Fotografia autoral

O termo fotografia autoral – ou fotografia de autor – é usado com frequência para descrever as fotografias que são fruto de um projeto pessoal de um profissional consagrado, ou ainda para referir-se à fotografia que é vista como arte, em oposição à fotografia documental ou utilitária.

Mas o que é a fotografia autoral? Quais são seus limites e delimitações, quais são as suas características essenciais? Não há uma definição rígida sobre isso – se houvesse, não seria necessário escrever um artigo sobre o tema – de forma que podemos especular um pouco sobre as qualidades que colocam a obra nessa categoria diferenciada. Obviamente, esse texto refere-se apenas à minha opinião, uma vez que o tema é tão subjetivo.

Se formos ser literais, todas as fotografias são autorais, uma vez que sempre há um autor. É preciso, então, de alguma forma de classificação. Que critério pode ser estabelecido como decisivo para classificar uma fotografia como autoral? Podemos pensar em algumas possibilidades: estética, originalidade, validação externa, transgressão da relação entre operador e aparelho.

gregory mc.

Estética: não é necessário entrarmos nos aspectos complexos de como analisar visualmente uma fotografia. Para o nosso interesse, podemos pensar numa foto bem resolvida esteticamente, em termos gerais. O que constatamos, no entanto, é que a maior parte das fotografias utilitárias, como as publicitárias, encaixam-se nesse critério. Em contrapartida, veremos que muitas fotografias autorais não têm o mesmo apelo visual, por vezes em detrimento de um conceito ou uma impressão. Concluímos, então, que a estética não é um fator definidor – e nem mesmo necessário – para a fotografia autoral.

Originalidade: é comum a ideia de que a arte deve ser inovadora. Isso pode ter sido verdade até meados do século passado. De lá para cá, as características da obra perderam importância na determinação da sua validade enquanto arte. Na fotografia, a tendência contemporânea tem pouco de inovação e mais de um olhar sobre a vida atual, pouco romantizada e quase antisséptica. Ou seja, a fotografia autoral não requer a reinvenção da roda.

John Curley

Validação externa: poderíamos ser extremamente pragmáticos e pensar na fotografia autoral como aquela que é tachada como arte nas galerias e museus. Embora grande parte da fotografia, especialmente nas galerias, encaixe-se nessa classificação, muitas vezes vemos trabalhos documentais, que foram feitos com objetivos específicos, como os jornalísticos, adquirirem valor artístico por outros aspectos, como o histórico ou o social, o que nos leva a descartar esse critério como determinante.

Transgressão: Flusser, em Filosofia da Caixa Preta, coloca o fotógrafo como um operador da câmera, um funcionário que atua de acordo com um programa pré-estabelecido. Para ele, quando alguém fotografa normalmente, está apenas confirmando esse programa. A fotografia criativa deveria ser a experimental, ou seja, a que quebra o domínio do aparelho através de modificações na câmera ou na ilusão de realidade montada por ela. Embora muito da fotografia autoral tenha um caráter experimental, o que vemos é que isso não é uma condição sine qua non para que sejam produzidos trabalhos relevantes.

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Podemos perceber, então, que qualquer critério rígido que busque classificar a fotografia autoral não dá conta de englobar todos esses tipos de trabalho. Não é a minha intenção propor uma solução pra isso, mas podemos pensar em alguns caminhos. Uma das questões é que, se estamos falando de um autor, então esse autor deve estar na foto. Não basta apertar o botão. Antes que se pense em questões técnicas, não estou falando de como fotografar, ou de usar o modo manual, nada disso. Refiro-me a desenvolver uma linguagem pessoal coesa, consistente, expressiva, que revele, através das imagens, o autor por trás delas.

Da mesma forma que reconhecemos um determinado escritor ou um músico pelo seu estilo, pela forma, o mesmo se aplica ao autor fotográfico. Fotógrafos consagrados conseguem imprimir sua linguagem independentemente da função da foto, seja ela experimental, documental ou utilitária. Portanto, a fotografia autoral tem uma característica abstrata que permeia a produção, mas que é sólida o suficiente para lhe dar unidade e coerência. Sendo assim, qualquer um pode tornar a sua fotografia autoral. No entanto, isso não está no referente, nem na câmera: o autor precisa encontrar a si mesmo.

“Contra a Interpretação”, de Sontag, e a fotografia

Sempre que vejo tentativas de explicação de obras de arte ou, mais especificamente, de fotografias, tenho a sensação de que algo não se encaixa ou falta, como se a transposição do visual para o verbal não fosse algo totalmente viável. Deparei-me, esses dias, com um ensaio da Susan Sontag, intitulado “Contra a Interpretação”, em que há o seguinte trecho:

“In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.”

A tradução seria mais ou menos essa: “Na maioria das instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a arte por conta própria. A arte real tem a capacidade de nos deixar nervosos. Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e interpretá-lo, a obra é domada. A interpretação torna a arte manejável, submissa.”

Na fotografia, uma das formas de se reduzir a obra é através da análise técnica, como já descrevi em “O Anteparo Técnico“. No entanto, não é a única forma. Uma outra forma bastante comum é tentar ler o que o autor quis dizer, como se houvesse todo um discurso subliminar em cada fotografia, e esse discurso seria mais importante do que aquilo que é mostrado claramente.

Temos uma tradição dualista que nos leva a pensar que tudo sempre tem uma razão, um motivo ou um conteúdo oculto. Mas na realidade, na maior parte das vezes as coisas são simplesmente o que são, e a busca por esses conteúdos, como diz Sontag em seu texto, é o “elogio que a mediocridade faz ao gênio”. Tanto que muitas formas de arte, como a pintura abstrata, fogem intencionalmente da possibilidade de interpretação – e, por isso, causam ainda mais incômodo.

