O paradigma e os usos da fotografia na atualidade

Este texto não tem como objetivo tornar pétreas as classificações que propõe. Serve, antes disso, como organizador das minhas próprias concepções e, num segundo momento, como possível iniciador de um debate. Os conceitos desse artigo são totalmente plásticos, somente servindo, a princípio, como base para outros textos a serem publicados no Câmara Obscura.

Partindo do pressuposto de Pierre Dubois, que afirma ser a fotografia uma categoria epistemológica per se, pode-se construir, em torno dela, uma análise paradigmática e das diversas correntes de pensamento que irradiam desse paradigma central.

A fotografia, tecnicamente, é definida pelo registro ou impressão, em superfície fotossensível, de uma imagem do ambiente externo projetada no interior de uma câmera escura. Essa definição, bastante consensual, nos coloca a frente dos elementos da fotografia: a) o registro, a fixação, relacionados à permanência no tempo do que foi produzido pelos outros elementos; b) a imagem, que é a própria luz refletida na matéria existente à frente da câmera; c) esse ambiente externo, o referente, é o que terá sua luz refletida fixada; da mesma forma que não há fotografia sem luz, não há fotografia sem referente; d) a câmera escura, o instrumento implícito em toda fotografia, necessário para isolar e selecionar os raios de luz que comporão a imagem que será registrada.

A definição da fotografia não é seu paradigma central, embora nos leve a ele. Uma das concepções mais difundidas é a de Barthes, de que a fotografia, através do registro a partir da luz, atesta que algo (ou alguém) existiu na secção do tempo em que a fotografia foi tirada: “isto foi”. Isso torna a fotografia totalmente dependente do corte da realidade que ela fará. Não se pode fotografar o nada. É esta concepção de representação da realidade, dentro de um formato próprio, que guiará os diversos usos que ela tem, ou as diversas “correntes” de utilização e a consequente relação com o mundo real que cada tipo de abordagem implica.

Embora a fotografia não seja a realidade e sim uma representação, consistindo numa espécie de ilusão, como colocado por Arlindo Machado em A Ilusão Especular, aqui, como o enfoque é totalmente pragmático (o uso da fotografia) basta ter como pressuposto que a fotografia é tida, de forma geral, como representação fiel da realidade. Desde que a fotografia foi inventada, ela adquiriu esse status de verdade, decorrente especialmente do seu uso no jornalismo e pelo próprio uso das pessoas no dia a dia, por mais que esse status seja questionado por diversos autores. As diferentes correntes de uso da fotografia pautam-se por esse poder a ela atribuído de mostrar o real.

A divisão que faço em seguida é puramente para organização do texto; não há limites claros entre elas e, em algumas circunstâncias, esse limite pode até se dissolver por completo, fazendo com que uma foto de uma abordagem acabe tendo mais características de outra. Também não há a pretensão de englobar todas as possibilidades; é uma lista que certamente pode ser ampliada. Tentarei definir o aspecto básico de cada categoria.

1. A fotografia de lembrança

Brian Yap
Brian Yap

Toda fotografia é uma tentativa de criar uma referência para alguma utilização no futuro, mas considero nessa categoria o tipo que é feito mais comumente pelas pessoas. Fotografar festas de aniversário, casamentos, reuniões, viagens etc. Nesse tipo de foto, há pouca preocupação com a composição, com o resultado final. O importante é mostrar que aquilo aconteceu, e servir como base para recordações futuras. É a típica foto de álbum, seja de família, de uma viagem, de um casamento.

Uma vez que não há preocupações excessivas com o resultado, qualquer pessoa pode fazê-lo, e qualquer tipo de equipamento serve. Na verdade, a maior parte das câmeras é usada para esse fim e, portanto, são aquelas fáceis de usar, chamadas de “aponte-e-dispare”. O importante é registrar o evento, não trazer ajustes à captura em si.

Se considerarmos que, em cada fotografia, há um continuum entre o peso do referente e a presença — qualificada — do fotógrafo, em que ambos se confrontam e se complementam, este tipo de foto situa-se próximo do referente, tendo o fotógrafo pouca importância.

2. A fotografia documental

Como fotografia documental, entendo aquela cujo uso principal é servir a um sistema de informação amplo, que usa a fotografia, mas não se resume a ela. Nesse caso, o papel é ilustrar, evidenciar e servir como documento de um determinado momento da história. Esse propósito exige que a fotografia seja clara, explícita, da mesma forma que o texto de um documento não pode deixar dúvidas sobre seu conteúdo. Ainda que um texto documental possa ter estilo diferenciado (vide “Os Sertões”, de Euclides da Cunha), seu caráter informativo é proeminente; da mesma maneira, uma foto de registro pode ousar, mas sem perder seu referencial documental.

