Mamiya C330

A Mamiya C330 é uma câmera de médio formato, no estilo TLR (twin lens reflex), na qual a lente superior serve para composição, ao projetar a imagem no despolido que é visto pela parte de cima da câmera e a lente inferior é a que efetivamente faz a foto. As TLRs mais famosas eram as Rolleiflex, que até hoje têm seus usuários fiéis. As TLRs têm duas características diferenciais que as tornam interessantes: primeiro, o fato de serem seguradas na altura do peito ou da barriga — assim como algumas outras médio formato, como as Hasselbads — tornam o auto fotográfico algo menos agressivo; segundo, o formato quadrado, com fotogramas de 6 x 6 cm. Cada rolo de filme 120 rende 12 fotos.

A C330 é uma câmera pesada, com cerca de 1,7kg. Seu atributo principal é, ao contrário da maioria das TLRs, contar com objetivas intercambiáveis. Ela tem correção de paralaxe e o foco se dá estendendo a parte frontal da câmera, revelando um fole nas laterais. Por conta disso, dependendo da distância do foco, é necessário compensar a exposição, o que é indicado por uma agulha no visor superior. Como a câmera não tem fotômetro, ela necessita de um externo — ou uma tabela de exposição. A vantagem disso é que ela não usa nenhuma bateria, sendo a sua operação totalmente mecânica. Uma vez que o seu espelho é fixo, sua operação também é mais silenciosa, quando comparada a uma SLR. A C330 data dos anos 70 do século passado. Ela chegou a ser fabricada no Brasil, na Zona Franca de Manaus.

 

Usar uma TRL torna fotografar uma experiência diferente. As pessoas perguntam: “isso funciona?”. Ficam admiradas de ver que ela gera uma imagem com alta definição, especialmente usando cromo, por conta da área do negativo, que é 4 vezes maior do que um fotograma de 35mm. A C330 é muito pesada para uma caminhada longa com ela no pescoço, mas em situações mais estáticas seu uso vale a pena. A profundidade de campo curta permite desfoques interessantes, mas por outro lado requer cuidado na focagem, uma vez que um elemento aparentemente em foto pode na verdade estar ligeiramente desfocado. Há uma lente no capuchão que permite ampliar a — já grande — imagem projetada no despolido.

Mais informações (em inglês):
http://en.wikipedia.org/wiki/Mamiya_C330
http://bipmistry.wordpress.com/mamiya-c330/
http://www.lumieresenboite.com/collection2.php?l=2&c=Mamiya_C330

Manual online (em inglês):
http://www.propellerheads.com/technical/c330s/

Razão e emoção na fotografia

Vivemos em uma cultura que valoriza a razão, o pensamento, a ordem, em detrimento da emoção, da intuição e tem dificuldades em lidar com a natureza caótica das coisas. Quando nos envolvemos com uma atividade, como a fotografia, tentamos organizá-la, mentalmente, utilizando os recursos racionais que empregamos diariamente para lidar com o mundo. Isso nos leva a priorizar a forma, os números, as regras e o método.

Consequentemente, nos vemos apegados aos aspectos técnicos das imagens, às especificações das câmeras, aos números, ou seja, a tudo que possa ser organizado e quantificado. Queremos saber quantos megapixels tem o sensor, quão nítida é uma lente, quantas fotos são feitas numa viagem ou num evento, quanto tempo dura uma bateria. Continue lendo “Razão e emoção na fotografia”

Dez maneiras de fugir dos clichês

Há milhões de ótimas fotos na Internet. Fotos surpreendentes, bem trabalhadas, expressivas, contundentes. Basta procurar um pouco em qualquer galeria online. É admirável que, mesmo com tantas fotografias já feitas, ainda assim fotógrafos consigam criar ótimas imagens a cada dia, ou a cada minuto. Ao mesmo tempo em que percebo isso, pergunto-me porque a maior parte das pessoas que fotografam têm dificuldades para sair do lugar comum, para arriscar mais e deixar de usar as velhas fórmulas fotográficas: enquadramentos clássicos, fundos desfocados, nitidez no plano principal, exposição correta etc. Em geral, as fotos mas expressivas não se preocupam com a correção, com o método convencional. Reuno aqui alguns exemplos, descrevendo o que cada uma dessas fotos aponta sobre como fotografar bem, indo além das convenções. Continue lendo “Dez maneiras de fugir dos clichês”

