Técnica e linguagem: flash

Quando se aprende a fotografar, um dos aspectos mais relevantes é como explorar a luz. Nos cursos e livros de fotografia, incentiva-se o uso da luz natural ou de sofisticados esquemas de iluminação para que as sombras fiquem suaves, as formas volumosas. Foge-se do flash direto a qualquer custo. Flash direto é o flash sem qualquer rebatimento ou suavizador da luz, disparado direto da câmera (ou de um aparelho de flash externo) para o assunto fotografado. A luz resultante é dura, fria, gerando sombras marcadas e formas chapadas.

Há dois motivos principais pelos quais os profissionais ou amadores avançados fogem do flash direto: primeiro porque associam essa técnica aos amadores “comuns”, ou os fotógrafos de fim de semana, cujas câmeras automáticas sempre utilizam esse recurso quando há escassez de luz. Criar iluminações mais sofisticadas é uma espécie de atestado de conhecimento fotográfico. Além disso, o flash direto denuncia a captura fotográfica, o funcionamento da câmera e a sua limitação: uma vez que não é capaz de captar a cena apenas com a luz existente, é preciso lançar mão de um recurso artificial, quebrando a ilusão da fotografia como cópia da realidade.

No entanto, a luz do flash não rebatido é apenas mais um tipo de luz, como qualquer outra. Ela descreve a cena de uma maneira particular que, por si só, não é melhor ou pior do que outras maneiras, até que utilizemos algum critério subjetivo. O uso do flash direto, pelo seu caráter de desconstrução da ilusão, também é algo subversivo, proporcionando uma forma interessante de fotografar de forma mais autoral.

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Fotografia é morte

A maioria absoluta das fotografias tem como intenção o registro de um determinado evento. Ainda que feita com um viés estetizante, buscando embelezar um determinado acontecimento, as fotografias feitas quotidianamente se pautam na magia fotográfica de eternizar, congelar, capturar, solidificar, que ainda está presente no imaginário da maior parte das pessoas. O “isto-foi” de Barthes, tão criticado, é ainda a pedra angular da fotografia na concepção geral.

Se tomarmos essa visão como premissa, podemos inferir que o desejo da pessoa que fotografa é, de fato, tornar um momento eterno. O fotógrafo que lança mão de sua câmera numa festa de aniversário, numa viagem ou numa reunião com os amigos deseja que aquele momento dure para sempre; e é a máquina fotográfica que lhe possibilitará isso, através de seu poder mágico.

Infelizmente, o congelamento do tempo oferecido pela câmera tem um inconveniente: ele só se concretiza numa folha de papel ou numa tela. Após o flash, o tempo real continua andando. Não importa o quanto se fotografa, quanto tempo o obturador fica aberto, quantas fotos são feitas em sequência: o relógio não para de andar.


Christian “Kit” Paul

E aí, as pessoas olham para as fotos, que podem ter sido feitas no dia, no ano ou no século anterior. Elas dizem: “eu era feliz”, “eu era jovem”, “eu era bonito”, o que significa, também que: “hoje, eu sou triste”, “hoje, estou velho”, “hoje, sou feio” – ao menos em comparação com o personagem da foto. A fotografia, o momento congelado no papel, torna-se, então, um lembrete constante de que o tempo passou e não voltará. Não é à toa que muitos autores associam a fotografia à morte.

Dizem que a fotografia imortaliza. Verdade. Mas o que ela imortaliza é aquilo que aparece no papel ou na tela. O que está fora do papel, o nosso mundo real, é mortalizado a cada disparo. A fotografia mata tudo aquilo em que toca, ao congelar um momento que já não é mais o mesmo logo no instante seguinte. Sempre seremos mais velhos do que aquele que aparece nas nossas próprias fotos.

Os álbuns guardam as imagens de um dia, um mês ou uma vida, mas não contêm em si as sensações que elas provocam: estas estão em nós e continuaram mudando junto com o mundo que permaneceu estático na foto. A fotografia escancara o nosso desejo de parar o tempo, de deter o avanço natural das coisas e, traiçoeira, torna mais evidente a nossa incapacidade de fazê-lo. Como se não bastasse, ainda ri, ao nos fazer suspirar frente a algo que não volta mais.

Sobre autoria

Temos uma tendência a venerar os inventores e seus esforços individuais. Sabemos quem inventou o avião, o telefone, o rádio, a fotografia. Ao pensar nessas pessoas, temos a impressão de que elas criaram, do nada, objetos revolucionários. Olhando de perto, no entanto, podemos perceber que não é bem assim. Por que foram os irmãos Wright e não Leonardo da Vinci que inventou o avião? Entre outros motivos, porque só no início do século passado havia tecnologia suficiente para possibilitar a construção de um aparelho que voasse, ainda que da Vinci dominasse os conceitos necessários para idealizar tal objeto. Quem possibilitou a existência dessa tecnologia? Diversos outros anônimos que aprimoraram técnicas e materiais, por exemplo.