2.1. A fotografia de registro histórico

Gettysburg
Alexander Gardner

A História se inicia com a invenção da escrita. Contudo, não foi a mesma a partir da invenção da fotografia. Enquanto só podemos ter um vislumbre da derrota de Napoleão na Batalha de Leipzig através das pinturas, as fotos dos mortos em combate na Batalha de Gettysburg traz uma outra visão: “isto aconteceu”. “Desse jeito”.

Não havia mais necessidade de pinturas, que, por mais fiéis que fossem, ainda assim não chegavam perto da crueza do registro que a fotografia era capaz de fazer. Portanto, ela passou a ser usada para rechear os arquivos históricos de qualquer instituição ou órgão governamental. Podemos acompanhar o crescimento de uma cidade a partir de sucessivas fotografias, por exemplo.

As fotografias, no entanto, não são garantia de verdade, uma vez que podem ser manipuladas ou usadas de acordo com uma finalidade ideológica específica. Stalin obliterou Trotsky das fotos em que ambos apareciam juntos. A fotografia, aqui, confirma o que não houve, serve a um propósito maior de correção ideológica implantada pelo regime comunista.

Uma faceta interessante da fotografia como registro histórico é que ela permitiu que se registrassem as imagens de pessoas em larga escala. Vários fotógrafos atingiram a notoriedade por levantar, com certa objetividade, o estilo de vida e as características de uma determinada população, como Dorothea Lange, nos Estados Unidos, e Pierre Verger, no Brasil.

É necessário considerar, também, que há uma dimensão temporal nesta categoria. Uma foto pode adquirir, ao longo do tempo, valor histórico que não possuía no momento em que foi produzida. Nesse caso, sua utilidade muda de acordo com o tempo, tal qual um objeto que se torna uma antigüidade: seu uso primário é abandonado e a foto adquire um interesse distinto, como uma foto de família de alguém que venha a ser, no futuro, uma personalidade importante, ou o de uma cidade que sofreu muitas alterações.

2.2. O fotojornalismo

As fotografias de eventos relevantes passarem a ser impressas em jornais junto com as notícias a partir de 1880. Antes disso, para estarem nos jornais, fotografias precisavam ser transformadas em gravuras, pois esse era o único método compatível com a impressão até então. O objetivo dessas fotos, como fica claro aqui, era apenas ilustrar uma notícia, dando suporte ao texto.

A partir da explosão do fotojornalismo na da Segunda Guerra Mundial, as fotos passaram gradualmente a assumir uma postura de maior protagonismo nas notícias, juntamente com o texto. Hoje, muitos textos jornalísticos servem de suporte a imagens impactantes; em alguns casos, o texto que acompanha uma foto se resume à legenda.

Paralelamente, muitos fotojornalistas, como Robert Capa e Cartier-Bresson, passaram a desenvolver um trabalho nos moldes do fotojornalismo, mas que podiam ser considerados peças autorais. Por isso, essa modalidade tem ganhado espaço em galerias de arte, ao serem consideradas uma expressão artística autêntica.

O jornalismo, atualmente, sofre uma crise ocasionada pelas transformações nos meios de comunicação, pela perda da ilusão de imparcialidade e pela influência das questões mercadológicas como a competitividade e os interesses financeiros. Hoje a notícia precisa estar nos websites cinco minutos depois do fato ter ocorrido. Não há mais tempo para que os fotojornalistas se desloquem até os locais de interesse: os próprios leitores enviam fotos para os jornais. O layout e a diagramação tornaram-se mais relevantes do que o texto. E as facilidades da manipulação digital têm levantado questões sobre o que é ou não aceitável modificar numa fotografia, embora existam formas mais sutis de alterar a representação da realidade que sempre foram e serão utilizadas (como as distorções causadas pelo uso de lentes tele ou grande-angulares).

Todos esses fatores estão relacionados a essa revolução que vem ocorrendo no jornalismo. Só daqui a alguns anos veremos como os jornais, as agências de notícias e os grandes grupos de comunicação terão se adaptado às novas condições econômicas e tecnológicas. E aí veremos, também, qual o lugar que a fotografia ocupará nessa nova ordem. Algo me diz que continuará importante — e talvez até demais — em detrimento do texto.