Tomemos como exemplo a foto que ilustra esse artigo, de Chad Treolar, intitulada “Electrified”. É uma imagem incômoda. No entanto, o autor adiciona uma legenda explicativa ao postá-la, dizendo que é “uma tentativa de visualizar o conceito de que nossos corpos são carregados eletricamente que são essas cargas que, em última instância, dirigem nossos pensamentos”. Tivesse o autor deixado a imagem falar por si só, ela teria muito mais força do que com a sua própria interpretação.

Isso nos leva a pensar em como criticar fotografias. O primeiro passo é aceitar a foto, e não imaginar outra que poderia ter sido feita – mas não foi. O segundo é evitar excessivamente a interpretação, procurando significados ou intenções ocultas pelo autor. Não há forma de arte mais direta que a fotografia; procurar algo por trás é ir contra a própria natureza da obra. Seguindo esse preceito, a análise direta, através da descrição, da leitura atenta é um caminho interessante, reconhecendo não apenas o que a foto é como aquilo que ela suscita em nós como observadores.

Isso é difícil, pois o fato é que temos grande dificuldade em aceitar as coisas como elas são. Em contemplar sem entender, sem traduzir racionalmente aquilo que nos encanta, nos assombra ou nos incomoda. Talvez abrir mão desse expediente seja um primeiro passo para experimentar a arte tal qual ela é, sem tentar domá-la, ou aplacar o próprio incômodo frente aquilo que não pode ser circunscrito por palavras.

Referência: Sontag, S. (1964). Against interpretation. http://www.coldbacon.com/writing/sontag-againstinterpretation.html

Fotografia e entretenimento

Uma crise financeira como que o mundo enfrentou desde 2008 afeta praticamente todo tipo de atividade econômica existente. No entanto, há alguns tipos de indústria que não são tão vulneráveis às crises. Uma delas é a do entretenimento. Na sociedade atual, as pessoas precisam entreter-se todo o tempo, especialmente em tempos difíceis. Não importa o que aconteça, sempre nos mantemos assistindo à TV, indo ao cinema, a bares, baladas, restaurantes, jogando videogames e ouvindo música. A cultura do entretenimento está cada vez mais forte e esse crescimento parece indissociado do modo de vida moderno.

Pode-se encarar esse fenômeno a partir de diversos pontos de vista.  No aspecto psicológico, é possível especular que o ritmo de trabalho, especialmente nos centros urbanos, é pouco natural, incompatível com a forma para a qual o nosso organismo foi desenhado evolutivamente. O entretenimento é uma válvula de escape para o estresse da rotina de trabalho, trânsito e contas para pagar. A função básica do lazer, nesse aspecto, é permitir o desligamento das atividades cotidianas, possibilitando um certo nível de recuperação para encarar novamente a rotina.


“Blue” Aldaman

Mas por que não podemos simplesmente descansar, no nosso tempo livre? Por que precisamos fazer alguma coisa? Experimente dizer que você vai tirar um mês de férias e não vai viajar. Que vai passar seu fim de semana dormindo, ou no máximo lendo um livro. Que você não vai sair porque prefere relaxar um pouco. Na maior parte das vezes você será mal visto. Na nossa sociedade, que valoriza de forma insana a produtividade, não fazer nada é proibido. Por isso, mesmo nas horas vagas, você precisa continuar em atividade. Precisamos sentir que estamos usando cada precioso segundo da nossa breve existência num fazer memorável. Parar, não fazer, descansar, é tudo perda de tempo, segundo o que é imposto.

E por que nos dizem que é tão ruim não fazer nada? Porque se não fazemos nada, não consumimos, e o nosso mundo gira pelo consumo. Quanto do seu salário você gasta com TV a cabo, cinema, restaurantes, revistas (pois hoje em dia notícia também é entretenimento), jogos, viagens etc.? Trabalhamos, em parte, para pagar o entretenimento que propicia o alívio do estresse causado pelo próprio trabalho. É um dos paradoxos da vida moderna.


Brian Long

Um dia, estava conversando com uma amiga sobre concursos públicos e conhecidos nossos que recebiam bons rendimentos, mas tinham empregos muito aquém das suas capacidades, o que levava a uma insatisfação que não era amenizada pelo alto salário. Comentei que achava difícil passar a semana fazendo algo de que não gosto. Ela replicou dizendo que eu teria mais dinheiro e os fins de semana para aproveitar a vida. Respondi falando que não via sentido em passar 5/7 da minha vida em função dos outros 2/7. Seria melhor ter menos dinheiro e me sentir bem todos os dias.

Mas e a fotografia, onde entra nisso? Não é difícil imaginar sua capacidade de entreter. Não vamos focar, no entanto, no seu papel de entreter quem a vê; olhemos, em vez disso, para aqueles que fotografam não profissionalmente. Para os amadores, a fotografia é o entretenimento perfeito. É muito comum ver relatos de que fotografar ajuda a relaxar e a desestressar. Ou seja, ela cumpre muito bem o papel psicológico do entretenimento. Além disso, é uma atividade, um hobby que pode ser visto como produtivo, útil, valorizado socialmente. Ao sair para fotografar no fim de semana, estamos fazendo alguma coisa, e isso é fundamental dentro dos modelos de como devemos agir. Por último, a fotografia estimula, e muito, o consumo: compram-se câmeras, lentes, acessórios, impressões, equipamento de informática, cursos, livros. Não poderia ser melhor.

