Coletivo 2008

O Fotoclube F/508 lançou, no fim do ano passado, a sua coletânea anual de trabalhos realizados pelos fotógrafos que passaram pelos cursos do clube durante 2008. A cada nova publicação, o 508 aprimora a qualidade dos seus ensaios, bem como a apresentação gráfica dos livros. Aliado à experiência que o clube teve com o projeto Latinidades, o Coletivo 2008 reúne bons exemplos de uma fotografia contemporânea, ligada ao humano, ao cotidiano e ao espírito conceitual que lhe é essencial.

Uma das coisas interessantes do livro é o uso do texto, especialmente da poesia, como coadjuvante das imagens. Em algumas das séries a busca é justamente por essa poética visual, como o trabalho de Carol Matias, que abre o Coletivo. Intenção semelhante permeia os ensaios de Mauro Nogueira e Leonardo Bites. Com uma base mais conceitual, há o trabalho de Manuela Neves, de uma linha que vejo, infelizmente, em escassez, que é a fotografia quase totalmente calcada na ideia. Também trabalhando conceitualmente, mas com uma abordagem mais elaborada advinda da sua experiência em artes plásticas, Erika Esteves associa a fotografia a outras técnicas e intervenções visuais para criar o seu “Dissimulações”, um dos pontos altos do livro. Por sua vez, Silvio Sá joga com o real e o virtual em “Complementaridades”. Explorando o cotidiano há o ótimo trabalho de Joana Machado, que criou um ensaio intimista, a abordagem sistemática de Bianca Starling e o olhar delicado e melancólico de Gabriela Freitas sobre as memórias familiares. Por fim, há duas séries de forte apelo gráfico, as tramas bem compostas de Cíntia Magalhães e a cidade angulosa que a norueguesa Ida Svendsen transcreve com sua fotografia analógica.

Obviamente, há uma ou outra foto que parece ligeiramente fora de lugar em um ou outro ensaio, mas se considerarmos que a maior parte dos autores são alunos com pouco contato prévio com a fotografia, os resultados são muito bons. É um livro que vale a pena para quem valoriza uma fotografia atual e de qualidade.

O Coletivo 2008 pode ser adquirido no site da Livraria Cultura.

Coletivo 2008

Digipix se recusa a imprimir portfólio de Gal Oppido

A Digipix, empresa que atua no ramo da impressão fotográfica, com destaque para a produção de fotolivros, se recusou a imprimir 200 fotos do portfólio do fotógrafo Gal Oppido, por conta do conteúdo das imagens, que contém nus. A informação é da coluna de Monica Bergamo, da Folha de São Paulo:

Ditadura
Depois de ter exposto suas obras no MAM, no MIS, na Pinacoteca e no exterior, o fotógrafo Gal Oppido teve suas imagens -muitas delas com corpos nus- censuradas. O veto veio da Digipix, contratada para imprimir cerca de 200 fotos do artista em um livro-portfólio, que seria apresentado a galerias de Nova York. A empresa se recusou a entregar o trabalho por considerar as imagens de ‘conteúdo indevido’, que poderia ‘ser considerado ofensivo, pornográfico, obsceno (…) que venha a ferir a ética, a moral, os bons costumes’. E afirma que ‘não analisa as imagens com base em critérios artísticos’.

INQUISIÇÃO
Oppido, que teve de viajar sem seu portfólio impresso, avalia o ocorrido como ‘um evento com tons medievais, lembrando a malfadada aventura inquisitória’.”

Esse é um acontecimendo que causa estranheza por três motivos: primeiro, é curioso ver que uma empresa do ramo de impressão fotográfica, que passa por um momento de crise, se recusa a fazer um trabalho. Parece que a Digipix anda bem das pernas, provavelmente pelo sucesso dos fotolivros, que tem garantido a sobrevida desse setor. Não sei até que ponto existe algo na legislação que obriga a empresa a atender o cliente, mas essa é uma questão menor. O segundo motivo de estranheza é a seleção prévia pela qual passam os trabalhos enviados à empresa, no qual aparentemente se verifica se o conteúdo do fotolivro é condizente com os padrões morais da Digipix. É uma situação no mínimo desconfortável, para um fotógrafo, ter que submeter o seu trabalho a um crivo que dirá se ele é digno ou não de virar um fotolivro. O terceiro motivo é a afirmação de que a Digipix “não analisa as imagens com base em critérios artísticos”. Ora, a fotografia é uma arte, e para se trabalhar com arte é preciso ter sensibilidade suficiente para entendê-la, em vez de julgá-la. E isso porque estamos falando do trabalho consagrado de um fotógrafo de renome. Essa sensibilidade significa entender também que a imposição de padrões morais é incompatível com produção artística — e isso deveria ser sabido especialmente por quem lucra com ela.

Felizmente, existe a concorrência. Vamos esperar que outras empresas que trabalham com fotografia a tratem com o devido respeito.

Atualização (15/1/09): resposta da Digipix publicada no Portal Photos

“Sobre a nota “Ditadura” (Mônica Bergamo, Ilustrada, 9/1), a Digipix esclarece que se dá o direito de não produzir material que possa ser considerado pornográfico, como claramente descreve o termo de uso com o qual todos os clientes são obrigados a concordar antes de contratar seus serviços. Para isso, são adotados critérios objetivos, um dos quais prevê a não produção de imagens com genitais expostos. A Digipix não analisa as imagens com base em critérios artísticos, função que não lhe cabe, e não se trata de censura, já que não fica impedida a exposição ou a produção por terceiros de tais imagens. Por operar on-line, a Digipix adota antecipadamente critérios claros de atuação e só tem acesso ao conteúdo dos materiais após eles serem processados. Ao contratar o serviço, a representante de Gal Oppido, Kátia Kuwabara, manifestou-se ciente e concordou explicitamente com o termo de uso da empresa, que apenas o fez valer.”