3. A fotografia autoral

westpark
westpark

Desde o seu surgimento, era discutido se a fotografia poderia ser ou não considerada arte. Embora tenha sido reconhecida como tal, e esteja presente em galerias e museus, ela ainda tem um aspecto diferenciado que dificulta sua equiparação às outras formas de arte. Com isso, ela é tanto engrandecida como a Arte por excelência ou diminuída como um artesanato fácil e banal (essa mais frequentemente, especialmente pelo senso comum).

Pensando novamente no continuum entre o referente e o fotógrafo, esta categoria é o oposto da fotografia de registro: aqui são as variáveis autorais que terão mais força. Contudo, da mesma forma que para qualquer foto simples é preciso alguém que aperte o botão, para um trabalho autoral também é necessário um referente. Ainda que a foto seja um ponto de partida (ver “a fotografia como elemento compositivo”) ou ator precisa de um corte que corresponde sempre a uma secção da realidade.

O que caracteriza a fotografia de autor, no entanto, é a forma como o trabalho do fotógrafo se faz presente na imagem. Seja pela escolha do assunto, pelos recursos técnicos utilizados, o fotógrafo, ou o conceito criado por ele, são protagonistas da foto, sendo que o referente e os recursos utilizados são coadjuvantes na realização da ideia. Mesmo que a foto seja de um simples objeto, como a que ilustra essa seção, percebe-se claramente que o objeto em si tem menos importância do que toda a concepção do artista sobre a estética da imagem.

4. A fotografia como elemento compositivo


Alexander Cano

A fotografia, na esfera das artes plásticas, ganhou mais uma uso, que é o de elemento compositivo de uma outra obra. Seja pela simples montagem de fotogramas, ou por projeções, pinturas sobre fotografias, esculturas fotográficas, parte de instalações etc, muitos artistas optaram por inserir a fotografia dentro de um outro contexto, modificando ou até mesmo acentuando a sua natureza. Com isso, há uma tentativa, por parte do autor, de ir além do referente, ou até mesmo de dialogar com a sua crueza através de outros conceitos envolvidos na obra. Pode-se discutir, inclusive, se colagens, viragens e espalhamentos são ainda fotografias ou já deixaram de sê-lo, passando a uma outra categoria.

5. A fotografia utilitária

Toda fotografia, em última análise, é utilitária, pois serve a um propósito. O diferencial nessa categoria, no entanto, é que a sua finalidade dita de maneira clara a forma que a foto, como resultado final do processo, precisará ter. O uso não é conseqüente da forma, ele é anterior. Nessa categoria se inserem, por exemplo, fotos para documentos, para fichas criminais, para estudos científicos, para catálogos de diversas naturezas e, em especial, a fotografia publicitária. Enfocarei com destaque apenas esta última.

5.1. A fotografia publicitária

Incase
Incase

Esse uso da fotografia merece um destaque não por ser mais relevante, em termos históricos ou criativos, mas pela sua quantidade e pela influência que ela exerce na sociedade atual. Como toda fotografia utilitária, o uso da fotografia publicitária define sua forma.

A publicidade tem como objetivo fazer com que uma pessoa tenda adotar uma certa atitude em relação a algo, seja um produto, uma ideia, ou uma outra pessoa (um político, por exemplo). Na maior parte das vezes, isso significa consumir um produto. Ao longo do tempo, as propagandas passaram por diversas reinvenções, sempre com o intuito de provocar melhores respostas nas pessoas em direção a uma determinada atitude. Para isso, o expediente mais utilizado é associar uma idéia ou uma sensação de ganho, de prazer, a um determinado produto. Como o frescor do creme dental, o conforto de uma tecnologia, a sensação de poder de um carro, a sensualidade de uma roupa, a alegria da cerveja etc. Esses conceitos, geralmente, são transmitidos através de imagens, construídas sob medida para aquela finalidade. Portanto, a forma é essencial. Nem as pessoas, nem os produtos, podem ter defeitos. Para isso, usa-se a maquiagem, a luz certa, os retoques e objetos em escala exagerada. A propaganda cria uma realidade ampliada, hiperbólica, hiper-realista, voltada para o impacto, para a sensação.

Uma das consequências irônicas desse expediente é que nos dessensibilizamos. Com tanta estimulação, já não somos sensíveis e receptivos da mesma forma. Por isso, as imagens têm que ser cada vez mais impactantes, perfeitas, coloridas, chocantes. Ou isso ou ninguém reparará mais nelas. Uma segunda consequência é que essa hiper-realidade ideal disseminada pela publicidade acaba por penetrar no imaginário das pessoas, que passam a adotar, individualmente, aquele mundo como ideal pessoal. Isso gera uma insatisfação com o real “verdadeiro” e impele a pessoa a uma espiral de consumo a fim de atingir esse ideal que nunca será alcançado.