Não é à toa que a fotografia é a vedete do admirável mundo novo. Ela assume tantas funções que se conformam perfeitamente com o sistema econômico e o modo de vida ao qual estamos submetidos que se torna até difícil dizer o que vem antes. O entretenimento é apenas mais uma delas.

O anteparo técnico

Hoje, ao comprarmos um DVD de cinema, recebemos, muitas vezes, dois discos: um que contém o filme e outro que traz o seu making of. Não nos satisfazemos simplesmente com  a experiência de assistir ao filme: queremos saber como ele foi feito. Quando vamos a um museu, geralmente nos incomodamos com aquilo que não entendemos; precisamos saber das motivações e da técnica do autor. Um audiófilo, quando monta sua sala de música, pode correr o risco de prestar mais atenção na qualidade de cada tipo de som em vez de simplesmente desfrutar a música. Será que há uma certa dificuldade em aceitar as obras visuais, musicais ou cinematográficas pelo que elas são?

Na fotografia não é diferente. Talvez seja um movimento ainda mais acentuado, tendo em vista a supervalorização que os aspectos técnicos geralmente recebem. Ao mostrar uma foto para um fotógrafo ou alguém que entenda minimamente de fotografia, não é raro ouvir perguntas como: “qual o equipamento usado?”, “quais as configurações da câmera?”, “como foi usado o flash?”. Vejo duas vertentes nesse fenômeno. Primeiro, parece existir uma certa dificuldade em simplesmente aceitar o que é visto, em mergulhar na imagem ou na foto, como também acontece quando queremos saber como os filmes são feitos. Coloca-se na frente da foto um anteparo técnico abstrato que impede a sua visualização plena. A percepção da foto passa pelo como, e o entendido de fotografia preocupa-se mais em decifrar o método do que em simplesmente ver o que há para ser visto.

Em segundo lugar, há a ilusão da reprodutibilidade. O fotógrafo que vê uma foto que admira pode acreditar que conhecer as configurações técnicas possibilitará que ele tire fotos semelhantes. Na fotografia digital, cada foto guarda embutida no seu arquivo uma lista de informações sobre a captura, chamada de EXIF. Entre os dados armazenados, estão a distância focal da lente, abertura, velocidade, ISO, modo em que a câmera estava configurada, uso do flash, entre outros. Muitas pessoas nutrem um certo fetiche pelo EXIF de fotos alheias, buscando justamente a tal da reprodutibilidade. Acreditam que podem reproduzir a foto ao simplesmente usar as mesmas configurações de abertura, velocidade etc. Soa absurdo, pois com isso não se garante nem mesmo obter uma exposição correta, já que para cada cena as condições de luz mudam. Além disso, dificilmente o EXIF conterá informações sobre o que tornou uma foto boa, da mesma forma que identificar as figuras de linguagem em um texto não é suficiente para compreender porque a história é boa.

Jon Villegas
Jon Villegas

O que faz uma boa foto é a sua força como mensagem visual. A sua estrutura formal, o seu significado, as impressões que causa durante a “leitura” da imagem. E isso não é identificado através de dados técnicos. Pode-se chegar perto através da semiótica, mas mesmo assim ainda existirão meios controversos e que provavelmente não darão conta da obra como um todo. Afinal, a qualidade de uma foto não está apenas nela, mas também no observador, na sua história, no seu gosto, ou seja, em fatores não mensuráveis ou analisáveis. A apreciação de uma imagem é um contexto bilateral, e a foto em si é apenas um desses lados.

Considero ser um desafio que o cinéfilo, o audiófilo, o leitor, ao se aprofundarem em suas áreas de interesse, não percam de vista a perspectiva “leiga”, ou seja, a capacidade de se emocionar ou se envolver com um filme ou uma sinfonia sem se preocupar em analisá-la. Na fotografia, isso parece ser ainda mais difícil, especialmente para aquele que fotografa, já que ela é fácil nos seus aspectos técnicos, o que pode levá-lo a reduzi-la apenas a isso. Acho fundamental que o bom fotógrafo preserve a sua sensibilidade e a possibilidade de se assombrar, se impressionar com a fotografia, deixando para depois ou simplesmente abrindo mão da pergunta: “como foi feita?” e da tentação do “quero fazer igual”.

De Weimar a Gursky – Parte 04

Um Mundo Novo com uma Nova Visão

Este capítulo dará continuidade a apresentação de algumas ideias contidas nos trabalhos de Moholy-Nagy, o principal nome da fotografia da Nova Visão, iniciado no capítulo anterior.

A Fotografia de Moholy-Nagy

Conforme mencionado anteiormente, Moholy-Nagy apostava na fotografia como a forma de expressão artística do novo tempo e por isso ele a investiga, buscando maneiras de estimular a experiência de visualização para educar a humanidade em novas formas de apreciação do mundo moderno. Continue lendo “De Weimar a Gursky – Parte 04”

De Weimar a Gursky – Parte 03

Um Mundo Novo com uma Nova Visão

Neste capítulo será abordado um movimento que vinha ocorrendo paralelamente à Nova Objetividade.