Atualização (16/1/09): depoimento de Ignácio Aronovich (do Lost Art) no BrFoto:

“Postei uma mensagem na lista Fototech em 09/01 reproduzindo a nota na coluna da Monica Bergamo sobre o caso do Gal, que não pode imprimir o seu livro na Digipix.

Na semana seguinte li inúmeras mensagens e posts em listas e foruns de pessoas manifestando-se sobre o assunto.

O que mais me chamou a atenção é que *ninguem* ligou para a Digipix para ouvir o lado deles da história.

Liguei e conversei hoje com a Sandra Bizutti (11_ 3612-5730), da area comercial da Digipix.

Ela me explicou que:

-o pedido do Gal entrou dia 24/12, com prazo apertadissimo e não foi feito por ele, mas por uma assistente dele (livro Super A3)

-o livro foi barrado na produção, por conter genitália visível, o que vai contra os termos de uso da política da empresa.

Como o livro não ficou pronto, e não há havia prazo hábil para produzir outro, o Gal foi prejudicado.

De acordo com a Sandra, não há nada de subjetivo na política da Digipix: se genitália aparece, o livro não será impresso.

Perguntei se eu poderia publicar um fotolivro com fotos minhas de Florença, onde aparece uma imagem da escultura de Davi, de Michelangelo, onde genitália está visível. A Sandra alegou que eu estava comparando “alhos com bugalhos” e que trata-se da genitália humana, mas que a foto da escultura poderia ser impressa em fotolivro.

Sandra explicou, “arte tem nu, é natural, nada esta sendo questionado, o problema é pessoa juridica é uma opção da Digipix não aceitar publicar imagens de genitália visível, mas pode passar, se tiver uma ou duas fotos no meio, é possível que passe.”

Perguntei se eu poderia publicar um fotolivro com o trabalho “Second Skin” da minha esposa, Louise Chin, que fotografou modelos nuas em estudio e depois convidou 33 artistas para pintarem prints de seus corpos nus. Em algumas fotos os artistas cobriram parcialmente a genitália, em outros não, mas trata-se de um trabalho claramente não pornográfico e que foi exposto em galerias (SP e Italia) sem qualquer tipo de restrição de idade/acesso.

http://www.lost.art.br/2ndskin.htm

Sandra explicou que “se for algo coberto, que nao apareca, tudo bem”, perguntei se havia como consultar, a Digipix ANTES de entrar com os arquivos, e ela disse que “nunca alguem fez esse questionamento. é passivel de ser barrado, depende do conteúdo”.

Perguntei se ela poderia receber imagens para avaliação ANTES do pedido, para ver o livro seria aceito ou não, e ela me explicou que poderia verificar caso a caso se houvesse alguma dúvida, para evitar os problemas de prazo que ocorreram com o Gal.

Perguntei se ela poderia me indicar outro lugar para imprimir fotolivros com nudez/genitália visível e ela não soube me indicar.

A Sandra explicou que os termos de uso são claros, quem envia material aceita os termos, e que não entende porque tanta polêmica, que “seria como ir a um restaurante vegetariano e pedir carne, a regra é clara e vale para todos.” “Tem agencia que nao faz publicidade de cigarro e nao vai fazer e pronto, é a postura da empresa.”

Perguntei sobre a postura da Digipix em relação a quem usa MAC. A Sandra disse que em reuniões com fotógrafos sempre “é trucidada por não ter versão para MAC.”

Explicou que ainda estão tentando aperfeiçoar e melhorara o sistema para PC, que se existe um plano para atender quem usa MAC é para longo prazo, e que todo mundo que usa MAC consegue enviar os arquivos via PC. Perguntei se haviam instruções para quem usa MAC no site da Digipix e ela me disse que não.

Perguntei se havia algo no site explicando o ocorrido com o Gal e ela me disse que não, mas que existe uma resposta enviada via e-mail para o Gal e para a Folha de S. Paulo.

Sandra concluiu dizendo que “nao acho que um fato pontual possa manchar que fizemos em 5 anos.”

A descrição acima não é nada “oficial”, trata-se apenas de um relato meu após ver pessoas manifestarem-se há dias sobre algo ocorrido sem dar-se ao trabalho de checar a fonte.

Tentei falar com o Gal mas não consegui (acho que esta em NY), mas a versão dele (e-mail) já está disponível em inúmeras listas e foruns.

Da minha parte, NUNCA usei serviços da Digipix, porque uso MAC. Costumamos trabalhar com produtores gráficos que utilizamos regularmente para as nossas necessidade de impressão.

Se tiver alguma dúvida adicional, sugiro ligar para a Sandra.

abrazos,

ig”