É importante, para esse propósito, que as imagens pareçam reais, para justamente atestar que aquele ideal existe e pode ser alcançado — desde que você esteja disposto a consumir. Para isso, nada melhor do que a fotografia, com seu status de verdade, especialmente quando é ampliada e retocada de forma a eliminar quaisquer imperfeições.

Hoje, no entanto, através de recursos de computação gráfica que tornaram as montagens e edições de fotos muito mais fáceis, e seguindo a perspectiva hiper-realista, a publicidade hoje envolve superproduções que tomam como elementos de composição fotografias, arte digital e outras mídias, extirpando o caráter unitário e autônomo dessas ferramentas. A ironia maior é que, naquilo que você paga por um produto, está embutido o custo que a empresa teve para convencê-lo a comprar.

5.2. A fotografia como suporte

Dan Brady
Dan Brady (grafite de Bansky)

A arte também pode usar a fotografia de maneira extremamente utilitária. Cada vez mais a produção artística está mais ligada à rede de informações e menos ao valor das obras por si só. Com o alcance dos meios de comunicação em massa, vemos infinitamente mais fotografias de obras de arte do que as obras em si. Provavelmente apenas uma minúscula parcela da população conhece os quadros mais famosos do Louvre ao vivo; mas uma grande parcela os conhece através de suas fotografias. Além disso, outras formas de manifestação artística, como instalações, performances ou os grafites de Bansky têm como característica a efemeridade: a fotografia entra aqui como uma forma de perpetuar o trabalho para uma exposição mais permanente, como catálogos ou sites na internet (e que me obriga a colocar o crédito para o fotógrafo e o artista). Assim como a fotografia documental, nesses casos a foto em si é apenas um veículo. O referente, ou a obra, assume total protagonismo.

Embora os usos da fotografia sejam mais amplos, essas categorias são suficientes para referência de outros artigos que virão a ser publicados. É interessante notar que, embora os usos e as formas variem muito, a captura fotográfica, na sua essência, permanece a mesma. Esse paradigma central sólido é útil para a nossa análise, uma vez que permite generalizar para suas diversas utilizações aquilo que se levanta a partir dele.

Alexandre Berner: cor e paisagens

O geólogo Alexandre Berner, de Petrópolis, começou a se interessar por fotografia durante a sua graduação. Desde então, vem usando as câmeras para aprimorar a sua sensibilidade e mostrar como interpreta a paisagem natural, além de almejar proporcionar um melhor convívio das pessoas com o planeta. Eu já havia citado o seu trabalho ao falar sobre a série de fotografias do Rio Xingu, mas desde então seu portfólio cresceu, em quantidade e qualidade.

Berner é especialista em  paisagens, como mostra em fotografias exuberantes de sua terra natal. Seu gosto pelo montanhismo também fica evidente nas imagens de serras e trilhas, cujo diferencial é a exploração das cores, aliada à excelência técnica. Tal ênfase atinge seu ápice nas fotos do meio-oeste americano, em que ele não hesita em explorar as sombras para mostrar os detalhes da paisagem.

No entanto, a fotografia de Berner não se limita aos ambientes naturais. Um dos seus trabalhos mais expressivos é a série Reflorestamento em Manaus, em que ele usa os grafites com temas da natureza em meio ao cinza da cidade, criando um contraste irônico e pungente.

Seguem alguns exemplos das suas fotografias, junto com o convite para a visita do seu portfólio completo: Alexandre Berner no Photo.net.

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Fotografia do cotidiano

Em uma época em que a originalidade deixou de ser sinônimo de qualidade e em que as imagens pasteurizadas e irreais são dominantes, parece difícil achar os caminhos para produzir algo significativo através da fotografia. Com a rede abarrotada de fotos, o novo e o espetacular são armadilhas que, na verdade, significam apenas mais do mesmo. Mais e mais vejo, em resposta a essa condição, fotógrafos voltando-se para os eventos rotineiros de seu dia-a-dia, de suas famílias, amigos e entes queridos, muitas vezes criando com sucesso uma fabulosa estética contemporânea.

Pode ser um simples viés em relação às fotos a que tenho acesso, mas tenho visto essa abordagem melhor trabalhada em fotógrafos de outros países do que entre os brasileiros — exceção feita ao Gustavo Gomes. Talvez seja por uma percepção diferente da rotina ou porque ainda estejamos mais presos em modelos publicitários e jornalísticos, que nos levam à tendência de travestir o cotidiano em espetáculo. A beleza do trivial não precisa de um traje de gala. Precisa, apenas, ser percebida.