A Contradição

Desde o começo do século XX, aliás desde que foram inventadas, as câmeras fotográficas vinham passando por uma série de transformações que  as tornavam melhores e mais acessíveis. No início da década de 20, eram oferecidos diversos modelos de câmeras, que iam desde “box-cameras” sem obturador ou diafragma até modelos sofisticados, passando por modelos curiosos que filmavam e fotografavam com filme 135 ou modelos bastante flexíveis que suportavam –pasmem: placa de vidro, filme plano ou filme 120 – será que somos tão mais modernos? Continue lendo “De Weimar a Gursky – Parte 03”

De Weimar a Gursky – Parte 02

Os fotógrafos da Nova Objetividade

Este capítulo apresenta os principais nomes da fotografia da Nova Objetividade.  Todos os nomes têm uma biografia complexa e seus trabalhos podem ser investigados tão profundamente quanto se queira – afinal fizeram história. O que segue é um investigação geral sobre estes nomes.

Karl Blossfeldt,

Iniciou sua carreira como aprendiz em fundição artística/decorativa em ferro, seguido pela formação na Escola de Artes de Berlin (Hochschule für Bildende Künste). Em 1898 passou a lecionar no Museu Real de Artes e Oficios de Berlim. A partir de uma pesquisa em botânica desenvolvido junto com o pintor Moritz Meurer, começa a documentar e catalogar fotograficamente formas vegetais. Tal pesquisa seria usada como instrumento análise e estudos de formas e texturas do mundo vegetal para ser aplicado ornamentação. Seria um catálogo para ajudar artistas a reproduzirem formas vegetais.

Em 1928, Blossfeldt lança o livro “Arte das Formas Naturais” (Unfomen der Kunst), cuja proposta era fornecer um livro-texto para apreciação das formas no mundo natural pelo publico em geral.

Karl Blossfeldt – Equisetum hiemale

Karl Blossfeldt – Adiantum pedatum

Karl Blossfeldt – Cephalaria

Karl Blossfeldt – Symphytum officinale

Não parece que Blossfeldt tenha discursado em favor do movimento Neue Sachlichkeit, entretanto a precisão descritiva de suas fotos o colocou ali. Seu trabalho foi saudado pela objetividade, clareza e imparcialidade científica ao descrever as formas do mundo natural destacadas contra um fundo neutro.

Karl Nierendorf, galerista e editor, ao escrever o prefácio, exaltando  a qualidade das fotografias contidas no livro, comete um exagero, escorrega e passa do ponto, saudando a precisão científica das câmeras que permitem desvendar um mundo escondido além da visão a que estamos familiarizados. Nierendorf, inadvertidamente classifica as fotografias de Blossfeldt, de uma forma diversa, onde o familiar é visto de outras formas.

Auguste Sander,

Filho de trabalhadores em mineração, foi aprendiz de fotografia e trabalhou como assistente de fotógrafo durante o serviço militar e em 1901 montou seu primeiro estúdio em Linz, na Áustria, posteriormente mudou-se para Köln onde montou outro estúdio. Lá se juntou ao ”Grupo de Artistas Progressivos” onde, em 1920, junto com o escritor Ludwig Mather iniciou um grande projeto de documentação da sociedade da época: “Pessoas do Século XX”. Munido de uma câmera de grande formato com negativos de vidro, que já era considerada antiquada, ele fotografou operários, industriais, bancários, médicos, imigrantes, famílias, donas-de-casa, fazendeiros, músicos, artistas, enfim, uma longa lista de ocupações. Nas palavras do próprio Sander: “…não há nada que deteste mais que a fotografia açucarada e posada de estúdio. De agora em diante, eu quero ser honesto e verdadeiro sobre nosso tempo e nossa gente…”

Este era um projeto bastante ambicioso e como Sander não era abastado, naturalmente, o dinheiro para esse projeto não durou muito. Então para levantar fundos necessários a continuação do projeto, Sander teve que se antecipar e publicar 60 fotos, do total de 600 que já tinha feito, o livro era “A Face de Nosso Tempo” (Antlitz der Zeit – 1929).

Auguste Sander – Sem título – 1920-25

Auguste Sander – Freira Católica – 1921

Auguste Sander – Meninas do Campo – 1925

Auguste Sander – Painter (Anton Raderscheidt) – 1926

Auguste Sander – Ferreiros – 1926

Auguste Sander – Sargento de Policia– 1926

Auguste Sander – Artistas de Circo – 1926

Auguste Sander – Boxeadores – 1928

Auguste Sander – Cozinheiro – 1928

Auguste Sander – Bancário  – 1928


Auguste Sander – Pedintes  – 1928

Auguste Sander – Industrial – 1929

Auguste Sander – Carregador de Carvão – 1929

Auguste Sander – Crianças Cegas – 1930

Auguste Sander – Envernizador – 1930

Auguste Sander  – Anões – 1930

Na fotografia de Sander, apesar da repulsa declarada pelo estúdio, os fotografados não são surpreendidos em seu ambiente, lida ou em seu cotidiano. Não é street photography! De fato, em todas as fotos as pessoas estão posando para a câmera. A pose para foto era necessária, primeiro por conta do tempo de exposição requirido pelos negativos de vidro, e, sobretudo,  porque Sander estava caracterizando as pessoas conforme sua ocupação ou extrato social. Até aí, nada de diferente, exceto por um detalhe: Sander se propunha radiografar a sociedade da época, partindo do principio que a fisionomia do fotografado identificaria seu caráter, classe e ocupação.

O seu livro, “Antlitz der Zeit“ foi dividido em categorias:  “O Fazendeiro”, “O Mercador”, “Os Artistas”, “A Cidade”, “Classes e Profissões” e por fim “As Últimas Pessoas”, onde ele insere os que eram marginalizados de alguma forma. Embora, na tradução do título geralmente inclui-se a pronome “nosso”, ela poderia ser “Faces dos Tempos” ou “Faces do Tempo”, já que Sander não desejava identificar a nacionalidade, os fotografados poderiam ser alemães, russos, franceses.

