Inveja fotográfica

Gosto muito de ver fotografias. Não ligo tanto para fotógrafos famosos, gosto mesmo de ver a produção dos milhares de fotógrafos anônimos que existem por aí. Uma das formas que utilizo para isso é navegar pelo Flickr, por fóruns de fotografia e sites de fotógrafos amadores. Embora na maior parte do tempo eu passe admirando as imagens, reconheço que de vez em quando bate uma “inveja fotográfica”.

A inveja fotográfica é aquela voz no fundo da cabeça que diz coisas como: queria ter feito essa foto, vivido esse momento, estado nesse lugar, ter essa câmera, visto essa luz, conseguido essas cores. Imagino que isso deva ser algo comum entre os que gostam de fotografia e algo meio inevitável. A questão é: o que fazer com isso?

É claro, podemos não fazer nada. Mas sinto que esse tipo de sensação, quando estamos vendo uma foto, nos faz perder a conexão com a fotografia. É como se tirássemos os olhos da imagem e os virássemos para nós mesmos, para nossas faltas, nossos desejos, nossos anseios. Então, quando sentimos a inveja fotográfica, surge uma boa oportunidade para nos encararmos.

Muitas vezes, não conseguimos fazer isso. Não percebemos que a sensação ruim que temos ao ver as fotos do outro tem mais a ver conosco do que com o outro. E aí, a inveja pode se tornar raiva, agressividade ou desdém. Critica-se o trabalho, o equipamento e até o fotógrafo. Uma das situações em que vejo isso com frequência é quando um fotógrafo tem uma proposta artística diferente e consegue reconhecimento. Quando não se consegue “engolir” a repercussão da fotografia do outro, fala-se que o trabalho não tem qualidade técnica, não tem conteúdo, que é de mau gosto e coisas do tipo. Nesses casos, a crítica tem menos a ver com a produção em si e muito mais com as dificuldades de quem está criticando — não raramente, sob a crítica há a inveja da produção ou do sucesso.

Karla Lopez
Karla Lopez

Por outro lado, se reconhecermos que a sensação negativa provocada pelo trabalho do outro tem a ver com nosso próprio ego, há uma oportunidade de mudança. Podemos, por exemplo, usar aquele trabalho como inspiração. Tentar fazer algo parecido, usar o outro como modelo, é algo totalmente válido no campo da criação fotográfica. Se a questão é o equipamento, talvez seja a questão de trocar o equipamento, ou viajar para o lugar em que aquela foto magnífica do outro foi feita.

Mas essas alternativas devem ser consideradas com cuidado. Pois podemos nos perder nesse processo de pura imitação, comprando câmera atrás de câmera, ficando obcecados por conseguir uma determinada foto e até esquecendo de viver para registrar tudo em fotografias. Podemos olhar para o outro, mas depois há o momento, fundamental, de olhar para si mesmo e para a própria produção. E aí, entender que não é possível tirar todas as boas fotos do mundo, ter todos os equipamentos, estar em todos os lugares. Percebemos que temos limitações, e ao longo da vida teremos apenas a nossa própria história para contar. Em vez de querer tudo, podemos passar a querer fazer o melhor possível dentro dos nossos limites, dentro daquilo que vivemos de fato — e não do que poderíamos ter vivido.

Se entendermos isso, algo muito interessante acontece: passamos a admirar, sem inveja, o trabalho do outro. Aprendemos a valorizar o diferente, pois vemos que o outro tem seu lugar e nós temos o nosso — e eles não precisam ser conflitantes. A inveja desaparece porque não sentimos mais necessidade de tomar posse da fotografia alheia. Deixamos o outro ser quem ele é e ao mesmo tempo valorizamos o nosso próprio trabalho, pois compreendemos que a nossa produção e a do outro não estão competindo, e sim coexistindo. Aceitamos, enfim, que cada caminho é único.

Foto do cabeçalho: Fatma Gultekin

Fotografia: um bloco de notas

Em um dos últimos textos, falei de como as fotografias, através do seu corte no tempo, atestavam a morte de um momento. Entretanto, e talvez pelos mesmos motivos, o ato de fotografar é um tributo ao momento presente. Existem poucas atividades que trazem tanto a nossa atenção ao instante imediato do que enquadrar uma cena através do visor de uma câmera. Nos instantes que precedem a tomada da foto, não há preocupações com o futuro ou o passado: desligamos, ainda que brevemente, nossa torrente de pensamentos que nos arrasta para longe do presente e focamos no aqui e no agora.

As filosofias orientais costumam ressaltar a importância de voltar-se para o momento presente. Estamos constantemente pensando, planejando, antecipando ou fazendo alguma coisa. Podemos passar dias, meses ou anos com nossas mentes ligadas nesses processos, sem nunca parar um momento e simplesmente viver o instante em que se está. Se pensarmos que na verdade não há passado ou futuro, é ainda mais estranho o quanto gastamos de tempo vivendo em função deles.


xiu×5

Fotografar, então, pode ter essa função. Não é possível fotografar o que já passou ou o que será. Somos obrigados a nos voltar para o que está acontecendo no momento, no lugar em que estamos. Temos que lidar com o que está disponível. É comum que depois de um tempo dedicando-se à fotografia como atividade de lazer ou profissão, passemos a olhar o mundo com um olhar diferente, enquadrando e compondo cenas que se formam na nossa frente. Talvez esse exercício também possa nos ajudar a retornar para o aqui e o agora mesmo quando não estamos com a câmera nas mãos.