Escolhi algumas fotos que traduzem esse movimento. E não acho que voltar-se para si mesmo leve a uma produção menos significativa. Até porque não há nada mais universal do que as particularidades de cada vida humana.


Gustavo Gomes


Lis Ferla


lintmachine


8 Kome


Eduard Germis

chillhiro


Ronn “Blue” Aldaman


Grant Harder

Fotografia é discurso

Imagine uma folha de papel em branco. Com uma simples caneta, você poderia encher essa folha de papel com uma história, um poema, seus pensamentos, seu ponto de vista. Se você consegue ler este texto é porque foi treinado, durante anos a fio, na habilidade da leitura e da escrita. Você pode, através de sinais especiais e combinações — letras e palavras — organizar qualquer discurso que o idioma permitir.

A fotografia também é uma espécie de discurso. Como qualquer arte visual, ela oferece, através da imagem, a possibilidade de se contar uma história, mostrar uma cena poética, expressar a sua opinião e a sua forma de ver o mundo. No entanto, nós não recebemos anos e anos de treinamento nos elementos do discurso fotográfico como recebemos no uso de palavras e frases. Isso torna a construção e a leitura de fotografias uma tarefa que, embora pareça fácil na prática, é difícil ao se considerar as possibilidades que o idioma da câmera nos permite. Continue lendo “Fotografia é discurso”

Técnica e linguagem: resolução e pontos

Nos últimos anos, o principal aspecto no qual as câmeras digitais mudaram foi na sua resolução, expressa na quantidade de megapixels. Enquanto há 10 anos as câmeras tinham, quando muito, 1 ou 2 megapixels, hoje qualquer câmera compacta e baixo custo tem mais de 10 e os modelos profissionais mais comuns passam de 20.

O que é, no entanto, um megapixel e qual o impacto prático da sua quantidade? Os pixels são os minúsculos receptores de luz presentes no sensor da câmera, responsáveis por formar a imagem. O prefixo mega corresponde à sua quantidade, sendo que 1 megapixel = 1 milhão de pixels. A quantidade de megapixels no sensor da câmera (e, consequentemente, na formação da foto) é obtida através da sua resolução. Uma foto que tenha, por exemplo, 3mil pixels no seu eixo horizontal e 2000 pixels no seu eixo vertical terá uma resolução descrita em 3.000×2.000 que corresponde a 6.000.000 de pixels, ou 6 megapixels. Continue lendo “Técnica e linguagem: resolução e pontos”

Precisamos de novos modelos

Bons fotógrafos profissionais tendem a ter uma série de nomes consagrados que usam como modelos para o seu trabalho, geralmente dentro de sua área. Fotógrafos de moda, de casamento, publicitários costumam estudar o portfólio de quem tomam como norteadores. Procuram assimilar as técnicas, buscar os mesmos recursos e obter resultados semelhantes, aprimorando, assim a sua própria fotografia. Quando se é profissional e quando se trabalha numa área específica, é mais fácil ir atrás dessas referências, em sites, revistas especializadas, agências etc.

Já o fotógrafo amador não tem uma direção clara, já que ele pode simplesmente fazer de tudo. Então, em quem se espelhar, quem ter como modelo? Ao buscar a sua referência, o fotógrafo amador geralmente se depara com duas armadilhas que o levam a uma prática deficiente: se espelhar em profissionais cujo sentido do trabalho é totalmente distinto do seu ou se fechar em apenas uma vertente de possibilidades e nomes — e comumente as duas coisas acontecem juntas.

O amador pode, então, tomar emprestados aspectos da fotografia profissional que não fazem sentido na sua prática. Ele pode, por exemplo, não fazer pós-processamento em suas fotos por essa ser uma prática pregada por veículos jornalísticos. No entanto, há um sentido nessa exigência dentro do contexto profissional, que é preservar a credibilidade das informações. Para o amador, a menos que ele tenha algum tipo de blog investigativo, ou alguma outra justificativa, não faz sentido atuar assim. Ou seja, aquele que não fotografa profissionalmente deve adequar a sua prática às suas intenções e ao seu objetivo na fotografia em vez de apenar imitar preceitos que não lhe dizem respeito.

txiribiton
txiribiton

Ao longo da sua história, a fotografia deve ter tido centenas ou milhares de grandes fotógrafos. Pessoas que conseguiram mostrar um lado surpreendente do mundo, encantar com composições surreais, usar o processo fotográfico em prol da estética ou simplesmente retratar a poesia do cotidiano. No entanto, muitos amadores parecem ter um certo fetiche por três nomes: Henri Cartier-Bresson, Ansel Adams e Sebastião Salgado. Três ícones, sem dúvida, mas que ao se estabelecerem no imaginário do fotógrafo amador avançado como referências arquetípicas, ofuscam a significância de muitas outras referências importantes e que, se fossem consideradas, abriram horizontes para os amantes da fotografia.

