A fotografia mudou (de novo)

Relatórios recentes indicam que a venda de câmeras caiu vertiginosamente nos últimos anos, sejam compactas, reflex ou mirrorless. Após o surgimento das máquinas fotográficas digitais, parece ter havido uma febre por equipamentos que vem se esfriando com a popularização de celulares e a melhora na qualidade das fotografias produzidas por eles.

Sejamos honestos: tirando aquelas que são muito ligadas em fotografia, a maioria das pessoas não liga para a diferença no resultado de uma câmera dedicada e de um celular — ou, mesmo que ligue, não está disposta a abrir mão da praticidade e portabilidade de um telefone. Não sei se os fabricantes de equipamentos estavam preparados para isso ou não, mas o fato é que hoje as câmeras dedicadas estão se tornando um objeto que só os profissionais e poucos entusiastas ainda usam. O mercado de equipamentos fotográficos está se transformando num nicho restrito, talvez como seja hoje o mercado de filmadoras: praticamente só os profissionais usam.

Com isso, estamos vendo as empresas se retirando do mercado nacional, marcas de equipamentos sendo compradas ou fundidas, fóruns de discussão sobre fotografia na Internet definhando, escolas de fotografia tendo dificuldades para obter novos alunos e tendo que se reinventar. A economia em torno da fotografia está precisando se adaptar à redução natural de interesse por parte das pessoas.

O que não quer dizer, no entanto, que as pessoas estejam fotografando menos. Ao contrário: hoje a rede social que mais ganha relevância é o Instagram; aparelhos celulares são avaliados pelas suas câmeras, sendo que novas tecnologias vêm sendo lançadas, como câmeras duplas, câmeras frontais, HDR, ativação por voz e assim por diante. Nunca se fotografou tanto.

Piotr Mamnaimie

O hábito de tirar fotos está totalmente integrado à nossa rotina. Entretanto, ele é tão automático que quase não percebemos que estamos fotografando. Abrimos a câmera do celular, enquadramos e apertamos um ícone na tela: pronto. De lá a imagem vai direto para os amigos ou para as redes sociais. Se na época do filme havia todo o processo de revelação e na das câmeras digitais havia ainda o processo de baixar as fotos para um computador, processá-las e compartilhá-las, hoje até esse caminho se tornou arcaico. Fotografar, revelar e mostrar as fotos para outras pessoas era um processo que já levou dias; hoje leva segundos.

Há muita discussão sobre se o automatismo e a velocidade de produção de fotografias é algo bom ou ruim. Debater não muda muita coisa: as coisas simplesmente são assim. Ainda há espaço para quem gosta de fazer uma fotografia artesanal, até mesmo usando filme. Há espaço para quem gosta de usar câmeras digitais dedicadas e editar cuidadosamente as imagens no computador. E há também para a grande maioria que fotografa se aproveitando da praticidade dos smartphones.

Embora a forma como se fotografa faça parte da mensagem, o aspecto mais importante da fotografia é o que se fotografa. O conteúdo, a narrativa, a expressão são o que dão peso à fotografia. Por muito tempo temos confundido saber fotografar com saber operar uma câmera. Se isso já era uma concepção enganosa, agora se torna ainda mais. Os automatismos dos celulares permitiram à muitas pessoas despreocupadas com técnicas produzirem conteúdos extremamente relevantes. Esses não são fotógrafos menores; ao contrário, são fotógrafos conectados com a essência da fotografia: o assunto.

 

Foto do topo: ythedarkdays

Minimalismo fotográfico

Há alguns anos, cheguei a ter sete câmeras fotográficas em casa. A maior parte era de máquinas analógicas: reflex, telemétricas e compactas. Uma delas era médio formato, as outras usavam filme 35mm. As digitais eram duas, sendo uma compacta avançada e uma reflex. Havia também uma boa quantidade de lentes e adaptadores, que me permitiam usar as lentes das câmeras analógicas na reflex digital.

Todo esse equipamento “pedia” uma série de acessórios, que também fui adquirindo ao longo dos anos. Tripé, dois flashes, um scanner para os negativos, mesa de luz, impressora, computador de mesa, HD externo, fotômetro, filmes, filtros, tanque para revelação, químicos. A maior parte desse material, novo e usado, foi comprada de várias fontes —desde lojas de rua até o eBay, passando por lojas em viagens para o exterior — num período de três a quatro anos, em que minha paixão pela fotografia teve seu pico.

A relação com a fotografia não parava nos equipamentos. Tive diversos livros, que comprei ou que ganhei de presente de pessoas que sabiam do meu interesse pelo assunto. Em um determinado momento, entre câmeras, lentes, acessórios e livros, toda a minha “coleção” de materiais fotográficos era relativamente grande.

Eram coisas que eu de fato usava. Nunca comprei nada que não fosse ser útil. Nos momentos de maior atividade, cheguei a fotografar com câmeras utilizando todo o equipamento, como o fotômetro externo, revelar filmes preto e branco em casa, escanear e tratar. Os livros que comprei e ganhei foram lidos, relidos e consultados. Sinto que aproveitei todo esse material.

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Com o tempo, no entanto, minha fotografia foi ficando mais simples. Não tinha o mesmo entusiasmo para carregar muita coisa, para fazer uma fotografia muito complicada, para revelar meus próprios filmes. Precebi que a maior parte das fotografias que eu fazia poderiam ser tiradas com qualquer câmera. Pouco a pouco, fui me desfazendo do equipamento. Doei os livros, o computador de mesa, algumas câmeras. Emprestei outras sem esperar que fossem devolvidas. Os flashes quebraram e não me preocupei em consertá-los ou substitui-los.