Faça-se a luz

Infelizmente para nós, fotógrafos amadores e profissionais, não somos o Deus do Antigo Testamento e não podemos criar luz a partir das nossas palavras. A luz é o elemento essencial da fotografia, e ainda assim temos que nos render aos seus caprichos, acordando de madrugada para capturá-la na sua calidez matinal, ajustando flashes e rebatedores para que ela atenda à nossa imaginação e a tocando com fotômetros a fim de avaliar o seu humor.

Gostamos de acreditar que nossas fotografias são nossas criações. Entretando, não somos pintores. Não exercemos, sobre o mundo visto pela câmera, o controle que gostaríamos. Quem pinta, de fato, é a luz. A única coisa que podemos fazer é reconhecer suas cores, as curvas que ela faz em torno dos objetos e sua nêmesis — a sombra — ambas sempre presentes, irrenconciliáveis. O que podemos fazer, então, é nos curvar aos seus pincéis naturais, recortar suas criações com a câmera e, humildemente, agradecer. Continue lendo “Faça-se a luz”

Cinco razões para deixar sua câmera em casa

Se você for a um show musical nos dias de hoje, é provável que, entre você e o palco, haja centenas de pequenas telas acesas. São câmeras digitais e telefones celulares, no alto das mãos do público presente na plateia ou na pista, fotografando e filmando cada instante. Tenho um tio que mora há cerca de 20 anos em Portugal. Em visita ao Brasil, foi ao aquário municipal de São Paulo. Ele ficou impressionado em ver como as pessoas pouco olhavam para os peixes; em vez disso passavam de atração a atração com câmeras em punho, apenas fotografando. A hoje é vista através de telas de cristal líquido — e não estamos falando dos filmes e da televisão, e sim daquilo que se passa bem na frente das pessoas.

Qual seria a motivação para esse tipo de comportamento? Pode-se imaginar que as pessoas queiram se agarrar àquele momento único, especial. Fotografar significa, de certa forma, prolongar o momento no tempo. No entanto, que momento é esse que não foi vivido, apenas fotografado? Qual lembrança será evocada através das imagens? Provavelmente há também a influência das redes sociais. Todo mundo precisa mostrar cada momento da vida. Somos controlados não apenas pela fotografia em si, mas também pelo papel da fotografia no nosso meio social virtual, na qual a fotografia é o principal instrumento para mostrar que se esteve em lugares legais, com pessoas legais; em outras palavras, que se é “feliz”.

Gergely Vida
Gergely Vida 

Hoje em dia parece ser uma heresia sair de casa para uma atividade interessante e não levar a câmera junto. Mas podemos pensar em algumas razões para, ao ir a algum evento importante, deixar a máquina fotográfica em casa.

1. Viver o momento
Quando se está fotografando, dificilmente se está vivendo de fato o momento. Se, ao estar num show, num museu ou até mesmo no topo de uma montanha vendo o sol nascer com o vento gelado no rosto, a sua preocupação é com que abertura usar, com o flash carregando ou com o enquadramento, sua cabeça está dentro da máquina. A vida passará num piscar de olhos e você não poderá levar suas fotos com você para se lembrar dela após a morte. A única coisa que existe é o momento presente. Gastar esse momento com a cara enfiada num equipamento eletrônico não parece ser a melhor opção.