Ainda que este conceito, indexar a fisionomia ao extrato social do indivíduo, seja considerado distorcido ou condenável atualmente, este era método válido em sua época, portanto o projeto de Sander era montado em cima de um conceito aceito. Além disto Sander fotografava de modo isento de preconceitos ou julgamentos, não diminuia o indivíduo, ao contrário, as pessoas são mostrados de forma impessoal e distante.  Sander prefere deixar que câmera fale com precisão e imparcialmente, registrando tipos ou arquétipos. As pessoas vestem suas máscaras, para serem fotografados tal como são, sem interferências. Ninguém é ridículo, melodramático ou patético.

Essa tentativa de Sanders de montar um catálogo etnográfico preciso,  mostrando os grupos sociais, refletem bem o carater documental desejado pela fotografia da Neue Sachlichkeit. Porém o trabalho de Sander vai além da simples taxonomia social, inicialmente, porque, visto em conjunto o trabalho, adquire um tom de crítica social, mostra uma sociedade em processo de mudança, mas ainda castigada por uma ordem social perversa. Além disto, a simplicidade dos fotografados questionavam os valores – o orgulho nacionalista, as glorias militares e as lideranças políticas – propagandeados na época.

Albert Renger-Patzsch,

Esse é complicado! Consta em suas biografias, que começou a fotografar com 12 anos, fez o serviço militar durante a primeira guerra, onde teria recebido formação em química(1), e posteriormente graduou-se em fotografia publicitária na Folkwangschule de Essen.

Complicado,  porque até 1927, tinha lançado três  livros documentários sobre natureza – “O Mundo das Plantas” (Die Welt der Pflanz), “Fotografia de Flores” (Photografieren von Blüten) e o livro “O Reverberante”(Die Halligen)(2) – que retratava as paisagens e o povo da Frisia Ocidental – e em 1928, publicou o livro “O Mundo é Belo” (Die Welt Ist Shön) que é o marco de sua carreira, onde plantas e máquinas aparecem lado a lado. Renger-Patzsch anunciava: “..pistões e folhas molhadas tem status equivalentes, e ambos devem ser tratados como novos ícones de beleza…”

Albert Renger-Patzsch – Agave attenuata –1923

Albert Renger-Patzsch – Cabos de Aço com Ganchos – 1924

Albert Renger-Patzsch – Dampfabstellrad – 1925

Albert Renger-Patzsch – Babuino -1925

Albert Renger-Patzsch – Café Hag – 1925

Albert Renger-Patzsch – Gerador Fundição Ilsender – 1926

Albert Renger-Patzsch – Cactaceae Mammilaria – 1926

Albert Renger-Patzsch – Forja -1927

Albert Renger-Patzsch  – Cactaceae Astrophytum – 1927

Albert Renger-Patzsch – Mola Mestre – 1927

Albert Renger-Patzsch  – Ponte de Ferrovia – 1927

Albert Renger-Patzsch – Cabeça de Serpente – 1928

Albert Renger-Patzsch – Botões – 1928

Albert Renger-Patzsch – Paisagem do Ruhr – 1928

O tema industrial ou objetos do cotidiano, mostrados com peso equivalente à natureza, seria uma tentativa de romper com a tradição visual do pré guerra. Esta ruptura era necessária pois a vida em meio a “poesia da natureza” – moralmente saudável  – era um conceito conservador, atrelado as elites alemãs, alvo da insatisfação da Nova Objetividade. O industrial, oposto à natureza, representava o mundo novo. Ao colocar lado a lado, prensas e plantas, usando a forma de catálogo, Renger-Patzsch, procurava se enquadrar no discurso corrente.

Alguns historiadores atuais, verificados nesta pesquisa, argumentam que a fotografia de Renger-Patzsh, no livro “Die Welt Ist Shön”, embora  fosse um tentativa de aderir ao movimento modernista, ainda mantinha raízes em um romantismo do século 19, cujos traços ainda eram presentes na escola de Essen. Além disto, propõem, que as fotos não teriam conseguido se livrar do Sublime de Emmanuel Kant – que era contrário proposta desejada de Renger-Patzsch.

Essa discussão não é restrita aos historiadores contemporâneos, ela têm raízes nas críticas de  Walter Bendix Schönflies Benjamin (aka Walter Benjamin), o mega crítico/filósofo da época, que o acusava de tentar vestir uma roupagem modernista ao Sublime kantiano. Há quem argumente que a principal crítica feita por Walter Benjamin recaia sobre título pegajoso do livro, “O Mundo é Belo”, que na verdade foi escolhido pelo editor de Renger-Patzsch. Deve-se, também, considerar que Walter Benjamin pendia para o lado mais radical do movimento dessa renovação artística, ao qual Renger-Patzsch vinha alfinetando.

Certamente estes historiadores estão corretos pois Renger-Patzsch também fazia também fotos de paisagem muito próximas aos cânones conservadores, porém é interessante considerar as fotos no “Die Welt Ist Shön”, de outra forma:  nestas percebe-se uma trincheira razoável no estilo, na proposta e na apresentação, separando este trabalho do romantismo (ou neo romantismo). O que salta aos olhos nestas fotos de Renger-Patzsch é o distanciamento e o cuidado com a Forma, não parecendo haver discurso sobre a poesia da natureza ou sobre a força do mundo industrial. Mesmo escorregando, deve-se considerar que Renger-Patzsch, que teve na sua formação treinamento em ciências – química – tenta montar um catálogo visual de sua época.