Atualização: 21/1/09 – Resposta do Gal Oppido ao e-mail da Digipix

UM CIDADÃO INDEVIDO

É exatamente como me sinto, após a interdição de meu acesso a produto intelectual gráfico de minha autoria, portanto de minha responsabilidade, já pago e impresso pela empresa Digipix.
Desde as minhas primeiras experiências ligadas à expressão por imagens, através de desenhos e/ou fotografias, sempre foi claro que estas ferramentas me possibilitariam discutir inquietações latentes que poderiam ser socializadas no sentido de fornecer mais critérios de análise, e deste modo me instrumentalizando mais para a prática da vida.
O corpo nu para mim funciona como uma folha em branco, pois cada traço que pousa nesta folha instantaneamente ganha significado, o mesmo acontece com o corpo na sua solidão cósmica e material, quando a ele se agrega vestes, intervenções cirúrgicas, a força da gravidade e outros acessórios instalados mediante um número infinito de ações e imposições; sejam elas de ordem moral, religiosa, de proteção orgânica, de ostentação de valor e poder, etc.
O corpo revela a história de sua humanidade.
Estes ensaios ora censurados, alguns deles, fazem parte da Coleção MASP- Pirelli, dos acervos do MAM e do MIS, foram expostos na França, Holanda, Alemanha, Portugal, Angola, Cuba e Colômbia representando o Brasil em mostras coletivas, mereceram o Prêmio APCA de Melhor Fotografia em 1991, participaram de publicações internacionais sobre fotografia Latino-Americana, foram motivo de palestras em universidades, fundações de ensino e espaços culturais, são expostos por TV educativas e foram objeto no último dia 06 de dezembro de 2008, de palestra e material didático para professores de arte da rede pública estadual.
Sou professor na área de artes visuais desde março de 1973 e há oito anos ministro curso de linguagem e conteúdo em fotografia no MAM; neste último semestre decidimos documentar os trabalhos desenvolvidos em formato de livro impresso similar ao produto da empresa acima citada.
Meus alunos compartilharam imediatamente da idéia sugerida pelo mesmo motivo que me levou a encadernar os meus primeiros desenhos: possibilitar desta forma dividir coletivamente as experiências desenvolvidas.
O livro pós-barrado e que há três meses estamos preparando sua edição foi o suporte escolhido para expor meu trabalho junto a galerias da cidade de Nova York.
O material foi enviado dia 23 de dezembro de 2008 com garantia de entrega dentro do prazo, até dia 2 de dezembro de 2008.
Fui comunicado da censura e intenção da destruição do mesmo na tarde do dia 30 de dezembro de 2008 pelo fornecedor, impossilitando assim de dar prosseguimento ao meu projeto, uma vez que viajo hoje dia 3 de janeiro de 2009.
Fica a questão:
Jerôme Bosch, Leonardo da Vinci, Pablo Picasso, Gustav Klimt, Egon Schiele, Jeff Koons, Robert Mapplethorpe e meus alunos teriam livros impressos pela Digipix?
É possível uma empresa que lida com imagens ter conhecimento tão limitado a respeito do universo a qual está inserida? Pois no momento em que ela julga e condena, presume-se que hajam critérios elementares sobre o objeto e autor em questão. Afinal para tal decisão seria plausível um mínimo de ponderação e consulta pois me atinge moral e profissionalmente.”
Gal Oppido

Pixelgrafia

Recebi através do Flickr o contato do estudante Rodrigo Balan Uriartt, que está prestes a se graduar em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rodrigo está desenvolvendo um projeto para seu trabalho de graduação que mistura a tecnologia presente e passada na produção de fotografias: a sensibilização de papel fotográfico pela tela de um computador. Ele descreve o passo a passo do processo:

“1. Preparo a imagem desejada no Photoshop, transformando-a em PB. Inverto para negativo (ctrl + i). Rotaciono horizontalmente (para que a cópia em papel saia na posição original).

2. Uso o IrfanView para visualizar a imagem (chamo-a de matriz) em tela cheia e desligo a tela.

3. Transformo a sala de casa em um laboratório elementar. Três bandejas na mesa com revelador, interruptor (água com vinagre) e fixador – coloco uma luz vermelha de segurança no abajur.

4. Estando tudo no lugar, químicos à postos, imagem na tela desligada do PC, tudo escurinho sob a luz vermelha, coloco o papel sobre o monitor (deitado na horizontal), com um livro ou mousepad para pressionar o papel melhor sobre a superfície, e o exponho ligando e desligando rapidamente o botão do monitor. Esse tempo é bem pequeno (dependendo da imagem matriz e do contraste do papel) – coisa de meio segundo! Mais que isso vela o papel… (Incrível a luz que é emitida e que chega aos nossos olhos todo instante).

5. Seguem os passos normais de revelação, interrupção, fixação e banho da cópia.”

Veja algumas imagens produzidas com o procedimento criado por Rodrigo:


Sonata – Rodrigo Balan Uriartt


Triplo eu – Rodrigo Balan Uriartt


Registro – Rodrigo Balan Uriartt

É uma solução curiosa, mas muito interessante pelos resultados e pela técnica híbrida de produção de imagens, coisa que seria muito bem vista pelo Flusser, de A Filosofia da Caixa Preta. No entanto, o método tem alguns pontos que devem ser considerados, como o próprio Rodrigo explica:

“1. A velocidade de exposição é muito rápida (não dá pra se fechar o obturador do ampliador. Tudo que se pode fazer é reduzir o brilho da tela ao mínimo possível. Então esse tempo de ligar e desligar o monitor tem que ser feito à mão e intuitivamente, pois, até agora, não descobri nenhum programa que administra-se isso.

2. O preto numa tela de computador ainda emite luz. Isso quer dizer que, às vezes, é difícil conseguir tons absolutamente brancos (às áreas pretas na imagem em negativo) no resultado. Para consegui-los tenho trabalhado com imagens mais contrastadas.

3. Em conseqüência dos fatos 1 e 2 a probabilidade de se obter imagens levemente veladas (meio cinzas) é bem grande. Gostaria de experimentar o processo num papel de sensibilização mais lenta, mas ultimamente já está bem difícil achar o material PB! Uma saída seria testar em processos alternativos, tipo goma bicromatada e afins…

4. Nós não percebemos mas as imagens, projetadas na tela de cristal líquido de um computador, são formadas em pixels luminosos por detrás de uma fina película protetora. Essa estreita camada faz com que o papel não fique em absoluto contato com a fonte emissora, ou seja, as imagens resultantes se apresentam levemente desfocadas ou flou.”

Os primeiros trabalhos com essa técnica podem ser vistos no site Pixelgrafx e os mais recentes podem ser encontrados na galeria de Rodrigo Uriartt no Flickr.

Slideshows de Fernando E. Aznar

Se por um lado um dos encantos da fotografia é a possibilidade de representar o estado das coisas em um período ínfimo de tempo, por outro isso também é uma de suas grandes limitações. Ao se resumir a uma imagem estática, a foto é apenas um breve recorte de uma cena, uma idéia ou qualquer coisa que o autor escolheu. Depois do cinema e da TV, que usam a fotografia para a construção de representações mais completas, os computadores domésticos e a Internet permitem a criação e veiculação de novos formatos que também se baseiam nas fotos.