Salgado e Bresson são, basicamente, fotojornalistas, ainda que suas fotografias tenham adquirido status de arte (coisa que provavelmente não tenha dominado suas preocupações). Ou seja, a sua prática é ir ao mundo e mostrá-lo como tal, como um observador não participante, que não interfere. Embora seus trabalhos sejam fantásticos, quantos amadores têm um subsídio financeiro para flanar por Paris? Quantos visitarão um terço dos lugares pelos quais Salgado passou? Para completar, quantos carregam Leicas a tiracolo? Então, qual é o sentido de fechar os olhos para outros referenciais que podem tanto mostrar outras possibilidades com a fotografia como envolver práticas mais condizentes com suas realidades?

Já Adams fotografava pela estética, levada a um extremo técnico de câmeras de grande formato e um sistema complexo de captura e revelação.  E voltamos à pergunta, quantos amadores andam por aí com suas máquinas 4×5 e tem a sorte de ter acesso regular a um parque nacional como Yosemite?

É claro que é possível usar esses nomes como fontes de inspiração, mas ter fotógrafos com práticas tão distintas como única referência levará o amador a uma simples mímica, a um arremedo. Cada um precisa construir uma prática condizente com as suas possibilidades e, nesse caminho, buscar referenciais palpáveis, sejam eles grandes nomes ou não.

E aqui vão algumas ótimas fontes das quais pode se beber dos mais diversos tipos de fotografia. O grupo Young Photographers United reúne novos talentos de todas as partes do mundo. O site Fotografia Contemporânea reúne na página Fotografias de Autor ensaios para todos os gostos. No Brasil, temos grupos como o coletivo fotográfico Púnctum e o F/508, este último tendo revolucionado o fotoclubismo nacional. E viva a multiplicidade de possibilidades que a fotografia nos dá.

Fotografia: vedete do admirável mundo novo

No Flickr, mais de três mil fotos são publicadas a cada minuto. No Twitter, o número de mensagens superou os dez bilhões. A previsão de Flusser, feita 20 anos atrás, de que seríamos subjugados pelas imagens técnicas (telas de computadores, de televisão, de celulares) e apenas nos submeteríamos a uma avalanche infinita de informações “novas” a cada dia nunca pareceu tão concreta. A esperança de que talvez fosse possível usar a difusão da informática a das telecomunicações para o aumento da consciência sobre o funcionamento desse sistema, ao permitir uma espécie de contracontrole, diminui a cada movimento que “facilita” a comunicação.

Os e-mails já estão fora de moda. Os blogs já parecem pesados e antiquados. Fóruns de discussão são ferramentas rudimentares e seletivas. As formas de comunicação pela internet seguem a lógica da sigla TLDR, que significa too long; didn’t read, ou seja, “muito longo; não li”. A comunicação é cada vez mais fácil, imediata, curta, objetiva, clara. Porque escrever um e-mail se com 140 caracteres se cria uma mensagem no celular ou no Twitter?

Paul Hockett
Paul Hockett

No seu célebre 1984, escrito nos anos 50, George Orwell descreve a sociedade totalitária futurística no qual todos são vigiados através das teletelas. São monitores que ao mesmo tempo mostram e captam imagens, utilizados como instrumento de controle do governo. A privacidade não existia e cada cidadão precisava controlar até mesmo seus pensamentos: falar mal do líder (o Grande Irmão, ou Big Brother) até mesmo durante o sono poderia evidenciar um traidor, que era punido exemplarmente. O que Orwell não previu é que não seria necessário um governo totalitário para forçar as pessoas a perder sua privacidade. As pessoas voluntariamente, e com prazer, abrem suas vidas e sua intimidade para quem quiser ver. E não estou falando daqueles que aparecem em reality shows na TV, como o que tem o título ironicamente baseado no romance de Orwell. Falo de todos nós que nos expomos diariamente no Facebook, no Orkut, no Twitter, no Flickr. Somos o sonho de qualquer ditador.