A impessoalidade tentada por Renger-Patzch pode ser verificada quando, historiadores de arte americanos, colocam suas fotos de natureza lado a lado com Edward Weston.  Essa puxada na sardinha é justa – afinal, quem não gosta de Weston – porém Natural Studies, tem diversas componentes, inclusive um certo erotismo, expressos pelo autor, enquanto, por exemplo, a luz nas fotos “Die Welt Ist Shön” não denuncia traços de humor. Weston mostra volumes, enquanto Renger-Patzsch mostra contornos.

Os  textos de publicidade do livro Renger-Patzsch, outra vez,  inadvertidamente minam os cânones ao estabelecer: “…a versatilidade das câmeras modernas criam novas formas de ver a realidade e essas novas formas são agradáveis…” Outra vez um declaração completamente deslocada, que será importante para o movimento que segue em paralelo.

Helmar Lerski (Israel Schmuklerski),

Nasceu na Áustria e cresceu na Suíça. Em 1893, aos 22 anos emigrou para os Estados Unidos onde trabalhou durante anos como ator – chegando ter algum sucesso. Sua carreira na fotografia começou por acidente, quando fez algumas fotos de um amigo com uma câmera de sua esposa, essa sim, fotógrafa profissional. Nesta sua primeira sessão de fotos, em 1912 (Fez as contas? 42 anos, começou meio tarde!), optou por enquadramentos pouco usuais, ignorou o equipamento de iluminação do estúdio e optou pela luz vinda de duas janelas em lados opostos da sala. Embora tenha detestado o resultado, a “patroa” apresentou suas fotos para o fotógrafo retratista alemão Rudolph Dührkoop,  que estava de passagem pela América. A partir daí, para ser saudado com um dos bambas da fotografia realista pela revista “Die Form” foi um pulinho.

Já em 1915, era cinegrafista contratado do estúdio de cinema UFA, e por conta de diversas idéias inovadoras chegou ao equivalente a diretor de fotografia de muitos filmes, inclusive no Metropolis de Fritz Lange, onde  as coisas não foram um mar de rosas – Lerski reclama ter sido sabotado. De um acidente a cinegrafista/fotógrafo modernista festejado em três anos, acreditou ? Dificil de acreditar, porém quem conta a estória é a revista Image do George Eastman House of Photography, (edição de 1961).

Helmar Lerski – Trabalhador Alemão – 1928-31

Helmar Lerski – Diarista – 1928-31

Helmar Lerski – Dona de Casa – 1928-31

Helmar Lerski – Pelzarbeiterin – 1928-31

A primeira coisa que chama atenção em suas fotografias(3) é o enquadramento fechado e os procedimentos de iluminação utilizados: luz solar refletida e direcionada por pequenos espelhos, que  possibilitava pequenas aberturas no obturador. Lerski usava uma lente Dagor 11 polegadas em câmeras 18x24cm ou 24x3cm, sem crops,  posicionado a menos de um metro do fotografado. Essa proximidade e a iluminação ressaltava com bastante precisão os detalhes dos rostos.  Esta precisão na representação se encaixa nos modelos da Nova Objetividade, justificando a rápida ascensão deste fotógrafo.

Embora um pouco tardio, o primeiro livro “Faces do Cotidiano” (Köpfe des Alltags-1931), vai no embalo do espírito da época, e tenta mostrar uma proposta similar da caracterização social desejada de August Sanders, baseada em arquétipos. Porém o enquadramento fechado e o sistema de iluminação, que isola o retratado, empurra a leitura da foto para além dos que vemos em Sander. Existe um certo teor de drama (coisa do teatro, suponho) nas faces que resulta do método de iluminação, entretanto, os rostos são desprovidos de humanidade, tornam-se objetos ou sólidos. Lerski não usava rostos conhecidos, atores ou modelos, pois desejava um estudo sobre rostos tais como são no dia-a-dia. O uso de atores, seria um trabalho de direção de poses e máscaras e portanto inválido.  “Köpfe des Alltags”, é um inventário onde os retratados, não tem nomes, são identificados por suas funções: pedintes, soldadores, serventes, trabalhadores, etc…

Pode-se afirmar que não são retratos,  pois o esforço excessivo em descaracterizar ou desumanisar o fotografado, foge do que seria o retrato. São estudos de formas, ou “estudos de uma paisagem facial”, como ele mesmo teria descrito seu trabalho.

Fechando o Pacote

É óbvio que a fotografia da Nova Objetividade não está somente ligada aos nomes que foram apresentados apresentados. Existem diversos outros nomes:

Wener Mantz

Rudolf Koppitz

Hans Finsler

Além disto, a fotografia praticada pela Neue Sachlichkeit  não contem novidades, nem inaugura um estilo, na verdade o mesmo ideal já vinha sendo praticado por Eugène Atget e Edward Steichen. Entretanto, neste periodo, o estilo encontra um terreno fértil para se consolidar.

Renger-Patzsch, Sander, Blossfeldt e Lerski, foram os que melhor expressaram as ideias por trás da Nova Objetividade. Mesmo que as fotos de Renger-Patzsch sejam alvo de questionamentos – se eram suficientemente objetivas ou não – o que podemos observar é são estudos de Formas. O mesmo pode ser dito sobre o trabalho de fisionomias de Sander e Lerski. Não diferem de Blossfeldt, que colocava plantas sobre fundos neutros em um catalogo botânico. Em acordância com o discurso da época, o fotografia volta-se contra o Pictorialismo, valendo-se de representação feita de forma precisa e detalhada. O distanciamento do autor, fazia parte do pacote como modo de assegurar a objetividade: o  que está impresso é o que se vê . A fotografia da Nova Objetividade traz de volta, valoriza, e descreve o objeto, o referente, sem que este execute nenhuma ação e sem atribuir-lhe adjetivos.  São simplesmente Formas.