A invenção, assim, não é obra de apenas uma ou duas pessoas. Qualquer tipo de invento é uma somatória de esforços que ocorre durante anos, décadas e, não raro, até séculos. Quando dizemos alguém inventou alguma coisa, estamos reconhecendo apenas aquele que realizou a última etapa do processo, sem olhar para todo o caminho percorrido.


Stephan Olsen

Se formos a fundo nessa concepção, veremos que qualquer tipo de criação humana cai no mesmo tipo de funcionamento. Mesmo as criações intelectuais consideradas artísticas. Quando escrevo um texto, produzo algo impregnado de todas as referências que já tive: da forma dos meus pais falarem, de todos os livros que li, das minhas aulas de gramática e redação, do que leio diariamente na internet, dos modelos que tive ao longo de toda a minha vida. Mesmo os assuntos sobre os quais me interesso têm a ver com aquilo que me foi apresentado por outras pessoas; não nasci com nada disso programado. Tudo o que fazemos é resultado de milhões de condições prévias que moldam o comportamento atual. Por mais que queiramos nos ver como seres únicos e especiais, não passamos do amálgama dos genes e ideias que vieram de outras pessoas.

Na fotografia não poderia ser diferente. Temos fotógrafos que admiramos, fotografias que nos inspiram, técnicas que aprendemos. Tudo isso foi criado por outras pessoas. E o que elas criaram foi influenciado por outras pessoas antes delas. Não há uma criação individual e totalmente autônoma, a partir do zero. Tomamos emprestado muito mais do que admitimos, ou sequer percebemos. Copiamos uns aos outros, querendo ou não.


José Pedro Costa

Qual é, então, o mérito do autor? Se ele apenas reorganiza ideias e conceitos pré-existentes, geralmente adicionando pouco ao que já foi construído, pode ele querer dominar aquilo que produziu? Seria o mesmo que eu tomar um muro em construção, adicionar um tijolo e dizer que o muro é meu. Pode-se argumentar que quem escreve, cria ou produz arte coloca seu tempo e esforço naquela produção. É uma posição válida e acho que isso justifica a existência do crédito (fui eu quem colocou este tijolo). Mas não acho que isso é suficiente para justificar a posse sobre todo o muro, ou seja, o conteúdo.

Uma das formas que encontrei para lidar com essa questão foi liberar todos os meus textos e fotos sob Creative Commons. Mas mesmo essa minha atitude pode ser analisada em função das influências que tive: sendo um acadêmico que desenvolve atividades em universidade pública, é de praxe entender que o que produzo deve voltar, de forma irrestrita, para quem o financiou. Da mesma forma, como entendo que tudo o que escrevo sobre fotografia não é mais do que uma reorganização de outras ideias, não vejo sentido em querer assumir, sobre os artigos, uma ideia de posse. O mesmo vale para a minha fotografia. Por mais que tenha uma relação de afeição com algumas de minhas produções, nunca consegui senti-las como absolutamente minhas. Quando olho para minhas fotos, vejo conceitos elaborados por outra pessoa; técnicas aprendidas com outras pessoas; outros fotógrafos tomados como modelo. Tomar posse da minha própria produção como algo autônomo e independente seria injusto com todos eles.

Sendo assim, talvez seja mais útil, para o autor, em vez de vangloriar seus feitos individuais e buscar a originalidade, entender melhor quais são as suas referências e influências. Se enxergarmos a nós mesmos – assim como nossos trabalhos – como resultado de milhões de condições prévias, não há outro caminho para nos entendermos e àquilo que fazemos a não ser identificar essas condições. E aí, pode ser que o sentimento de posse com o que produzimos caia por terra e faça mais sentido devolvermos livremente para os outros tudo aquilo que inevitavelmente pegamos.

Keiichi Tahara: um artista da luz

Keiichi Tahara é um artista japonês que trabalha com a luz. Embora tenha iniciado sua carreira trabalhando com fotografia e como operador de câmera de vídeo, sua trajetória deixa claro que ter a luz como objeto de criação vai muito além de registrá-la. É dele uma das fotografias que mais me impressionou na exposição dos 20 anos da NAFOTO, em cartaz na Caixa Cultural da Praça da Sé, em São Paulo, até o dia 3 de julho.

