existência de algo: “isto foi”.
Contudo, a partir do século XX dois questionamentos à “pureza” da fotografia foram colocados. Primeiro, é o fotógrafo apenas um manipulador do equipamento, impotente frente ao poder do referente? Segundo, a captura fotográfica, através da câmera, é desprovida da necessidade de codificação e interpretação, ou seja, é de fato uma cópia fiel da realidade?
Ivan Constantin
Passou-se a discutir, então, o quanto o ato de fotografar era influenciado por quem estava atrás da câmera. Concluiu-se, obviamente, que a fotografia não era assim tão pura. Afinal de contas, o fotógrafo tem, em suas mãos, diversos instrumentos para guiar a captura fotográfica a fim de induzir uma determinada interpretação. O mais poderoso deles talvez seja o corte. Ao decidir o que permanece dentro do retângulo da foto e o que fica fora, o fotógrafo tem o poder de isolar ou contextualizar uma cena, alterando a forma como ela é percebida. Outras formas de distorção também são possíveis, como o uso de lentes de distância focal curta ou longa, que alteram completamente a noção de espaço, já que esticam ou achatam os planos na representação bidimensional do espaço tridimensional. Além disso, as fotos podem ser montadas e manipuladas, tendo como expoente o uso de tais procedimentos durante o período stalinista na antiga União Soviética.
Arlindo Machado, em “A Ilusão Especular”, mostra que mesmo a representação fotográfica obedece à perspectiva central consagrada no renascimento e há uma série de preocupações técnicas para que essa representação realmente se pareça com a realidade, ou seja, torne-se uma boa ilusão. Quando, pela alteração desses elementos técnicos, há um resultado que se afasta desse ideal (como uma imagem tremida, uma luz que achata a imagem, um borrão por movimento), a conseqüência é uma sensação de estranheza, já que a fragilidade da representação vem à tona.
A câmera fotográfica, então, não era mais detentora da verdade e o fotógrafo não era mais um mero apertador de botão. Isso, contudo, reflete mais uma posição teórico-acadêmica do que a visão do senso comum. A fotografia, para a maioria das pessoas, ainda é vista como entidade soberana, tanto que é tida como prova de que algo realmente aconteceu. Quando uma pessoa, flagrada em ato questionável numa imagem argumenta que a foto foi montada ou adulterada, isso não convence ninguém. E, com o uso cada vez maior das imagens pelo jornalismo, esse status não tende a mudar cedo.
skazama
Esse contexto evidencia a característica da fotografia quando olhada pelo prisma da relação entre o fotógrafo e a sua ferramenta. Ao contrário de outras artes, como a pintura e a literatura, em que há muito mais liberdade e as criações encontram menos obstáculos, na fotografia a obra está intimamente ligada às características do aparelho, como afirma Flusser em “Filosofia da Caixa Preta”. Há, então, uma queda de braço entre o fotógrafo, que busca atribuir à realidade conceitos pessoais, e o referente, que é o que é por si só e não está nem aí para os desejos do fotógrafo.
As técnicas disponíveis pelo fotógrafo, como o corte e a distorção, poderosas quando servem ao propósito de alterar a realidade, podem ser toscas e insuficientes quando o referente é muito diferente daquilo que o fotógrafo quer mostrar. A saída, para o fotógrafo, é construir a sua própria realidade, a partir, especialmente do trabalho no estúdio. Não é à toa que as fotos publicitárias são, na grande maioria dos casos, produzidas em estúdio, em que a realidade pode ser construída para parecer mais real do que a realidade “verdadeira”.
Mas mesmo o trabalho no estúdio tem as suas limitações, e não é tudo que se pode controlar, mesmo com holofotes, maquiagens e fundos infinitos. Essa queda de braço entre aquilo que o fotógrafo quer mostrar contra a forma como o real se apresenta inevitavelmente leva à frustração. Com isso, muitos seguem o caminho adicional de manipulação da imagem, que se assemelha, em sua forma, com a pintura, com o problema que ela ocorre sobre uma base pré-estabelecida, a captura fotográfica.
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Percebe-se, então, que essa disputa de controle se dá com o fotógrafo atuando antes e depois do clique, alterando luzes, corte, assunto, abertura, velocidade e manipulando o resultado, a fim de cercar o único fator que ele não tem, de fato, acesso, que é a própria captura fotográfica. Enquanto o obturador está aberto, não há nada que o fotógrafo possa fazer; é o referente que está irradiando sua luz sobre a superfície fotossensível: resta ao operador esperar e torcer para que o resultado seja o que ele espera.
Ou seja, aqueles que almejam o uso da fotografia como mais do que um registro documental (que sucumbe à força do referente), é preciso que se tenham maneiras criativas de como lidar com a realidade, sem tentar bater de frente com ela, ou o resultado será invariavelmente frustrante. Não é incomum que o fotógrafo frustrado busque novos equipamentos, ou vá cada vez mais longe à procura de imagens que se encaixem naquilo que quer fazer. Isso dificilmente resolve o problema.
Não resolve porque a imagem está circunscrita no aparelho, como coloca Flusser. O fotógrafo, quando busca novas imagens, busca coisas que o aparelho ainda não fez, e isso significa muitas vezes novos referentes, embora a mesma abordagem com referentes distintos pareça repetitiva. A saída pode ser simplesmente deixar de brigar com essa questão, entendendo ser a fotografia também, um testemunho pessoal.
É útil também entender as limitações da fotografia e perceber que muitas vezes a saída mais criativa reside em outras formas de expressão. A fotografia, inexoravelmente, é limitada, embora esse limite seja incrivelmente amplo. Para tornar o caminho menos doloroso, é preciso aceitar o referente, aceitar a limitação do programa fotográfico e adotar uma abordagem que coloque o fotógrafo como complemento desses fatores, de forma que ele seja visível na obra, entendendo que ele é parte da construção, mas não necessariamente a parte dominante.