Esse predomínio da Forma, não chega a ser surpresa, quando pregam que a câmera é o melhor instrumento para registrar essa nova realidade e educar a sociedade, demonstram estarem ideologicamente ligados aos movimentos relacionados a fundação da Bauhaus, com o neoplasticismo do De Stijl e com os Construtivistas. Os deslizes cometidos na propaganda das obras – a fotografia que mostra outras formas de ver o mundo – embora, não planejadas tmabém apontam em direção a “Nova Visão”.

Próximo capítulo: A Nova Visão

Notas

(1)    As informações disponíveis na internet, a respeito do período em que Renger-Patzsch cursou química, não são muito precisas.

(2)    Desculpem a tradução. O currículo deste articulista inclui dois semestres de alemão, que apesar de pouco, é o suficiente para pedir uma cerveja e saber que traduzir alemão é complicado.

(3)    Todas as fotos publicadas, foram verificadas quanto a autoria, título e data. Para manter a consistência da pesquisa, foram selecionadas somente as fotos executadas ou publicadas no período de interesse, 1920-35. Somente o George Eastman House of Photography dispõe de fotos de Lerski que atendem os critérios de verificação de datas. Infelizmente são somente 4 fotos. A busca no Google retorna várias fotos, porém não atendem o critério de datas. Se houver interesse em ver mais fotos de Lerski, este link do google mostra diversas.

Referências

Karl Blossfeldt, Urformen der Kunst – inclui link para o livro, vale a pena ver.

Jenny McComas, The Sublime Vision: Romanticism in the Photography of Albert Renger-Patzsch

Toni Mia Simmonds, “Mein Kodak”, Avant-Gard Photography In 1920s Germany

John Hannay, Encyclopedia of nineteenth-century photography, Volume 1

Helmut Gernshein,  A Concise History Of Photography

Jan-Christopher Horak, The Penetrating Power of Light: the films of Helmar Lerski , Image Magazine, 1993, vol 36.

Brief biography of portraitist Helmar Lerski upon acquiring a collection of his photographs, Image Magazine, 1961, vol 10.

Leo Rubinfien, Auguste Sander: The mask behind the face.

A escolha do assunto

Podemos pensar na fotografia de acordo com os seguintes elementos: o referente, ou aquilo que é fotografado; o fotógrafo; o aparelho fotográfico; a fotografia como resultado e/ou objeto; e o observador. Uma das relações que mais me intriga é entre o fotógrafo e o referente. Contudo, é o uso da fotografia, ou seja, aquilo que o fotógrafo procura no seu resultado, a fim de provocar uma reação no observador — ainda que este seja ele mesmo — que determina a escolha do assunto.

A maior parte das pessoas, quando fotografa, segue a ideia de obter um registro. Em viagens, em festas, em reuniões familiares. Por isso, a escolha do referente é quase óbvia: retratam-se os pontos turísticos, os amigos, os familiares em situações importantes.

Há um aspecto marcante entre os fotógrafos amadores avançados, visível em comunidades virtuais ou fóruns de discussão: embora haja um conhecimento técnico e tecnológico gigantesco, há pouquíssimo desvio da fotografia como registro. Poder-se-ia continuar fotografando eternamente as mesmas coisas, embora com técnica apurada, caso não fosse a fotografia digital. Continue lendo “A escolha do assunto”

De Weimar a Gursky – Parte 01

Apresentação

Este post é o primeiro artigo ou capítulo sobre a fotografia e a linguagem praticada por alguns fotógrafos alemães. O texto foi escrito a partir de uma pesquisa pessoal que tentava responder algumas perguntas. Como este é um assunto muito rico, o que seria uma olhada na internet sem grandes pretensões, acabou se tornando uma pesquisa e um texto. Para manter a agilidade natural da internet, o artigo será dividido em capítulos, que serão apresentados periodicamente. Continue lendo “De Weimar a Gursky – Parte 01”

O fotógrafo e o real

Desde a sua criação, no século XIX, a fotografia tem, perante a sociedade, o status de representação fiel da realidade. Com a criação de um dispositivo que registrava as imagens sem a mediação de um agente humano, tornou-se possível a obtenção desses registros apenas pela ação da luz na superfície fotossensível. Por isso, a fotografia logo ganhou espaço na feitura de retratos, e também no registro de eventos historicamente relevantes, atividades que, até então, ficavam a cargo da pintura. Nasceu o chamado fotojornalismo, e cada vez mais, numa escalada constante que permanece até os dias de hoje, a imagem disputa a importância com o texto.

A força do referente, na fotografia, sempre foi avassaladora. Entende-se como referente àquilo que dá forma à imagem, através da reflexão dos raios luminosos. Esse peso do “real” presente na fotografia foi tão grande que mudou o curso da história da arte, sendo um dos responsáveis pelo surgimento do abstracionismo. Roland Barthes, em seu “A Câmara Clara”, evoca esse peso ao dizer que o noema, ou a essência, da fotografia é tão somente atestar a existência de algo: “isto foi”.

Contudo, a partir do século XX dois questionamentos à “pureza” da fotografia foram colocados. Primeiro, é o fotógrafo apenas um manipulador do equipamento, impotente frente ao poder do referente? Segundo, a captura fotográfica, através da câmera, é desprovida da necessidade de codificação e interpretação, ou seja, é de fato uma cópia fiel da realidade?