O início da sua carreira, nos anos 70, revela uma relação de intriga com a luz, primeiro nos prédios de Paris, cidade para a qual acabara de se mudar, em seguida nas janelas e, por fim, nos retratos. A imprecisão das suas paisagens e ambientes internos, sempre num preto e branco de base escura, deixa claro que sua protagonista é a iluminação, muitas vezes escassa e esparsa, que se esgueira através das sombras.

Após uma série feita em Polaroid, Tahara passa a trabalhar, nas últimas décadas, com esculturas de luz e instalações, apresentadas em diversas cidades da França e do Japão. No entanto, embora suas obras físicas tenham atingido uma outra dimensão artística, suas fotos ainda são contundentes, ao mostrar um mundo paralelo feito de luz e sombra.

Para conhecer o trabalho do artista, acesse o site oficial: Keiichi Tahara.

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Anúncios ambulantes

No post de hoje, abro uma exceção e, em vez de publicar um texto próprio, posto a tradução, feita por mim, de um post do blog mnmlist.com, de Leo Babauta. O artigo fala de consumo e da forma como lidamos com as marcas na nossa sociedade. Esse é um tema muito apropriado para alguns grupos de fotógrafos e suas comunidades, que tendem a valorizar mais o equipamento do que a criatividade. Que adoram entrar numa loja de câmeras, mas raramente vão a uma exposição de arte. Que adoram ostentar as marcas que defendem, mas cuja fotografia diz muito pouco.

Anúncios Ambulantes

O minimalismo é uma contrapartida à tendência de transformar pessoas em puros consumidores, em commodities, em um mecanismo de mercado.

Perdemos a noção da simples verdade de que não precisamos de nenhum desses produtos que os marqueteiros e publicitários nos empurram. Continue lendo “Anúncios ambulantes”

Desconstrução da ilusão fotográfica

A fotografia é uma construção humana, uma forma artificial de produzir representações através de um aparelho. Através da programação desse aparelho, são determinadas as formas como a luz refletida por objetos tridimensionais é descrita num plano retangular. Por conta de questões culturais e históricas, a fotografia assumiu, na nossa sociedade, o papel de atestado da verdade, de que algo houve – o “isto foi” de Barthes. Alguns usos da fotografia dependem muito desse mito, como o jornalismo e a publicidade. Entretanto, um exame mais próximo do processo de construção de uma foto – o desvendamento da caixa preta – mostra que essa concepção é um grande engodo.

Esse exame mais próximo foi a proposta do workshop Fotografia: Desconstrução, Realidade, Interpretação, realizado durante o último fim de semana no Espaço de Fotografia F/508, em Brasília. A base teórica do curso foi construída a partir de três obras: Filosofia da Caixa Preta, de Vilém Flusser, A Ilusão Especular, de Arlindo Machado (PDF para download, 90MB) e O Universo das Imagens Técnicas, também de Flusser. Sugeriu-se, então, que os participantes produzissem imagens que denunciassem o processo de funcionamento da câmera: movimento, desfoques, cortes, sobreposições e distorções. O objetivo era o impedimento da leitura automática da foto: dessa forma, o observador não pode olhar direto para a cena, ignorando a existência de um aparelho em funcionamento e um autor por trás dele.

Participaram do workshop Adriana Camilo, Antônio Nepomuceno, Edmílson Pinto, Bete Coutinho, Fred Cintra, Jean Peixoto, José Renato da Silva, Júlia Salustiano, Marco Antônio Gonçalves, Rafael Dourado e Vania Almeida. O grupo pôde, na saída fotográfica realizada na Vila Planalto, exercitar a desconstrução através do programa das câmeras ou criando formas de subverter o funcionamento dos equipamentos, produzindo resultados iniciais que podem servir de subsídio para novas linhas de pesquisa pessoal. Uma vez que se amplia a forma de fotografar, incorporando métodos distintos, cria-se um repertório mais diversificado que fortalece a representação de intenções, emoções e conceitos através da arte fotográfica. Além disso, ao compreender os conceitos presentes na construção da imagem fotográfica, aprimora-se também na produção da fotografia convencional.

Abaixo, segue uma galeria com os trabalhos dos participantes. Fred Cintra foi além da fotografia estática e criou um vídeo com a produção resultante do workshop.

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Todas as fotos têm direitos de reprodução reservados a seus respectivos autores.