2. Respeito
É muito inconveniente assistir a um evento com dezenas de pessoas esticando seus celulares e câmeras na sua frente. Pior ainda, quando são disparados flashes a torto e a direto, mesmo quando se pede para não utilizá-lo. Já vi fotógrafos se vangloriando de conseguirem fotografar com câmeras reflex em teatros em que isso era proibido. Fico imaginando o incômodo causado pelo barulho do espelho e pela movimentação do camarada, extasiado com sua esperteza, ao mesmo tempo em que atrapalha a experiência dos outros. No fim, isso não é esperteza: é simples desrespeito.

3. Boa fotografia
Convenhamos, fotografar um show com um celular a 200 metros do palco não vai render boas fotos. Na verdade, vai render péssimas fotos que apenas contarão contra sua qualidade como fotógrafo. Não é melhor então apenas esquecer a possibilidade de fotografar e aproveitar a música e a companhia?

4. Preocupação
Se por um lado usar equipamentos simples em condições extremas produzirá fotografias ruins, sair com equipamentos caros apenas fará com que o fotógrafo passe o tempo todo preocupado com seu equipamento. Há a chance de roubo, queda, dano. A preocupação com o material fotográfico tornarão bastante difícil ao entusiasta aproveitar o momento e talvez até mesmo tirar boas fotografias. Felizmente esse problema tem uma solução fácil: quando não se tem nada a perder, o medo desaparece.

5. Controle
O fato é que, se deixarmos, a fotografia nos controla. Se estamos preocupados em fotografar, pensamos o tempo todo no ângulo, na luz, nos ajustes, no equipamento, no momento certo. E isso é totalmente incompatível com certas atividades. Já imaginou se, naquela apresentação do seu filho na escola, você, ao contrário de todos os outros pais, não se preocupasse em registrar a qualquer custo cada instante e, em vez disso, estivesse 100% presente apreciando, rindo e aplaudindo? Algo me diz que a lembrança seria muito mais marcante, viva e valiosa do que qualquer fotografia poderia suscitar no futuro.

Doug Geisler
Doug Geisler

Você pode perguntar: “mas então eu não fotografaria nunca?” Claro que essa não é a ideia. O que estou dizendo é que a fotografia não deve ser mais importante do que… aquilo que importa. A fotografia é secundária ao viver. E ela deve ser feita com tanta presença como os momentos que devem ser aproveitados sem que ela atrapalhe. Não tente encaixar a fotografia em tudo o que você faz. Em vez disso, escolha um momento apenas para fotografar. Saia apenas para isso, suba aquela montanha apenas para isso. Esteja totalmente envolvido com o propósito de fotografar, em situações adequadas para isso. O casamento da sua irmã não é essa situação. Separando as coisas, a vida fica melhor — e a fotografia também. Eventualmente, depois de um bom tempo, você conseguirá conciliar as coisas. Vivendo e fotografando, sem que uma coisa atrapalhe a outra. Mas é preciso começar com elas separadas.

É véspera de ano novo e, ao pensar no programa de logo mais, fico tentado: “pessoas interessantes, lugar legal, queima de fogos… renderia boas fotos”. Mas então me lembro que quero ouvir o que as pessoas têm a dizer, rir junto, ver a queima de fogos com os próprios olhos, não através de um visor, preocupando-me com qual ajuste usar para congelar o momento. O máximo que isso vai me custar é não receber um elogio em alguma rede social por uma foto dos fogos explodindo — igual a milhares de outras, diga-se de passagem. Ou seja, um preço muito baixo frente ao que se ganha. A câmera vai ficar em casa.

Fotografia, grupos e o narcisismo das pequenas diferenças

Há um conceito nas obras de Freud — criador da psicanálise — chamado de “narcisismo das pequenas diferenças”. Para Freud, há sempre uma ferida narcísica quando se reconhece, no outro, alguma distinção: uma discordância sobre um ponto de vista, uma maneira diferente de fazer as coisas, por exemplo. Ou seja, nos sentimos pessoalmente afetados quando nos percebemos diferentes do outro. Ao nos sentirmos mal com nós mesmos, precisamos de confirmações: o errado sou eu o outro? Melhor que seja o outro. Dessa forma, aquela pequena dissonância torna-se mais relevante do que todos os pontos em comum e o outro, embora muito semelhante, é tido como muito distinto.

