O Tao da fotografia

O Chuang-tzu diferencia dois tipos de compreensão, a grande e a pequena: “A grande compreensão é ampla e sem pressa; a pequena compreensão é estreita e ocupada.” Embora a capacidade de discriminar seja benéfica para a sobrevivência, ela pode facilmente se tornar um reflexo mental autônomo para responder a todas as situações. Quando isso acontece, a grande compreensão é perdida: abertura, receptividade e uma percepção integral são reprimidas. Nós poderíamos supor, então, que para contrapor a pequena compreensão, deveríamos buscar a grande compreensão. Mas o conselho do Chuang-tzu não é simplesmente jogar fora a pequena compreensão: o sábio é aquele que harmoniza a pequena e a grande compreensão.

Um paralelo entre os dois tipos de compreensão descritos no Chuang-tzu pode ser encontrado na literatura sobre fotografia. De maneira geral, a pequena compreensão na operação da câmera representa o estado mental que se concentra em técnicas, estabelece objetivos, aplica regras fotográficas, arranja uma cena para atingir um determinado resultado e tenta controlar totalmente o assunto. A grande compreensão, por outro lado, corresponde à capacidade do fotógrafo em responder de forma integral e espontânea a uma cena sem interferir abertamente com o assunto. Em última análise, o fotógrafo liberto, assim como o sábio no Chuang-tzu, está acompanhado das duas formas de compreensão: desenvolver a capacidade artística requer primeiro conhecer totalmente a técnica e depois transcendê-la — ver, sentir e responder integralmente a uma cena fotográfica. Neste último estágio, as habilidades fotográficas adquiridas inicialmente estão agora integradas à capacidade do fotógrafo de responder espontaneamente a uma situação.

Philippe L. Gross e S. I. Shapiro, The Tao of Photography, 2001

 

Jose Murillo on Unsplash

A maior parte dos livros, manuais e cursos de fotografia — com algumas honrosas exceções — vão tratar da operação da câmera, leitura da luz, composição, arranjos de iluminação etc. Aprende-se, pouco a pouco, a leitura e construção da linguagem fotográfica, bem como a utilização dos equipamentos que realizam essa escrita imagética.

O que não está na maior parte dos cursos é a postura do fotógrafo frente ao mundo. Como nos relacionamentos com a cena fotografada é algo não dito. Talvez porque, na nossa cultura, se fale muito pouco sobre isso. Aprendemos muito sobre o como fazer, mas pouco sobre o como ser ou o porquê.

Confundimos, então, aprender a fotografar com aprender a usar uma câmera no modo manual, ou como ajeitar as luzes no estúdio. Claro, todo esse conhecimento é necessário, mas é apenas uma parte — possivelmente a mais simples e fácil — do que é fotografar. Quando dominamos totalmente esse tipo de conhecimento, somos capazes de fazer fotografias belíssimas de nada. Temos a luz certa, a composição certa, o enquadramento certo, mas a cena é vazia, como uma peça publicitária: uma estética impecável para um assunto supérfluo.

Ir além disso é o caminho mais árduo e incerto. Uma vez que não existem manuais e quaisquer direcionamentos sobre o assunto nunca serão regras (no máximo sugestões), o movimento na direção de um outro tipo de conhecimento deve ser descoberto por conta própria. Esse desenvolvimento é essencialmente interno e envolve notar nossos condicionamentos, medos, desconfortos, desejos e sentidos.

Nesse estado, a fotografia não obedece mais regras — embora possa usá-las — e não é feita para ninguém. Ela apenas expressa a relação do fotógrafo com o mundo. Quando essa relação é vivida integralmente, todo o conhecimento fotográfico se torna útil: ele é necessário para que a fotografia seja feita naturalmente, sem que a preocupação com o método seja um obstáculo. Todo o aprendizado básico que se teve, então, chega na sua utilidade máxima: ser completamente esquecido.