A outra história da evolução das câmeras

A fotografia revolucionou a sociedade desde o momento em que foi inventada. Ao possibilitar o registro estático de cenas reais, permitiu a todos reter memórias de lugares, pessoas e eventos. A invenção da câmera tornou viável a realização dessa tarefa quase mágica que, antes disso, ficava apenas no imaginário. Vejamos como esse instrumento evoluiu, desde sua invenção até hoje, com destaque para os avanços tecnológicos envolvidos. Continue lendo “A outra história da evolução das câmeras”

Fotografia antisséptica

Enquanto navegava pelo blog El patio del Diablo, indicado pelo meu amigo Daniel Cobucci, certa inquietação em relação à fotografia ia se formando, conforme se passavam as páginas dessa antologia de grandes fotógrafos. Foto após foto, percebia que havia ali uma certa atmosfera comum, independentemente dos assuntos e estilos diversificados de cada autor referenciado. A maior parte dos trabalhos apresentados situa-se temporalmente em meados do século passado. Será essa atmosfera que permeava os trabalhos uma característica existente na luz do passado? Eram os estilos na verdade homogêneos, apesar de parecerem distintos?

Busquei uma referência atual no site do YPU. Lá encontra-se a mesma força nas imagens, a abordagem semelhante que dá ao banal uma fúria estética capaz de transformar a percepção que se tem do mundo. Mas ainda falta a tal atmosfera, a incerteza das fotos antigas. Detesto responder essas questões tão abertas, mas a diferença entre o velho e o novo é tão gritante que uma explicação se explicita.

Surge Flusser alertando, incessantemente, que o programa está embutido no aparelho. Operamos o aparelho dentro de uma gama limitada de possibilidades que já vêm pré-estabelecidas. E qual a grande diferença entre os aparelhos do século passado e os desse. Com relutância, a resposta se deixa admitir: o filme.

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A fotografia com filme é meio suja, mais incerta, menos corrigível… Talvez sejam esses elementos que criam toda a atmosfera que se vê nas imagens antigas. Há certa crueza nas fotos, grãos aparentes, cores irreais (mas sedutoras). Fotografias analógicas têm textura, enquanto as digitais são lisas.

Uma vez que o programa está embutido no aparelho, podemos apenas escolher entre as possibilidades que nos são oferecidas. Entretanto, o rumo adotado pela indústria, independentemente de marca ou modelo de câmera, é apenas um: o da antissepsia. Antisséptico “se refere se refere a tudo o que for utilizado no sentido de degradar ou inibir a proliferação de micro-organismos” (Wikipedia). Na fotografia, esses micro-organismos são os grãos, a textura. A fotografia digital tem horror a isso. O objetivo dos engenheiros é projetar câmeras que gerem imagens cada vez mais limpas, lisas, livres de quaisquer irregularidades. Objetiva-se imagens cada vez mais nítidas e livres de imperfeições. O vilão da fotografia digital, o ruído, característico do ISO alto, é desagradável, já que é uma interferência na imagem, enquanto o grão do filme, mesmo que aparente, é o constituinte da imagem formada pela câmera.

A indústria, então, propões uma direção única para os equipamentos fotográficos. Relaciona-se qualidade com uma pretensa reprodução “fiel” da realidade, sem interferências, criando uma ilusão cada vez mais perfeita, em que se oculta cada vez mais sua criação dentro da caixa-preta que é o equipamento. Uma tendência que segue muito bem o paradigma da fotografia publicitária, em que a antissepsia é fundamental. Mas, espere um pouco, as pessoas não querem fazer propaganda com suas câmeras e fotografias. Ou querem?

As 20 questões irrespondíveis sobre fotografia

Fotografia é arte?

O que torna uma foto boa?

A fotografia representa a realidade?

Fotografia de uma obra de arte é arte?

A fotografia diz a verdade?

Existe uma maneira correta de se fotografar?

Uma fotografia vale mais do que mil palavras?

Fotos devem ser nítidas?

A fotografia atesta a existência de um evento?

Fotografias podem ser melhoradas? Continue lendo “As 20 questões irrespondíveis sobre fotografia”

Workshop “Fotografia: desconstrução, realidade e interpretação”

Fotografia: desconstrução, realidade e interpretação
Workshop com Rodrigo F. Pereira

De 20 a 22 de maio
Período de matrículas: até 04 de maio

Sexta-feira: das 19h às 22h
Sábado: das 9h às 12h; e das 14h às 17h
Domingo: das 10h às 13h

Duração: 3 dias
Carga horária: 12 h/aula

Professor: Rodrigo F. Pereira

Rodrigo Fernando Pereira é formado em psicologia, com mestrado e doutorado na mesma área pela Universidade de São Paulo. Fotógrafo experimental, dedica-se ao estudo da fotografia enquanto disciplina teórica e mantém o site Câmara Obscura. Organizou duas publicações em conjunto com o Fotoclube f/508: Sentido Vago e Transformações. Continue lendo “Workshop “Fotografia: desconstrução, realidade e interpretação””