Esse processo é essencial na formação de grupos. Para nos reafirmarmos frente ao diferente, associamo-nos a pessoas com quem nos identificamos. Em contrapartida, elegemos um grupo de pessoas parecidas, mas com pequenas diferenças, a quem nos opomos. Dentro do grupo, as relações são relativamente fraternais e ausentes de críticas; o ódio e a agressividade são dirigidos para fora do grupo, para esse alvo ligeiramente diferente. Podemos ver isso desde em torcidas de futebol como na unificação da Alemanha nazista que precisou construir um contraponto no ataque aos judeus.

Embora bastante primitivo, o narcisismo das pequenas diferenças está presente em muitas – quem sabe, quase todas – das relações humanas grupais. Na fotografia, não poderia ser diferente. Profissionais opõem-se a amadores; fotógrafos que usam filme opõem-se a fotógrafos que usam digital; compradores da marca x opõem-se a compradores da marca y; fotógrafos de paisagem opõem-se a lomógrafos; fotógrafos publicitários opõem-se a fotógrafos sociais e por aí vai. Todas essas distinções, no entanto, ocultam algo que todos têm em comum e que é muito mais relevante: o amor pela fotografia.

Pasty Xie
Pasty Xie

É bastante confortável se identificar com um grupo. Recebemos apoio, aprovação e compreensão. Temos a sensação de pertencer a algo. Ao nos compararmos com outros grupos, sentimos que temos mais razão, mas qualidade, mais valor: tudo isso alimenta o nosso ego. É justamente essa necessidade egóica de afirmação que nos empurra para os grupos; quanto maior for nossa insegurança, quanto menor for nossa autoestima, maior será a nossa necessidade de buscarmos essa aceitação no grupo e maior será a nossa agressividade em relação a grupos distintos.

No entanto, isso terá um preço. Uma vez que os grupos tendem a ser essencialmente confirmadores, não tolerando conflitos internos, o indivíduo terá que se conformar às normas grupais. Se o fizer, terá o apoio que busca. No entanto, ao se mostrar “desviante” além do tolerável pelo grupo, será convidado a se retirar. É muito mais fácil simplesmente eliminar o diferente do que tentar incoporá-lo. Obviamente, isso varia de acordo com a maturidade de seus membros.

Michael Goodin
Michael Goodin

Na fotografia, isso significa ter uma produção condizente com a proposta do grupo e não questionar a superioridade da pequena diferença que identifica aquela facção em particular — o estilo das fotos, a marca da câmera, o ramo da profissão etc. Tudo que for feito dentro do aceitável será elogiado, enquanto tudo que for feito de diferente será rejeitado. Dessa forma, o indivíduo não sabe de fato qual o valor da sua produção em si: ele terá, apenas, uma avaliação da concordância ou não da sua fotografia em relação ao ideal formado pelo grupo.

Qual seria a maneira, então, de poder se agrupar sem cair na armadilha de fazê-lo puramente por conta das nossas necessidades de autoaformação? Em primeiro lugar, é essencial reconhecer que aquilo que nos une é muito maior do que aquilo que nos divide. Todos gostamos de fotografia, todos queremos fazer boas fotos, todos queremos fazer algo relevante. Nenhuma diferença é tão importante que se compare a isso. Em segundo lugar, os grupos precisam de flexibilidade e tolerância suficientes para que seus membros possam expor sua produção e ideias sem se sentirem acuados pela necessidade de conformação com os demais. Tolerar a diferença dentro e fora do grupo é essencial para o desenvolvimento fotográfico de cada um, bem como do grupo como um todo.