Uma dessas possibilidades são os slideshows. Montados a partir de seqüências de fotos, eles propiciam a adição de diversas camadas de representações, idéias, significados e sensações, ao contar com uma ordem, um ritmo, movimento e som. Fernando E. Aznar tem se aprimorado nessa forma de mostrar suas fotos. Depois do Ausências, Baixas Luzes e do Sentido Vago (com as fotos do livro homônimo), entre outros, ele produziu recentemente O Tigre o Drgão em Ti, a partir de fotos feitas em Parati. Vale a pena conferir.

A utilidade e o compromisso

A maior parte das grandes obras de arte já produzidas não foram feitas com o intuito de “fazer arte”. Pelo contrário, elas tinham um objetivo claro: decoração de um ambiente, finalidade religiosa, retratos de pessoas influentes ou registros históricos. Só tardiamente na história da arte as obras passaram a ter uma conotação poética e apenas muito recentemente a arte passou a ter uma certa autonomia, desvinculada de outros objetivos; antes disso, o trabalho do artista sempre tinha uma utilidade anterior ao ser caráter de obra de arte.

Sendo assim, será possível, na fotografia, fazer arte quando se é um fotojornalista, um fotógrafo publicitário ou de eventos? Ou melhor, é possível fazer arte quando se é um fotógrafo profissional durante o trabalho? Ou a questão da utilidade impede um trabalho artístico pleno? Se tomarmos o conceito mais abrangente e histórico de arte, veremos que é possível, pois todo fotógrafo profissional, ao trabalhar com a imagem e com a representação da realidade, seria um artista. Ainda assim, a qualificação da sua produção dependeria dos valores estéticos, da relevância social e outros aspectos.

Não obstante, o que costumamos ver é que a maior parte dos fotógrafos profissionais consagrados têm uma fotografia comercial e uma fotografia autoral. A impressão é que o fotógrafo não pode desenvolver plenamente seus questionamentos e intenções enquanto trabalha. Isso é curioso, porque não ouvimos falar de pintores comerciais e autorais, escritores comerciais e autorais. O que há no trabalho com a fotografia que impede essa integração?

Há alguns dias, numa conversa sobre psicologia com o Ivan, ele comentou algo do tipo: “eu não tenho compromisso com nenhuma teoria, portanto posso usar o que me interessa de cada uma”. Eu pensei que a minha relação com a fotografia era, também, uma relação de não-compromisso. Não trabalho com ela, não tenho nenhuma obrigação em relação a nada associado a ela e é justamente isso que me possibilita fazer fotos e escrever sobre o assunto. Sendo uma atividade totalmente livre e descompromissada, a fotografia pra mim é recompensadora por si só. A única utilidade que ela tem é estritamente pessoal, ao possibilitar uma visão de mundo, ao ser um objeto de estudo e de conversa entre amigos.

Parece-me, então, que a fotografia autoral depende um pouco dessa liberdade, do não-compromisso com pautas, clientes, eventos etc. Ao menos, é o que indica a atitude dos fotógrafos que dividem sua produção profissional da artística. No entanto, é interessante que esses autores tenham espaço em suas vidas para utilizar a mesma fotografia que paga as contas para se expressar e criar o mundo que concebem. Embora hoje a arte não esteja mais ligada a uma utilidade, como antigamente, e se sustente por si só, ainda assim uma utilidade parece continuar sendo necessária, que é a de satisfazer a necessidade pessoal de dar a sua visão sobre o mundo e sobre a existência.

Cássio Vasconcellos

Um dia desses peguei na SescTV (antiga TV Senac, antiga STV) o programa O Mundo da Fotografia. A edição apresentava o trabalho do fotógrafo Cássio Vasconcellos, destacando três dos seus projetos. O fotógrafo já foi vencedor do Prêmio Porto Seguro de Fotografia, em 2001 e tem no seu currículo inúmeras exposições individuais e coletivas, bem como participaçãm em livros.

Os trabalhos apresentados no programa se destacam tanto pela diversidade de temas como pela variação de técnicas a fim de obter os resultados desejados para cada uma das propostas. Um deles era uma série sobre o mar, com fotos de navios e de paisagens marinhas. O autor explicou que, para obeter uma efeito nebuloso ou irreal, utilizou revelação com algodão e montagens com fita adesiva nos negativos. Já a coleção Panorâmicas mostra a cidade através de perspectivas incomuns, criando novas formas de ver o cotidiano, seja pela verticalização dos assuntos ou pelos cortes incomuns. A série noturnas, feita com Polariod e com luz artificial, também traz uma sensação de estranhamento em relação à cidade.

O trabalho de Cássio Vasconcellos, embora utilize técnicas totalmente diversas, na verdade busca sempre uma mesma coisa, que é a desconstrução da percepção, do conforto, do reconhecimento. Há nas fotos uma dose de fantasia, que vai da poesia urbana das panorâmicas ao onírico dos navios. Uma ótima obra para se ter como norte quando se faz fotografia por arte.

Site oficial: Cássio Vasconcellos

Alexandre Berner fotografa ao sabor do Rio Xingu

Alexandre Berner embarcou em mais uma aventura fotográfica, dessa vez através do Rio Xingu. Partindo de Altamira (PA), acompanhou os pescadores em sua rotina de trabalho e descreve com texto e fotos como é a vida desse povo.

“Não fui viajar com ribeirinhos. Esse povo mora mesmo é na cidade. Mas sua relação com o rio é íntima. Na verdade alguns passaram a maior parte da vida viajando pelo rio do que “em casa”. Novamente, por uns dias o bagaço da civilização ficou para trás. E dessa vez eu estava junto. Subimos o rio Xingu partindo de Altamira (PA) em busca dos peixes. Ficamos ligados ao planeta em seu estado bruto. O sol racha e a chuva molha. O ar não é condicionado. Menos ainda o são piuns, carapanãs e suvelas. O corpo não é malhado, o tônus é natural. Todos comem no mesmo prato. A pátria d’água nos iguala.”