No entanto, não há ditador. Há apenas um sistema baseado na comunicação cada vez mais rápida e simples, que premia com 15 minutos de fama e segue em frente, na necessidade voraz de produzir, a cada segundo, “novas” informações e “novas” imagens.  A arte já era “contemporânea” antes mesmo da telemática de Flusser se tornar tão evidente: já não importa mais a qualidade dos trabalhos, o valor das obras. Vale a rede do comunicação, os contatos, o networking. Quem faz o artista não é sua produção, é sua capacidade de se adequar a essas contingências. Para os que não aceitam esse novo estado de coisas: o próprio Flusser já diz que não adianta gastar voz contra a qualidade dos trabalhos ou pela restauração dos valores ultrapassados; é preciso conhecer o sistema e subvertê-lo de dentro, já que ele não é planejado nem controlado por ninguém. Ele simplesmente existe.

Daniela Munoz-Santos
Daniela Munoz-Santos

A fotografia digital é a vedete dos novos tempos. Ao permitir sua visualização e disseminação imediata (já existem câmeras que fazem upload automático das fotos para o Facebook ou outras redes sociais), ao não ser necessário o conhecimento de nenhum tipo de código para sua produção e leitura, como na escrita, ela é o combustível perfeito para essa roda de moinho que precisa de impulso constante. O conteúdo importa pouco, desde que seja de fácil compreensão e de preferência com uma forma impactante. Isso ajuda na sensação de que aquilo que está sendo visto é novo e relevante, embora se preste atenção por apenas um segundo e um minuto depois já foi esquecido, na medida em que nossa atenção já flutuou por dezenas de outros estímulos. Em última análise, não passa de mais do mesmo.

Obviamente, existem ótimos trabalhos expostos na internet (como os que ilustram este artigo, e foram postados justamente… no Flickr). A questão é que infelizmente eles se pulverizam sobre o mar de banalidades. Se forem vistos, poderão ao menos gerar uma dezena de comentários vazios e delegados ao esquecimento, logo em seguida. Os trabalhos mais apreciados na rede são aqueles que seguem a lógica do TLDR, que também vale para imagens: fotos de fácil compreensão, mensagem rasa, clara e limpa, que  alimente a roda e não a trave, exigindo reflexão ou uma leitura mais apurada.

Tenho visto as pessoas que de fato gostam da fotografia lidando de diferentes formas com esse cenário. Algumas simplesmente não conseguem se adaptar a ele, não postando fotos na internet e mantendo o velho hábito de imprimir as imagens ou apenas compartilhá-las com conhecidos. Outros, de forma inversa, entendem que é preciso lutar pela visibilidade a cada dia, e de fato obtêm sucesso com um trabalho consistente: embora muitas vezes ele seja pautado simplesmente pelos comentários de desconhecidos e envolva uma necessária repetição, o que inevitavelmente acaba tolhendo as possibilidades criativas. Alguns preferem uma perspectiva mais introspectiva, buscando fotografar para si mesmos, ainda que publiquem os resultados na internet. Inevitavelmente, nesse caso, há um conflito entre a perspectiva pessoal e a expectativa geral, de que as fotos devem comunicar algo menos particular. E há aqueles que não se preocupam tanto com a questão, simplesmente publicando imagens de forma indiscriminada: e essas imagens médias são o grosso desse oceano.

Andre Fromont
Andre Fromont

E há, de fato, poucas alternativas para quem fotografa e quer, de alguma forma, validar ou expor seu trabalho. Afinal de contas, a explosão da internet e de outras formas modernas de comunicação fazem com que se você não está online, é como se não existisse. O dilema é como se situar entre a inexistência e a pulverização no oceano de informações. Se alguém souber a resposta, me avise.

Passaram-se duas horas desde que comecei a escrever esse texto. Nesse meio tempo, mais de 360 mil fotos foram publicadas apenas no Flickr. Diversas pessoas acordaram e narraram suas atividades no Twitter. Inevitável pensar que é quase um exercício de simplesmente falar sozinho. Estarmos totalmente conectados, ao invés de propiciar a troca e a criação em conjunto de que Flusser fala, a partir de um patamar que é impossível de se obter sozinho, apenas nos torna mais narcisistas. Mas, se você chegou ao fim desse texto, é porque a lógica do TLDR ainda não é universal. E talvez nem tudo esteja perdido.

Só para loucos

Ainda a questão do acaso na fotografia

Recentemente, comentei aqui sobre uma fotografia aberta ao acaso, voltada mais a provocar impressões do que ser simplesmente representativa, e das dificuldades em se estabelecer os limites conceituais e práticos. Nas últimas semanas, continuei procurando fazer esse tipo de fotografia, experimentando especialmente as baixas velocidades do obturador e as múltiplas exposições.

Nos dois casos, há margem para o imprevisto. Ao usar baixas velocidades, não se sabe exatamente que efeito o movimento causará. Além dos borrões óbvios, os pontos em que o movimento é mais lento ou cessa ficam marcados no fotograma, multiplicando a presença do objeto.