Uma janela e um dia nublado

A luz difusa é a essência do retrato. Ela suaviza as formas do rosto ao mesmo tempo em que cria volume. Não é à toa que em estúdios são utilizados sistemas complexos de iluminação, flashes, rebatedores etc. a fim de se eliminar sombras e criar transições suaves entre áreas mais ou menos iluminadas. Porém, muitas vezes as únicas coisas necessárias para criar essa luz perfeita para fotografar pessoas são muito mais triviais: uma janela, que todos temos à mão; e um dia nublado, que é algo que temos à disposição de tempos em tempos.

Com essa combinação, cria-se uma luz difusa lateral que usualmente joga uma parte do rosto na sombra, enquanto revela detalhes da expressão da pessoa retratada. Mas não é apenas isso. A luz fria e suave proporciona um ambiente de intimidade e proximidade, especialmente porque estamos, nessas fotos, dentro, junto com a pessoa, isolados e protegidos do mundo exterior. A luz difusa também ajuda a moldar o ambiente que cerca o retratado, compondo assim o cenário em que a pessoa é protagonista. Selecionei uma série de fotos que ilustram o universo que vai do cotidiano ao melancólico e que pode ser criado, apenas com os elementos mais básicos da fotografia: uma câmera e uma boa luz. Continue lendo “Uma janela e um dia nublado”

Câmeras e fogões

Na última sexta, eu e minha amiga Paula Porto andávamos pelo centro de São Paulo, na região da Rua Sete de Abril, famosa por reunir diversas lojas de material fotográfico. Estávamos indo até o laboratório do sr. Ogava, na Rua Barão de Itapetininga, para deixar alguns rolos de Tri-X para revelar. Paula tem um blog de culinária bastante conceituado, o …de Salto Alto na Cozinha. As fotos dos pratos que ela apresenta no site são feitas pelo seu marido, Ricardo. Passando pelas lojas cheias de câmeras e lentes nas vitrines, começamos a conversar sobre equipamentos, fotográficos e culinários.

Ela me contou que tinha alguns amigos que também gostavam de fotografia. Ela explicou que o padrão que eles apresentavam era de aquisição de uma grande quantidade de material: lentes, mochilas, acessórios. Fazendo uma analogia com a culinária, ela falou, em tom divertido, sobre pessoas que tinham fogões e equipamentos de cozinha caros e sofisticados, mas que apenas os utilizavam para receitas extremamente simples, para as quais não havia necessidade de tanto. Constatamos que existe, muitas vezes, um fetiche pela manipulação da ferramenta como mais importante do que a criação de fato. Ou seja, há pessoas que gostam de usar a câmera, mais do que de fazer fotos; ou de usar o fogão, mais do que de cozinhar.

Sergey Podatelev
Sergey Podatelev

Enquanto esperávamos o elevador no antigo prédio a poucos metros do Teatro Municipal, perguntei se as pessoas sobre quem ela falou eram felizes fazendo isso. Ela disse que sim, que eles se divertiam muito tanto com suas câmeras como na cozinha. Respondi, então, que achava que não havia mal nenhum nisso e que, na verdade, era isso que importava. No fundo, o que todos queremos é fazer aquilo que nos faz bem, e me parece fora de lugar criticar alguém porque seu prazer está na operação dos equipamentos e não na criação de fotografias — ou pratos.

Chegamos ao laboratório. A sala em que o Ogava nos recebe estava no seu habitual caos, repleta de pacotes amarelos de filmes revelados, fotografias ampliadas, algumas câmeras antigas jogadas em um canto e a antiga TV de tubo sobre um móvel. A janela estreita e longa no fundo da sala, condizente com o alto pé direito, permitia a entrada da luz opaca, típica de um dia chuvoso de outubro. Deixei dois rolos de filme para revelação e pedi que ele ampliasse, em 30×40 cm, o retrato de um casal de amigos que se juntará em breve e que eu havia feito alguns meses antes: será uma espécie de presente de casamento. Conversei com ele sobre como fazer o corte para acertar o quadro na proporção do papel e fomos embora.

We Make Noise !
We Make Noise !