Texto e fotos: Alexandre Berner. Confira o ensaio completo no Fronteira Aberta.

Porto Interior e outras histórias de Inês d’Orey

Inês d'OreyNa série Porto Interior, da fotógrafa portuguesa Inês d’Orey, não há pessoas; apenas espaços vazios, tão impregnados da presença humana que parecem falar. E a fotografia, para a autora, é “uma maneira privilegiada de contar histórias”. Sobre a busca que realizou em sua cidade natal, a autora diz: “os espaços vazios que vou procurando ou encontrando são palcos para uma história que nunca é clara, e que nunca se procura ser clara. O meu objectivo não é documentar estes espaços, mas explorar o possível e o impossível de um porto interior.”

Nascida em 1977, na cidade do Porto, e formada pela Universidade do Minho em Relacões Internacionais Culturais e Políticas, Inês cursou fotografia por quatro anos na London College of Printing.

Realizou quatro exposições individuais e recebeu, neste ano, o prêmio FNAC Novos Talentos.Seu trabalhos podem ser vistos no seu site pessoal: Inês d’Orey, ou no portifólio do Young Photographers United, do qual é membro.

A Arte da Inadequação: texto do cineasta Abbas Kiarostami

ak-notitle-1.jpgMeu colega de discussões online Flávio Varrichio indicou o texto do cineasta Abbas Kiarostami, publicado originalmente pelo caderno Mais! da Folha de S. Paulo em 17 de outubro de 2004.

Acho particularmente interessante a questão da inconpletude da fotografia levantada pelo autor. Pois, se por um lado isso amplia as possibilidades poéticas, por outro parece dissonante com todas as atribuições e usos que fazemos da fotografia atualmente. Segue a íntegra do texto.

A ARTE DA INADEQUAÇÃO

por Abbas Kiarostami

Fiz muitas coisas ao longo de minha vida e me servi de instrumentos diversos: a pintura, as artes gráficas, a publicidade, a televisão, o cinema, a fotografia, o vídeo, a poesia. Finalmente, fiz até mesmo teatro. E poderia acrescentar outras coisas a essa lista. Por exemplo, a certa altura de minha existência fiz carpintaria, quando decidi construir sozinho os móveis de minha casa, mesmo sabendo pouco sobre isso. Tudo isso, para mim, tem a ver com um problema de inquietude, com o fato de ter de sobreviver de qualquer maneira e reagir a um profundo sentimento de inadequação. Experimento continuamente a exigência de fazer qualquer coisa de novo para ser mais bem aceito. Muitos consideram que na vida é preciso estabelecer uma meta para encontrar o sucesso, mas eu não acredito que funcione dessa maneira. Talvez no mundo dos negócios ou no âmbito científico. Na arte, ao contrário, o aperfeiçoamento só pode surgir da inadequação. Pensamos ser inadequados, não bastante bons, e nos esforçamos para fazer algo diferente. Tenho uma amiga que é uma excelente tradutora. Não que tenha trabalhado muito como intérprete, mas, se lhe dão um texto em inglês ou em francês, ela é capaz de vertê-lo imediatamente e com grande facilidade ao persa, a ponto de nos fazer pensar que está lendo um texto já traduzido. Um dia eu lhe disse: “Se você fosse minha filha, eu a admiraria não pela sua capacidade, mas pelo fato de você jamais trabalhar”. Ela me deu uma resposta belíssima: “Estou contente comigo mesma. Não preciso ver meu nome na capa de um livro como tradutora”. Não há nenhuma razão especial pela qual eu tenha me tornado um realizador cinematográfico. Meu pai era caiador de paredes e não me lembro de nenhum sinal de vida cultural em minha família. Não vejo, no meio em que vivi, nenhum sinal particular que me houvesse encaminhado para a carreira artística e em especial para o cinema. Talvez seja por isso que até agora não tenha conseguido encontrar uma definição de cinema. Mas posso dizer do que não gosto nele. Não gosto quando se limita a contar uma história ou quando se torna um substituto da literatura. Não aceito que subestime ou exalte o espectador. Não quero estimular a consciência do espectador nem criar nele sentimentos de culpa. No mínimo, creio que se deveriam narrar os fatos de modo que ele não seja levado a sentir-se culpado. Se considerarmos que o cinema tem o dever de contar histórias, parece-me que o romance faz isso melhor. As novelas radiofônicas, os dramas e as “soap operas” [novelas] televisivas fazem, neste sentido, um bom trabalho.