Ivan Constantin
Ivan Constantin

Passou-se a discutir, então, o quanto o ato de fotografar era influenciado por quem estava atrás da câmera. Concluiu-se, obviamente, que a fotografia não era assim tão pura. Afinal de contas, o fotógrafo tem, em suas mãos, diversos instrumentos para guiar a captura fotográfica a fim de induzir uma determinada interpretação. O mais poderoso deles talvez seja o corte. Ao decidir o que permanece dentro do retângulo da foto e o que fica fora, o fotógrafo tem o poder de isolar ou contextualizar uma cena, alterando a forma como ela é percebida. Outras formas de distorção também são possíveis, como o uso de lentes de distância focal curta ou longa, que alteram completamente a noção de espaço, já que esticam ou achatam os planos na representação bidimensional do espaço tridimensional. Além disso, as fotos podem ser montadas e manipuladas, tendo como expoente o uso de tais procedimentos durante o período stalinista na antiga União Soviética.

Arlindo Machado, em “A Ilusão Especular”, mostra que mesmo a representação fotográfica obedece à perspectiva central consagrada no renascimento e há uma série de preocupações técnicas para que essa representação realmente se pareça com a realidade, ou seja, torne-se uma boa ilusão. Quando, pela alteração desses elementos técnicos, há um resultado que se afasta desse ideal (como uma imagem tremida, uma luz que achata a imagem, um borrão por movimento), a conseqüência é uma sensação de estranheza, já que a fragilidade da representação vem à tona.

A câmera fotográfica, então, não era mais detentora da verdade e o fotógrafo não era mais um mero apertador de botão. Isso, contudo, reflete mais uma posição teórico-acadêmica do que a visão do senso comum. A fotografia, para a maioria das pessoas, ainda é vista como entidade soberana, tanto que é tida como prova de que algo realmente aconteceu. Quando uma pessoa, flagrada em ato questionável numa imagem argumenta que a foto foi montada ou adulterada, isso não convence ninguém. E, com o uso cada vez maior das imagens pelo jornalismo, esse status não tende a mudar cedo.

skazama
skazama

Esse contexto evidencia a característica da fotografia quando olhada pelo prisma da relação entre o fotógrafo e a sua ferramenta. Ao contrário de outras artes, como a pintura e a literatura, em que há muito mais liberdade e as criações encontram menos obstáculos, na fotografia a obra está intimamente ligada às características do aparelho, como afirma Flusser em “Filosofia da Caixa Preta”. Há, então, uma queda de braço entre o fotógrafo, que busca atribuir à realidade conceitos pessoais, e o referente, que é o que é por si só e não está nem aí para os desejos do fotógrafo.

As técnicas disponíveis pelo fotógrafo, como o corte e a distorção, poderosas quando servem ao propósito de alterar a realidade, podem ser toscas e insuficientes quando o referente é muito diferente daquilo que o fotógrafo quer mostrar. A saída, para o fotógrafo, é construir a sua própria realidade, a partir, especialmente do trabalho no estúdio. Não é à toa que as fotos publicitárias são, na grande maioria dos casos, produzidas em estúdio, em que a realidade pode ser construída para parecer mais real do que a realidade “verdadeira”.

Mas mesmo o trabalho no estúdio tem as suas limitações, e não é tudo que se pode controlar, mesmo com holofotes, maquiagens e fundos infinitos. Essa queda de braço entre aquilo que o fotógrafo quer mostrar contra a forma como o real se apresenta inevitavelmente leva à frustração. Com isso, muitos seguem o caminho adicional de manipulação da imagem, que se assemelha, em sua forma, com a pintura, com o problema que ela ocorre sobre uma base pré-estabelecida, a captura fotográfica.

chillhiro
chillhiro

Percebe-se, então, que essa disputa de controle se dá com o fotógrafo atuando antes e depois do clique, alterando luzes, corte, assunto, abertura, velocidade e manipulando o resultado, a fim de cercar o único fator que ele não tem, de fato, acesso, que é a própria captura fotográfica. Enquanto o obturador está aberto, não há nada que o fotógrafo possa fazer; é o referente que está irradiando sua luz sobre a superfície fotossensível: resta ao operador esperar e torcer para que o resultado seja o que ele espera.

Ou seja, aqueles que almejam o uso da fotografia como mais do que um registro documental (que sucumbe à força do referente), é preciso que se tenham maneiras criativas de como lidar com a realidade, sem tentar bater de frente com ela, ou o resultado será invariavelmente frustrante. Não é incomum que o fotógrafo frustrado busque novos equipamentos, ou vá cada vez mais longe à procura de imagens que se encaixem naquilo que quer fazer. Isso dificilmente resolve o problema.

Não resolve porque a imagem está circunscrita no aparelho, como coloca Flusser. O fotógrafo, quando busca novas imagens, busca coisas que o aparelho ainda não fez, e isso significa muitas vezes novos referentes, embora a mesma abordagem com referentes distintos pareça repetitiva. A saída pode ser simplesmente deixar de brigar com essa questão, entendendo ser a fotografia também, um testemunho pessoal.

É útil também entender as limitações da fotografia e perceber que muitas vezes a saída mais criativa reside em outras formas de expressão. A fotografia, inexoravelmente, é limitada, embora esse limite seja incrivelmente amplo. Para tornar o caminho menos doloroso, é preciso aceitar o referente, aceitar a limitação do programa fotográfico e adotar uma abordagem que coloque o fotógrafo como complemento desses fatores, de forma que ele seja visível na obra, entendendo que ele é parte da construção, mas não necessariamente a parte dominante.