Embora eu já tenha sido muito crítico em relação a questão da supervalorização do equipamento — e provavelmente alguns dos textos mais antigos do Câmara Obscura refletem isso — hoje não me sinto à vontade para criticar a forma como as pessoas escolhem usar o seu tempo. Há uma espécie de paradigma, entre fotógrafos amadores-avançados e profissionais, que diz que as pessoas não podem simplesmente usar uma câmera e fotografar os momentos relevantes da sua vida. De acordo com essa concepção, elas têm que estudar fotografia, têm que saber como usar a câmera, têm que fazer cursos, têm que ler livros, têm que saber compor, e por aí vai. Mas, pensando a fundo, não consigo imaginar nenhuma boa razão para todas essas obrigações. A impressão que dá é que todo mundo é obrigado a produzir obras-primas o tempo todo. Essa concepção não é apenas ditatorial — é também impossível.

Não deixo de pensar, no entanto, que para aqueles que de fato querem fazer fotos significativas — por opção, não imposição — que além de todo o estudo que realmente é necessário, é preciso utilizar o equipamento com racionalidade. Uma boa câmera compacta, ou uma reflex digital com a lente do kit (em geral 18-55mm), ou uma reflex analógica com uma lente de 50mm são mais do que suficientes para um fotógrafo inspirado, com boas ideias e disposição para procurar as melhores imagens. Até porque a “limitação” do equipamento ajuda no desenvolvimento de outras habilidades que são essenciais para a boa fotografia e não estão na operação da câmera (escolha do assunto, leitura da luz, ângulo, momento). Isto posto, posso até arriscar uma conclusão: se o seu prazer está na operação da câmera — e não há nada de errado nisso — você provavelmente está certo em ter o máximo de equipamento possível. No entanto, se a sua busca é por uma fotografia significativa no seu conteúdo, talvez seja uma boa ideia reduzir o equipamento ao mínimo possível.

O perturbador Kodachrome

Kodachrome é o nome de uma série de filmes fotográficos positivos (slides) fabricados pela Kodak entre 1935 e 2009. Durante o tempo em que foi produzido, era um dos filmes coloridos mais utilizados, tendo sido fabricado em diversos formatos, tanto para fotografia quanto para filmagem.

Na primeira vez em que vi um slide Kodachrome de 35mm nas minhas mãos, me assustei. O susto foi pelo fato da foto ter sido feita há mais de 30 anos e as cores, o contraste e a estrutura do filme estarem impecáveis. Mesmo não tendo sido armazenados com muito cuidado, os slides pareciam ter sido fotografados no dia anterior. Outros filmes que estavam armazenados juntos estavam praticamente destruídos pelo tempo e pelos fungos. Esses outros filmes, ou mesmo as fotos impressas, vão se desgastando com o tempo, perdendo suas cores e contrastes. Assim, quando vemos uma foto antiga, há uma espécie de embaçamento que nos distancia da imagem e denuncia a época em que foi feita. Quando guardados da forma correta, os Kodachromes aguentam por 50 anos ou mais, preservando suas características. E aí, quando nos deparamos com uma dessas fotos, sem o embaçamento esperado, há um choque pelo não distanciamento, que abala nossa concepção de tempo.

Se você fizer uma busca pelo termo Kodachrome, verá uma série de fotografias feitas com ele há 2, 10, 20, 30 ou até 70 anos. O perturbador nisso tudo é que não há diferença entre as fotos. Todas parecem atuais. Vemos uma reunião de família ou dois irmãos num gramado com cores tão vívidas que é difícil acreditar que aqueles momentos já ficaram tão longe no passado. As fotos abaixo foram feitas com Kodachrome nas décadas de 1950 e 1960.