Arte menor
Ultimamente, tenho pensado em um outro tipo de cinema, que me torne mais exigente e que se defina como uma sétima arte. Nesse cinema há música, sonho, história, poesia. Mas, seja como for, acho que o cinema continua a ser uma forma de arte menor. Questiono-me, por exemplo, por que motivo ler uma poesia excita a nossa imaginação e nos convida a participar de sua realização. Sem dúvida, a poesia, não obstante seu caráter de incompletude, é criada para alcançar uma unidade. Quando minha imaginação se mistura com ela, a poesia torna-se minha. A poesia nunca conta histórias. Oferece uma série de imagens. Representando-as em minha memória, apoderando-me de seu código, posso elevar-me ao seu mistério. Raramente encontrei alguém que, ao ler uma poesia, dissesse: “Não a compreendi”.
Porém, de um filme, se alguém não capta uma relação, uma conexão, geralmente diz que não o entendeu. Ao contrário, a incompreensão faz parte da essência da poesia. Aceita-se tal como ela é. O mesmo vale para a música. O cinema é diferente. Nos aproximamos da poesia pelos nossos sentimentos e, do cinema, por nosso pensamento ou por nosso intelecto. Não se imagina que alguém possa contar uma poesia, mas é normal contar, ao telefone, um bom filme a um amigo. Penso que, se queremos que o cinema seja considerado uma forma de arte maior, é preciso garantir-lhe a possibilidade de não ser entendido. Como dizia, não suporto o cinema narrativo. Abandono a sala. Quanto mais se esforça por contar e quanto mais sucesso tem nisso, maior é minha resistência. A única maneira de prefigurar um cinema novo reside em um maior respeito pelo papel desempenhado pelo espectador. É preciso antecipar um cinema “in-finito” e incompleto, de modo que o espectador possa intervir para preencher os vazios, as lacunas. A estrutura do filme, em vez de sólida e impecável, deveria ser enfraquecida, tendo em conta que não se devem deixar escapar os espectadores! Talvez a solução adequada consista em estimular os espectadores a uma presença ativa e construtiva. Por isso, estou meditando a respeito de um cinema que não faça ver. Creio que muitos filmes mostram demais e, dessa maneira, perdem o efeito. Estou tentando entender o quanto se pode fazer ver sem mostrar. Neste tipo de filme, o espectador pode criar as coisas de acordo com a sua própria experiência, coisas que não vemos, que não são visíveis. Em “O Vento Nos Levará” [de Kiarostami, 1999], por exemplo, há 11 personagens que não aparecem de modo nenhum. No fim, nos damos conta de que não os vimos, porém sabemos que estavam lá e que coisas faziam. Por exemplo, de nada adianta mostrar a mulher de Behzad (o protagonista de “O Vento Nos Levará”): seu aspecto físico não tem nenhuma importância. O fato de não vê-la não impede o espectador de ter uma idéia da relação que existe na intimidade do casal e de imaginar o que responde ao seu marido. O espectador tem de intervir se quiser perceber tudo. Aliás, precisa colaborar em seu próprio interesse, para que o filme se enriqueça. Se sugerirmos ao espectador que ele veja apenas o que se mostra através das lentes da câmera -que se trata de uma visão limitada da cena-, então ele poderá imaginar o resto, aquilo que está além daquilo que seus olhos alcançam. E os espectadores têm uma mente criativa. Se, por exemplo, não vemos nada, mas ouvimos o som de um carro que breca num cruzamento e depois bate em algo, automaticamente temos a imagem mental de um acidente. O espectador sempre tem a curiosidade de imaginar o que existe para além de seu campo de visão: está acostumado a fazer isso continuamente na vida cotidiana. Mas, quando as pessoas entram num cinema, por hábito deixam de ser curiosas e imaginativas e simplesmente recebem o que lhes é oferecido. É isso o que procuro mudar. Suponho que o sonoro pode assumir o papel do que não é visível. Não é preciso dizer tudo ao espectador. As pessoas têm idéias diversas umas das outras, e eu não quero que todos os espectadores completem o filme em sua imaginação da mesma maneira, como se fossem palavras cruzadas idênticas, independentemente de quem as estiver resolvendo. Não deixo espaços em branco apenas para que as pessoas tenham algo para completar. Deixo-os em branco para que as pessoas possam preenchê-los de acordo com o que pensam e querem.

Olhos emprestados
Em minha perspectiva, a abstração que aceitamos nas outras formas artísticas -pintura, escultura, música, poesia- também pode entrar no cinema. Em persa, temos um ditado que afirma, quando alguém olha algo com verdadeira intensidade: “Tinha dois olhos e pediu mais dois emprestados”. Estes dois olhos tomados de empréstimo são aquilo que quero capturar. É o desejo de lutar contra tudo o que os filmes de entretenimento fazem diariamente: pretender mostrar tudo ao público, a ponto de tornarem-se pornográficos. Não digo sexualmente pornográficos, mas no sentido de mostrar uma operação cirúrgica sem véus, em todos os seus detalhes repugnantes. Sinto que cada vez que um espectador tem o impulso de virar a cabeça ou olhar para o outro lado é porque essas cenas não são necessárias na tela. Ao contrário, minha maneira de enquadrar a ação obriga os espectadores a manterem-se mais direitos e a esticar o pescoço para tentar enxergar aquilo que eu não mostro! Num dia em que não tinha nada para fazer (eram os primeiros anos da revolução, e nosso trabalho de cineastas fora interrompido por fatos políticos), comprei uma câmara fotográfica Yashica barata e fui até o campo. Sentia necessidade de sentir-me em unidade com a natureza, era ela que me guiava. E, ao mesmo tempo, tinha necessidade de partilhar com os outros os bons momentos que testemunhava. Assim, comecei a tirar fotografias para tornar de alguma maneira eternos esses momentos de paixão e de dor. Há 25 ou 26 anos faço seriamente fotografia. Nem sempre sou cineasta, pelo contrário, realizo um filme a cada dois ou três anos, mas freqüentemente as regras narrativas me impedem de realizar certas imagens que tenho em mente. No cinema, infelizmente, é preciso contar uma história, ao passo que na fotografia somos mais livres, e uma estrada que se estende em direção a um certo lugar que não se vê pode abrir-nos um mundo desconhecido. Essa fotografia não conta uma história, mas nos deixa a liberdade de imaginá-la. Ante uma fotografia, o espectador pode fazer a sua própria viagem. Por isso, às vezes penso que a fotografia é uma arte mais completa; que uma fotografia, uma imagem estática, vale muito mais que um filme. O mistério de uma fotografia permanece em segredo porque é sem sons, não há nada em seu entorno. Uma fotografia não conta uma história, e por isso está em perene transformação. Sobretudo, tem uma vida mais longa que a do filme. Numa conferência sobre a paisagem na Dordonha [região do rio homônimo, no sudoeste da França], em setembro de 2000, apresentei duas fotos da mesma paisagem com poucas árvores. Sem comentários. Quinze anos separavam as duas imagens. Quando as vejo, sinto medo. São, de fato, duas fotografias tiradas exatamente do mesmo ponto de vista, do mesmo ângulo, que representam a mesma paisagem. Mas no intervalo de tempo algumas árvores desapareceram. Na fotografia mais recente, nota-se a ausência delas.