Quando fotografamos, estamos criando, de certa forma, o enredo das nossas vidas, montado a partir dos milhares de momentos presentes que passamos. Mesmo quando estamos preocupados com questões técnicas, mesmo que estejamos fotografando num estúdio, por mais artificiais que possam parecer as situações, mesmo assim, fotografamos aquilo que vivemos, sempre. Algumas vezes, quando queremos fazer uma fotografia especial, tomamos cuidado com a técnica, gastamos tempo com o pós-processamento, estamos, metaforicamente, tentando escrever um pequeno conto, uma narrativa mais elaborada a partir daquilo que testemunhamos. Inversamente, quando sacamos o celular para uma foto rápida, estamos anotando um lembrete num bloco de notas. Mas, quer a foto seja uma narrativa elaborada, quer seja uma nota rápida, são igualmente relatos daquilo que vivemos.


Matea Jocic

Se abandonarmos por um momento todas as questões criativas, artísticas e estéticas envolvidas, focando apenas nessa característica da fotografia enquanto testemunho, relato ou demonstração de alguns de nossos momentos, torna-se difícil olhar as fotos de forma crítica. Todas elas são igualmente banais e igualmente significativas, independentemente de como foram feitas. Cada foto representa um instante de alguém. E somos bilhões de alguéns passando de um instante a outro constantemente. Como algo poderia ser mais comum? Por outro lado, não há nada além disso. Como algo, então, poderia ser mais sublime?

Tendemos a organizar tudo que percebemos de acordo com classificações, julgamentos, análises, aplicando constantemente um ou outro critério, um ou outro referencial. Será possível tomarmos as fotos – e talvez outras coisas – apenas como aquilo que são? Nada e tudo ao mesmo tempo?

“Contra a Interpretação”, de Sontag, e a fotografia

Sempre que vejo tentativas de explicação de obras de arte ou, mais especificamente, de fotografias, tenho a sensação de que algo não se encaixa ou falta, como se a transposição do visual para o verbal não fosse algo totalmente viável. Deparei-me, esses dias, com um ensaio da Susan Sontag, intitulado “Contra a Interpretação”, em que há o seguinte trecho:

“In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.”

A tradução seria mais ou menos essa: “Na maioria das instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a arte por conta própria. A arte real tem a capacidade de nos deixar nervosos. Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e interpretá-lo, a obra é domada. A interpretação torna a arte manejável, submissa.”

Na fotografia, uma das formas de se reduzir a obra é através da análise técnica, como já descrevi em “O Anteparo Técnico“. No entanto, não é a única forma. Uma outra forma bastante comum é tentar ler o que o autor quis dizer, como se houvesse todo um discurso subliminar em cada fotografia, e esse discurso seria mais importante do que aquilo que é mostrado claramente.

Temos uma tradição dualista que nos leva a pensar que tudo sempre tem uma razão, um motivo ou um conteúdo oculto. Mas na realidade, na maior parte das vezes as coisas são simplesmente o que são, e a busca por esses conteúdos, como diz Sontag em seu texto, é o “elogio que a mediocridade faz ao gênio”. Tanto que muitas formas de arte, como a pintura abstrata, fogem intencionalmente da possibilidade de interpretação – e, por isso, causam ainda mais incômodo.

Tomemos como exemplo a foto que ilustra esse artigo, de Chad Treolar, intitulada “Electrified”. É uma imagem incômoda. No entanto, o autor adiciona uma legenda explicativa ao postá-la, dizendo que é “uma tentativa de visualizar o conceito de que nossos corpos são carregados eletricamente que são essas cargas que, em última instância, dirigem nossos pensamentos”. Tivesse o autor deixado a imagem falar por si só, ela teria muito mais força do que com a sua própria interpretação.

Isso nos leva a pensar em como criticar fotografias. O primeiro passo é aceitar a foto, e não imaginar outra que poderia ter sido feita – mas não foi. O segundo é evitar excessivamente a interpretação, procurando significados ou intenções ocultas pelo autor. Não há forma de arte mais direta que a fotografia; procurar algo por trás é ir contra a própria natureza da obra. Seguindo esse preceito, a análise direta, através da descrição, da leitura atenta é um caminho interessante, reconhecendo não apenas o que a foto é como aquilo que ela suscita em nós como observadores.

Isso é difícil, pois o fato é que temos grande dificuldade em aceitar as coisas como elas são. Em contemplar sem entender, sem traduzir racionalmente aquilo que nos encanta, nos assombra ou nos incomoda. Talvez abrir mão desse expediente seja um primeiro passo para experimentar a arte tal qual ela é, sem tentar domá-la, ou aplacar o próprio incômodo frente aquilo que não pode ser circunscrito por palavras.

Referência: Sontag, S. (1964). Against interpretation. http://www.coldbacon.com/writing/sontag-againstinterpretation.html