Só depois de algum tempo pensando na questão do Kodachrome, percebi que a mesma coisa acontecerá daqui a algum tempo com as fotografias digitais. Depois da sua evolução inicial, o aspecto visual das fotos digitais passou a um patamar homogêneo. Se não houver uma grande mudança nesse aspecto geral, e se daqui a algumas décadas as fotos ainda se parecerem com as de hoje – em termos de cores e contraste, mesmo que visualizadas na tela – não teremos mais o embaçamento que nos permite situar a época em que a foto foi feita. Teremos que nos situar através de outros indicadores, como as roupas, cortes de cabelo, design de móveis ou carros. É complicado falar sobre o que pode ou não acontecer numa época em que tudo muda tão rapidamente como nos dias de hoje. Mas, se a fotografia digital continuar essencialmente a mesma, talvez ela faça com que alteremos, ainda que ligeiramente, nossa relação com o tempo, da mesma forma que fez o Kodachrome.

Fotografia: um bloco de notas

Em um dos últimos textos, falei de como as fotografias, através do seu corte no tempo, atestavam a morte de um momento. Entretanto, e talvez pelos mesmos motivos, o ato de fotografar é um tributo ao momento presente. Existem poucas atividades que trazem tanto a nossa atenção ao instante imediato do que enquadrar uma cena através do visor de uma câmera. Nos instantes que precedem a tomada da foto, não há preocupações com o futuro ou o passado: desligamos, ainda que brevemente, nossa torrente de pensamentos que nos arrasta para longe do presente e focamos no aqui e no agora.

As filosofias orientais costumam ressaltar a importância de voltar-se para o momento presente. Estamos constantemente pensando, planejando, antecipando ou fazendo alguma coisa. Podemos passar dias, meses ou anos com nossas mentes ligadas nesses processos, sem nunca parar um momento e simplesmente viver o instante em que se está. Se pensarmos que na verdade não há passado ou futuro, é ainda mais estranho o quanto gastamos de tempo vivendo em função deles.


xiu×5

Fotografar, então, pode ter essa função. Não é possível fotografar o que já passou ou o que será. Somos obrigados a nos voltar para o que está acontecendo no momento, no lugar em que estamos. Temos que lidar com o que está disponível. É comum que depois de um tempo dedicando-se à fotografia como atividade de lazer ou profissão, passemos a olhar o mundo com um olhar diferente, enquadrando e compondo cenas que se formam na nossa frente. Talvez esse exercício também possa nos ajudar a retornar para o aqui e o agora mesmo quando não estamos com a câmera nas mãos.

Quando fotografamos, estamos criando, de certa forma, o enredo das nossas vidas, montado a partir dos milhares de momentos presentes que passamos. Mesmo quando estamos preocupados com questões técnicas, mesmo que estejamos fotografando num estúdio, por mais artificiais que possam parecer as situações, mesmo assim, fotografamos aquilo que vivemos, sempre. Algumas vezes, quando queremos fazer uma fotografia especial, tomamos cuidado com a técnica, gastamos tempo com o pós-processamento, estamos, metaforicamente, tentando escrever um pequeno conto, uma narrativa mais elaborada a partir daquilo que testemunhamos. Inversamente, quando sacamos o celular para uma foto rápida, estamos anotando um lembrete num bloco de notas. Mas, quer a foto seja uma narrativa elaborada, quer seja uma nota rápida, são igualmente relatos daquilo que vivemos.


Matea Jocic

Se abandonarmos por um momento todas as questões criativas, artísticas e estéticas envolvidas, focando apenas nessa característica da fotografia enquanto testemunho, relato ou demonstração de alguns de nossos momentos, torna-se difícil olhar as fotos de forma crítica. Todas elas são igualmente banais e igualmente significativas, independentemente de como foram feitas. Cada foto representa um instante de alguém. E somos bilhões de alguéns passando de um instante a outro constantemente. Como algo poderia ser mais comum? Por outro lado, não há nada além disso. Como algo, então, poderia ser mais sublime?

Tendemos a organizar tudo que percebemos de acordo com classificações, julgamentos, análises, aplicando constantemente um ou outro critério, um ou outro referencial. Será possível tomarmos as fotos – e talvez outras coisas – apenas como aquilo que são? Nada e tudo ao mesmo tempo?