Dizer muitas coisas
Sinto-me, hoje, mais fotógrafo que cineasta. Às vezes penso: como fazer um filme em que não se diz nada? Se as imagens conferem ao outro o poder de as interpretar, extraindo delas um sentido, um sentido que eu nem imaginava, melhor é não dizer nada e deixar o espectador livre para imaginar tudo. Ao contar uma história, conta-se uma história. Cada ouvinte, com sua capacidade de imaginar coisas, ouve uma única história. Mas, quando não dizemos nada, é como dizer muitas coisas. O poder se transfere ao espectador. [O escritor francês] André Gide [1869-1951] dizia que o que conta é o olhar, não o argumento. E, para [o cineasta francês Jean-Luc] Godard [1930], o que se vê na tela já está morto. Só o olhar do espectador é capaz de insuflar-lhe vida.
Não trabalho sobre os negativos. Para mim, um negativo, uma fotografia, não tem valor do ponto de vista da arte fotográfica senão quando não foi alterado ou cortado para a finalidade da impressão. Por isso é preciso que as bordas, a moldura preta que circunda o negativo da imagem seja visível, para que a fotografia seja válida. É o olhar do fotógrafo que importa, quando este se encontra em meio à natureza, e não quando, no laboratório, tem tempo de escolher, de eliminar aquilo que não lhe agrada ou de conservar o que lhe interessa. Por isso, minhas fotografias são tal e qual como foram tiradas.
É por isso que nas impressões de todas as minhas fotos mantenho a linha negra que circunscreve o fotograma como um documento: é a prova de que não houve manipulação da imagem. Em muitas de minhas fotografias, só aparece um elemento, como uma árvore, um único animal ou uma estrada solitária. Não sei até que ponto isso depende de uma escolha estética ou conceitual. Mas, naturalmente, uma árvore sozinha é mais árvore do que muitas árvores. Conhecem a história do menino que pediu ao pai para lhe mostrar uma floresta? O pai concordou, e, quando chegaram, o pai perguntou se o menino avistava a floresta. Admirado, o menino disse: “Vejo, mas são tantas árvores que quase não consigo ver a floresta”. Quando se tem tanta árvore alinhada de um lado a outro, já não se vêem as árvores. Vê-se outra coisa que transmite um outro conceito. Penso que se pode ter a mesma impressão quando há muitas pessoas juntas. Também elas perdem a própria individualidade e tornam-se massa e se conservam juntas por causa de seu interesse social. Nessa situação, as pessoas concentram-se unicamente em torno de seus interesses coletivos, tornam-se maravilhosas como protagonistas de um movimento social, mas não possuem nenhuma individualidade. As pessoas podem pensar de forma diferente para si, mas rendem-se aos interesses coletivos, que acabam por destruir a sua individualidade.

Impotência diante da tela
Antes de me tornar fotógrafo, pintava, mas nunca me considerei um pintor. A academia de belas-artes ajudou-me a perceber que não sou um pintor. A pintura era uma espécie de terapia. Antes de passar à pintura, eu era sobretudo um voyeur. Quero dizer que me concentrava em detalhes que, para outros, eram insignificantes. Interessava-me por tudo aquilo que lhes dizia respeito, mas jamais consegui pintar o que via. Sentia-me impotente diante de uma tela, e essa impotência me desafiava ainda mais a pintar. A descoberta da câmera fotográfica talvez tenha substituído a terapia da pintura. A natureza é uma grande pintora, que pinta com vários estilos e métodos. Às vezes basta um clique para tornar eterno um momento da existência desse grande pintor. Hoje, prefiro registrar por meios mecânicos as suas maravilhas, com as quais meu pincel não pode competir. Deixei de pintar em 1982. Abri uma exceção em 1988, ao realizar um quadro que pode ser definido como hiper-realista. Trabalhei nele uns 20 dias, paciente e escrupulosamente. Quase se é obrigado a empregar uma lente de aumento para distinguir essa paisagem de uma fotografia. Foi, para mim, uma verdadeira terapia: ainda hoje, contemplar esse quadro é suficiente para me tranqüilizar. Por três vezes em minha trajetória não posso dizer que o uso do digital tenha me sido imposto, mas apresentou-se a mim. Por exemplo, em “Gosto de Cereja” [1997], eu havia rodado a cena final, mas os negativos foram estragados em laboratório, e assim perdemos o ponto culminante da primavera. Não podíamos esperar outro ano para obter a mesma paisagem. Por isso, tive de recorrer às imagens gravadas com uma câmera digital por uma pessoa da trupe, que tinha filmado o “backstage”. A segunda vez em que utilizei o digital foi em “ABC África” [2001]. Tinha levado comigo duas câmeras apenas para tomar alguns apontamentos; inicialmente não havia nenhuma intenção de usar os registros realizados nesse estágio. Quando fui assistir ao filme que tinha gravado, percebi que seria impossível voltar a filmar com uma câmera 35 mm e obter a mesma simplicidade e vitalidade conseguidas com a câmera digital. Da terceira vez, escolhi conscientemente o digital e, munido de uma pequena câmera, saí em busca de meus atores. Acho que seria impossível fazer “Dez” [2002] sem o uso do digital, porque essas câmeras nos restituíram a intimidade das pessoas, aproximaram o autor de sua obra, suprimindo os intermediários. Há uma prece que diz: “Deus, mostrai-me as coisas e as pessoas por aquilo que elas são e eliminai as falsidades que podem confundir minha percepção”. E Deus criou a câmera digital. Em “Dez”, minha intenção não era criticar a câmera 35 mm, mas a maneira como ela é utilizada. Ela tornou-se, na verdade, o símbolo dos cavaleiros do Apocalipse. A câmera digital permite que nos afastemos da tecnologia e da indústria do cinema, possibilita evitá-la. Quando se trabalha com os capitalistas, com aqueles que colocam o dinheiro, criam-se algumas obrigações, temos de prestar contas. Não precisamos mais disso. O cinema não precisa de tantos instrumentos. Hoje, os cineastas encontram-se sob o jugo dos instrumentos de cinema, são obrigados a utilizá-los, de uma maneira ou de outra. [O cineasta francês] Eric Rohmer [1920] não gosta dos filmes onde o trabalho da câmera se vê demais, porque ergue um anteparo entre o espectador e a realidade reconstituída pelo filme. É verdade. Mas, à presença da câmera, eu acrescentaria a presença do realizador. Há cenas em que a presença do realizador é mais evidente do que em outras. Até a música, por exemplo, faz parte das escolhas do realizador. Foi imposta por ele. É como se tivesse a intenção de simular algo e nos informasse: “Agora vocês devem se tornar sentimentais”. E oferece um conselho supérfluo, como se apresentasse um lenço: “Tudo bem, podem chorar, isso me dará prazer”. Depois há esses movimentos incríveis de câmera, ante os quais nos perguntamos, por exemplo, como a câmera conseguiu atravessar uma janela. Esquece-se a história e persegue-se a mágica da câmera, os sortilégios do diretor. Em “Dez”, o espectador fica alheio aos protagonistas, que não parecem se dirigir a ele. O espectador nunca é colocado no lugar deles. Isso corresponde à eliminação do autor.