Não apague suas fotos (ou, pelo menos, espere um pouco)

Geralmente, quando fotografo usando filme preto e branco, peço apenas a revelação dos negativos, os quais escaneio em casa. Nesta última semana, no entanto, queria fazer algumas ampliações e queria acelerar o processo. Pedi, então, que o laboratorista fizesse folhas de contato para cada um dos filmes revelados. Pois bem, recebi os filmes e vasculhei rapidamente os contatos para escolher as ampliações. Para quem não sabe, no processo manual, os contatos são feitos colocando-se as tiras de negativos sobre uma folha de papel fotográfico, mais ou menos do tamanho de um A4. Ilumina-se a folha, que depois é revelada. No processo automático dos laboratórios comuns os negativos são escaneados e o “contato” é montado pelo software da máquina. Depois, no entanto, olhei as folhas com mais calma, o que me levou a algumas reflexões.

Primeiro, a constatação, que não tem nenhuma novidade, de como o filme é inexoravelmente cruel com os nossos erros. O contato mostra todas as fotos ml expostas, mal concebidas ou que simplesmente deram errado, por qualquer motivo. E, uma vez que na fotografia analógica não há o botão delete, o erro fica marcado para sempre. Mas há um aspecto muito interessante na observação de uma folha de contato, que é poder observar o seu raciocínio fotográfico – do qual os erros fazem parte – de forma completa. As tentativas, as alternativas, aquilo em que insistimos ou o que simplesmente desistimos de fazer. Como na fotografia, especialmente entre os iniciantes, há um mito de que você precisa acertar sempre, olhar para o processo que leva aos acertos pode ser útil para o aprendizado.

E aí, há muita controvérsia em relação ao que é melhor para se aprender, começar a fotografar com filme ou digital. Muitas escolas de fotografia ainda pedem que os alunos usem câmeras mecânicas. A contra-argumentação dos que defendem o aprendizado digital afirma, com propriedade, que ver o resultado imediato permite entender muito mais rapidamente o efeito das técnicas. E, de fato, isso parece difícil de rebater quando se fala do aprendizado técnico, mas quando se pensa no processo fotográfico mais amplo, envolvendo inclusive questões de estilo, a fotografia digital permite um hábito que pode ser prejudicial, apesar de parecer inocente: nós tendemos a apagar imediatamente as fotos que não ficam boas, perdendo, assim, a chance de vislumbrar o nosso raciocínio fotográfico por inteiro e dificultando o entendimento do processo. É claro que, caso se concorde com essa ideia, a questão é facilmente resolvível simplesmente não apagando as fotos.


Gustavo Gomes

Há uma tendência em se achar que o erro é uma falha no processo de aprendizado. Bem, isso é um erro. Os erros são tão ou mais importantes do que os acertos. É importante variar as formas de se tentar chegar em um determinado resultado. Isso leva à criatividade, à flexibilidade e, inevitavelmente os erros farão parte desse tipo de conduta. O indivíduo que não erra é provavelmente muito menos criativo e flexível do que aquele que erra.

Quando falo em aprendizado, não me refiro apenas ao aprendizado que leva a saber fotografar de forma tecnicamente correta, coisa que conseguimos com poucas semanas de treino. Aprendemos o tempo todo, a vida toda, em qualquer coisa que fazemos. Quando estamos tentando desenvolver um estilo pessoal, ou engajados num ensaio fotográfico, estamos aprendendo, acertando e errando o tempo todo. Isso nunca acaba. E me passou pela cabeça que talvez seja interessante ter o hábito de olhar para nossas folhas de contato. Mesmo que se fotografe com câmeras digitais, significa simplesmente olhar a série toda na tela do computador antes de descartar as que não interessa. Usar os erros para estudo pode permitir uma melhor compreensão do nosso raciocínio fotográfico, das nossas intenções e tentativas. Ficar com as fotos ruins na câmera e no computador por alguns instantes antes de mandá-las para a lixeira não nos matará – provavelmente.