Na primeira linha de fotos (coloridas), utilizei uma câmera reflex digital, ISO 200, modo de prioridade de velocidade, ajustado em cerca de meio segundo. A abertura variou de acordo com o programa da câmera, mas sitou-se em torno de f/11 e f/16, o que levou a um foco longo (que não se vê pelo movimento) e até ao destaque para as sujeiras no sensor.

Já no restante (preto e branco), fotografei com uma câmera reflex analógica, com filme ISO 100 e lente de 55mm. Configurei o fotômetro para ISO 200 no caso de duplas exposições, ou ISO 400 no caso de exposições múltiplas.  Uma das fotos é a sobreposição de várias inscrições na lateral de um edifício. Em uma delas lê-se “só para loucos”, que me remeteu ao livro de Herman Hesse, O Lobo da Estepe, em que o personagem principal adentra o Teatro Mágico, que é descrito por essa expressão (e daí o título deste artigo).

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As duas séries são bastante diferentes entre si e se afastam da fotografia convencional. São melhor definidas por imagens produzidas por câmeras fotográficas, utilizando recursos já programados nas máquinas, mas em contextos que levam  a um resultado permeado de imprevisibilidade. Embora sejam técnicas pra lá de antigas, ainda há quem se surpreenda com os efeitos obtidos. É possível, a partir delas, manter a discussão dos limites da fotografia, ao se perguntar onde se situa tudo aquilo que a câmera fotográfica é capaz de fazer.

Ave Holga

A onda das Toy Cameras persiste, com cada vez mais adeptos de um tipo de fotografia que vai contra e tendência tecnológica da fotografia digital e sem defeitos que os fabricantes de câmeras convencionais oferecem atualmente. O uso das “câmeras de brinquedo” geralmente está associada a uma fotografia compromissada com aspectos distintos, e por isso faz uso das características comuns a esses equipamentos: baixa nitidez e aberrações cromáticas por conta das lentes de plástico, vazamentos de luz, duplas exposições etc.

Entre os modelos mais cultuados está a Holga 120, uma médio formato  que produz quadros de 56mm x 56mm, tem foco manual baseado em 4 posições fixas e seleções limitadas de abertura e tempo de exposição, variando de acordo com o modelo da câmera. O mais comum é que a lente tenha o diafragma fixo em f/8 e o obturador funciona em torno do 1/100 de segundo.

As principais críticas que vejo em relação às Holgas e similares feita pelos fotógrafos mais conservadores é que o seu uso não passa de um modismo é que o emprego dessas câmeras é a busca por um efeito fácil, pronto e vazio. Se é um modismo ou uma prática que veio para ficar, nas proporções em que está disseminada hoje, só o tempo dirá. E, de fato, as Holgas produzem imagens com um característica específica. Mas até aí, quando procuramos uma lente que seja extremamente nítida, também estamos procurando uma caraterística específica. Ou quando escolhemos um tipo específico de filme, de filtro ou aplicamos um recurso num programa de edição de imagens. Não é o efeito em si que é vazio ou significativo: é a coerência entre a característica técnica e o “discurso” fotográfico que dará sentido à escolha do equipamento. Procurar uma câmera que vaza luz ou uma lente com ótica perfeita é a mesma coisa quando não se sabe o que se fazer com uma ou outra.

As Holgas e suas  similares têm, no entanto, uma vantagem. A fotografia como um todo é apenas um efeito, uma ilusão. É possível produzir fotografias cujos aspectos técnicos criam uma ilusão mais bem feita (lentes com alta qualidade ótica, nitidez, sensores com cores fidedignas etc.) ou pode-se deixar de lado essa preocupação e ter uma produção que mostra claramente que a fotografia é apenas um processo de interpretação. Ao propiciar isso, a Holga liberta o fotógrafo das amarras com a “realidade” e permite que ele dialogue com o processo, com o aparelho e com as suas próprias intenções. Cada vez mais as imagens dominam o mundo, e a escolha é entre apenas deixar-se hipnotizar por elas ou olhar para a forma como são feitas, coisa que é mais fácil com as toy cameras. Vejamos, então, alguns diálogos imagéticos com as Holgas (clique para ver maior).

Holly Northrop
Holly Northrop

Holly Northrop
Holly Northrop

Holly Northrop
Holly Northrop

santacroce
santacroce

Reinis Traidas
Reinis Traidas

Stephanie Carter
Stephanie Carter

Scout Seventeen
Scout Seventeen

Laura Burlton
Laura Burlton

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