Filme sem diretor
Num dia, fizeram-me um elogio involuntário, que me impressionou muito. Apresentaram-me alguém, com as seguintes palavras: “Eis o diretor de “Close-Up” [1990]”. O sujeito, que não era do mundo do cinema, respondeu: “Ah, eu pensava que o filme não tivesse um diretor!”. Achei essa idéia sublime. Foi isso o que tentei fazer com “Dez”. Dito isso, é provável que eu realize o próximo filme novamente em 35 mm.
Com o passar do tempo, minha atração por muitas coisas diminui, dia após dia. Quero dizer que já não tenho o mesmo grau de preocupação com os meus filhos, que meu apetite por comida é menos intenso, que o desejo de ver meus amigos é menor. O que substituiu tudo isso e que se torna cada vez mais forte, embora não me atraísse em minha primeira juventude ou eu não o percebesse, é o desejo de estar na natureza, de contemplar o céu, o outono, as quatro estações.
Muitas vezes declarei a meus amigos: “Essa é a única coisa que me faz temer a morte”. Não o medo de morrer, mas a idéia de perder a natureza que ainda tenho, a possibilidade de contemplar o mundo. Porque o único amor que aumenta de intensidade a cada dia, enquanto os outros amores perdem sua força, é o amor pela natureza. É por esse motivo que meus próximos filmes ainda continuarão a observar a natureza, e de fato seus temas constituirão um pretexto para encontrar-me de novo no meio dela.
Não me sinto particularmente orgulhoso daquilo que realizei no decorrer de minha vida artística. Acho que o sentimento do “orgulho” é inadequado à condição humana. Nem sinto nenhum arrependimento quando recordo o passado. Vejo apenas uma vida comum. Temos, normalmente, tendência a lamentar as coisas que nunca fizemos. Às vezes o tempo parece tão curto que somos levados a pensar que não há, de fato, tempo. Mas esse remorso também não me faz sofrer, porque acho que sempre fiz aquilo que quis.
Quanto ao futuro, simplesmente não tenho tempo de pensar nele.

Tradução de Alvaro Machado.

O fotoclube F/508

marca-baixa.jpgAparentemente, o fotoclubismo no Brasil tem ganhado força nos últimos anos por conta da popularização da fotografia digital. Muitas pessoas têm interesse em aprofundar o conhecimento na área ou de se reunir em grupos para trocar idéias e fotografar. A Confoto, entidade que reúne parte dos fotoclubes existentes, tem mais de 40 filiados.

Além de estarem distribuídos em várias regiões do Brasil, os fotoclubes apresentam formações e propostas heterogêneas. Um dos clubes que têm atividades diferenciadas, por inclinar-se à fotografia autoral e no trabalho com a comunidade, é o fotoclube F/508, de Brasília.

Entre os projetos sociais, o clube realizou o “Retratando com a Alma”, oficina com deficientes visuais e “Espelho da Memória”, que tem como objetivo a inclusão visual dos habitantes da periferia de Brasília. Atualmente, o grupo está engajado no retrato das dificuldades enfrentadas por deficientes físicos e idosos no cotidiano, proposta denominada “Corpo Cidadão”.

Dentro dos projetos internos do clube há exposições e um livro, o “Ensaios Um”, que me foi enviado pelo coordenador do clube, Humberto Lemos. A publicação reúne trabalhos dos fotógrafos Camila Martins, Cristiano Peçanha, Flora Egécia, Janaína Miranda e Rodrigo de Oliveira. As séries, todas em preto e branco e com apoio em texto poético, demonstram afinidade pela exploração conceitual da fotografia. Por e-mail, Lemos explica os porquês da proposta diferenciada e da produção de qualidade do 508:

O f/508 nasceu há dois anos em decorrência de um curso bastante extenso que ministrei na época. Talvez o seu diferencial seja exatamente esse, ter nascido da união de pessoas que queriam continuar aprendendo e não de fotógrafos já profissionais. O F/508 não discrimina uma cybershot ou pessoas que querem somente ter o prazer de fotografar.

Hoje somos um grupo de 20 fotógrafos, com alguns em vias de se profissionalizar. Em nossas reuniões semanais discutimos alguns projetos sociais e culturais, antropologia visual, semiótica aplicada à fotografia, desconstrução do olhar, imersões técnicas.

Ou seja, a qualidade das atividades do fotoclube se baseiam no perfil dos membros que, por não serem profissionais e por terem se formado em um curso, podem estar mais abertos à experimentação, a usos alternativos da fotografia — inclusive como ferramenta de atuação social — e a um desenvolvimento da linguagem. Além disso, o clube parece funcionar com pouca burocracia e uma imersão na fotografia que se dá tanto pela prática como por estudos teóricos.

Para conhecer o F/508, acesse www.fotoclubef508.com.