Em 2012 comprei minha última câmera: uma compacta avançada, usada, que cabia no bolso. Em diversas viagens e momentos significativos, levei apenas ela. Foi mais do que suficiente. Hoje tenho apenas essa câmera digital e mais uma de filme, com uma lente. Às vezes, quando vejo os equipamentos mais novos, fico um pouco tentado. Ao perceber isso, procuro valorizar aquilo que já tenho. Reconheço, aí, que essas duas câmeras que uso já são suficientes, se não forem excessivas. E, se restar algum impulso de comprar algo novo, é só lembrar do peso que é carregar uma câmera grande, preocupar-me de sair na rua com um equipamento caro, fora tudo aquilo que posso fazer com o dinheiro que seria gasto para comprar e manter um equipamento novo, que o resto de vontade logo desaparece. E fico em paz.

No ano passado, fui a Brasília para uma oficina de fotografia contemplativa no f/508. No dia da saída fotográfica, estava só com o celular. Foi mais do que suficiente para acompanhar a proposta do curso. Não sei se a fotografia que faço se tornou um reflexo do equipamento que levo ou o contrário. Talvez seja algo anterior: uma valorização do simples e do aqui e agora que precede ambos.

Câmeras e fogões

Na última sexta, eu e minha amiga Paula Porto andávamos pelo centro de São Paulo, na região da Rua Sete de Abril, famosa por reunir diversas lojas de material fotográfico. Estávamos indo até o laboratório do sr. Ogava, na Rua Barão de Itapetininga, para deixar alguns rolos de Tri-X para revelar. Paula tem um blog de culinária bastante conceituado, o …de Salto Alto na Cozinha. As fotos dos pratos que ela apresenta no site são feitas pelo seu marido, Ricardo. Passando pelas lojas cheias de câmeras e lentes nas vitrines, começamos a conversar sobre equipamentos, fotográficos e culinários.

Ela me contou que tinha alguns amigos que também gostavam de fotografia. Ela explicou que o padrão que eles apresentavam era de aquisição de uma grande quantidade de material: lentes, mochilas, acessórios. Fazendo uma analogia com a culinária, ela falou, em tom divertido, sobre pessoas que tinham fogões e equipamentos de cozinha caros e sofisticados, mas que apenas os utilizavam para receitas extremamente simples, para as quais não havia necessidade de tanto. Constatamos que existe, muitas vezes, um fetiche pela manipulação da ferramenta como mais importante do que a criação de fato. Ou seja, há pessoas que gostam de usar a câmera, mais do que de fazer fotos; ou de usar o fogão, mais do que de cozinhar.

Sergey Podatelev
Sergey Podatelev

Enquanto esperávamos o elevador no antigo prédio a poucos metros do Teatro Municipal, perguntei se as pessoas sobre quem ela falou eram felizes fazendo isso. Ela disse que sim, que eles se divertiam muito tanto com suas câmeras como na cozinha. Respondi, então, que achava que não havia mal nenhum nisso e que, na verdade, era isso que importava. No fundo, o que todos queremos é fazer aquilo que nos faz bem, e me parece fora de lugar criticar alguém porque seu prazer está na operação dos equipamentos e não na criação de fotografias — ou pratos.

Chegamos ao laboratório. A sala em que o Ogava nos recebe estava no seu habitual caos, repleta de pacotes amarelos de filmes revelados, fotografias ampliadas, algumas câmeras antigas jogadas em um canto e a antiga TV de tubo sobre um móvel. A janela estreita e longa no fundo da sala, condizente com o alto pé direito, permitia a entrada da luz opaca, típica de um dia chuvoso de outubro. Deixei dois rolos de filme para revelação e pedi que ele ampliasse, em 30×40 cm, o retrato de um casal de amigos que se juntará em breve e que eu havia feito alguns meses antes: será uma espécie de presente de casamento. Conversei com ele sobre como fazer o corte para acertar o quadro na proporção do papel e fomos embora.

We Make Noise !
We Make Noise !

Embora eu já tenha sido muito crítico em relação a questão da supervalorização do equipamento — e provavelmente alguns dos textos mais antigos do Câmara Obscura refletem isso — hoje não me sinto à vontade para criticar a forma como as pessoas escolhem usar o seu tempo. Há uma espécie de paradigma, entre fotógrafos amadores-avançados e profissionais, que diz que as pessoas não podem simplesmente usar uma câmera e fotografar os momentos relevantes da sua vida. De acordo com essa concepção, elas têm que estudar fotografia, têm que saber como usar a câmera, têm que fazer cursos, têm que ler livros, têm que saber compor, e por aí vai. Mas, pensando a fundo, não consigo imaginar nenhuma boa razão para todas essas obrigações. A impressão que dá é que todo mundo é obrigado a produzir obras-primas o tempo todo. Essa concepção não é apenas ditatorial — é também impossível.

Não deixo de pensar, no entanto, que para aqueles que de fato querem fazer fotos significativas — por opção, não imposição — que além de todo o estudo que realmente é necessário, é preciso utilizar o equipamento com racionalidade. Uma boa câmera compacta, ou uma reflex digital com a lente do kit (em geral 18-55mm), ou uma reflex analógica com uma lente de 50mm são mais do que suficientes para um fotógrafo inspirado, com boas ideias e disposição para procurar as melhores imagens. Até porque a “limitação” do equipamento ajuda no desenvolvimento de outras habilidades que são essenciais para a boa fotografia e não estão na operação da câmera (escolha do assunto, leitura da luz, ângulo, momento). Isto posto, posso até arriscar uma conclusão: se o seu prazer está na operação da câmera — e não há nada de errado nisso — você provavelmente está certo em ter o máximo de equipamento possível. No entanto, se a sua busca é por uma fotografia significativa no seu conteúdo, talvez seja uma boa ideia reduzir o equipamento ao mínimo possível.