Satisfação não garantida

Temos grandes expectativas em relação à vida. Esperamos e lutamos para ter momentos de grande felicidade, êxtase, euforia. Abominamos o tédio, a monotonia, o ordinário. Queremos o especial sempre. Durante a semana, queremos que o fim de semana chegue. Durante o ano, queremos que cheguem as férias. Quando estamos em casa, desejamos o momento em que poderemos viajar. Se estamos sozinhos, torcemos pela hora em que estaremos com outros. No trânsito, ansiamos pelo momento em que chegaremos. Ficamos ansiosos à espera da nossa vez.

Certos autores na psicologia defendem que vivemos em constante falta. Há sempre uma coisa que poderia ser melhor, uma situação que poderia ser diferente, um incômodo que poderia não existir. A falta gera desejo, movimento, nos impele à ação, na tentativa de suprir essa carência. E aí vamos atrás de dinheiro, de pessoas, de lugares, de experiências. Às vezes, chegamos bem perto dessa satisfação. Conseguimos o que queremos e, por alguns instantes, temos paz. Mas ser humano não é fácil: a satisfação é sempre temporária. Por mais que tentemos nos agarrar, a paz escapa por entre nossos dedos e nos colocamos em movimento de novo. Para piorar, parece que os prazeres que experimentamos nunca são iguais à primeira vez, em que ele é desconhecido e inesperado. Passamos por uma situação boa, mas ao buscá-la novamente, ela não é mais tão completa. Há sempre um quê de frustração. Para conseguir o mesmo patamar de bem estar, precisamos de mais e mais, enquanto a tendência da repetição é ter menos. Não é à toa que alguns psicanalistas tinham uma visão bastante pessimista sobre a existência humana: as nossas únicas opções são a insatisfação ou a resignação.


Toni Palau 

A fotografia, enquanto atividade humana, não está livre desse paradigma. A busca pela satisfação, pelo melhor possível, pela completude pode afetá-la em vários níveis, como na forma como lidamos com os equipamentos ou no ato fotográfico em si. O marketing de qualquer empresa, incluindo fabricantes de câmeras, sabem explorar isso muito bem. Para ter a melhor foto, precisamos da melhor câmera. Mas isso não existe. Mesmo que você compre a Leica ou a Hasselblad top de linha, a satisfação durará, no máximo, até o lançamento do próximo modelo top de linha que deixará a sua câmera obsoleta. E nunca os fabricantes lançarão um modelo completo, pelo simples motivo que, se o fizerem, não venderão mais câmeras.

Independentemente do equipamento fotográfico, também fazemos o possível pela melhor imagem. Viajamos grandes distâncias, esperamos pela melhor luz, ajustamos minuciosamente a configuração de um estúdio, procuramos as paisagens mais fotogênicas. Tudo pela fotografia perfeita. E, às vezes, conseguimos uma dessas, que acreditamos ser o ápice da nossa prática. Colocamos a foto na parede, recebemos elogios, postamos na internet e pipocam duzentos “curtiu”. E o que fazemos em seguida? Vamos procurar outra atividade? Damo-nos por satisfeitos? Não, passamos a pensar em repetir o feito, na próxima foto perfeita. Queremos trezentos “curtiu”, porque de repente duzentos já não parecem suficientes. E continuamos num ciclo sem fim. É esse mecanismo que faz a humanidade caminhar, sendo tão bem explorado pela lógica capitalista.

Há uma alternativa? Boa pergunta. Devemos desistir, nos resignar, parar? Talvez. A única coisa mais certa em relação ao que fazer com isso é ter consciência que a “foto perfeita” é inalcançável, pelas limitações da fotografia e pela nossa própria natureza insatisfeita. Teremos, no máximo, alguns momentos de glória que não perdurarão. Parece uma perspectiva pessimista, mas que também pode ser libertadora. Se a perfeição é inatingível, então podemos abrir mão de certas coisas: não precisamos mais do equipamento mais caro, da luz totalmente ideal, da paisagem mais estonteante. Podemos dar mais atenção e valor ao simples, ao ordinário, ao monótono. Afinal de contas, 99% da vida são feitos disso.

Seja um amador

A ideia para este texto foi roubada inspirada no manifesto de CJ Chilvers por uma fotografia mais simples. Chilvers defende uma fotografia despojada, despreocupada com equipamentos e focada na criação. No seu manifesto, ele descreve dez “mandamentos” para uma forma de fotografar focada naquilo que realmente é importante: criar imagens significativas. Alguns pontos na sua lista são o estabelecimento de limitações próprias, investimento naquilo que melhora de fato a fotografia — como cursos, em vez de equipamentos, a importância de se contar uma boa história e evitar o excesso de pós-processamento.

Um dos pontos listados por Chilvers é particularmente interessante, e refere-se a não querer ser um fotógrafo profissional. Segundo ele (em tradução livre):

A fotografia é um dos hobbies mais populares no planeta, mas você nunca saberia disso lendo a maior parte dos blogs, podcasts, livros e tutoriais sobre fotografia. Ela é tratada como uma profissão, na qual o objetivo é ganhar dinheiro, comprar equipamentos mais caros ou expor suas cópias em galerias ao redor do mundo. Você é induzido a ser um profissional. Isso não é algo realista para a grande maioria dos fotógrafos. A maior parte dos fotógrafos se beneficiaria em ser amadora.

De fato, muitas publicações sobre fotografia, sejam elas revistas, blogs ou portais, estão constantemente buscando levar os leitores a consumir produtos — câmeras, lentes, livros, workshops — tendo como princípio a possibilidade de uma futura aplicação profissional desse consumo, cujo gasto é tratado como “investimento”. No entanto, apenas uma pequena parcela desses consumidores de fato é ou se tornará um profissional. Muitos equipamentos são empurrados para os compradores com base em especificações técnicas que são praticamente irrelevantes para a fotografia que fazemos na maior parte do tempo. Temos lentes ultranítidas mas apenas postamos fotos na web; câmeras que fotografam 5 quadros por segundo e apenas as usamos no modo de um quadro por vez; cartões de memória de infinitos gigabytes que nunca conseguimos encher. Qual o ponto de se ter mais do que se precisa? Esperamos que um dia vamos utilizar esses recursos — talvez no dia em que nos tornarmos profissionais — mas o fato é que esse dia nunca chega.


Jun Takeushi

Muitas pessoas de fato compram a ideia de se tornarem profissionais. Não se pode culpá-las: trabalhar com fotografia parece realmente tentador. Estar em eventos, conseguir acesso restrito, horário flexível, espaço para expressão artística etc. A realidade, no entanto, não é bem assim. O mercado está saturado, já que não é necessária nenhuma qualificação; apenas possuir e saber manejar um equipamento básico. Isso leva os valores pagos lá para baixo. Os fotógrafos que sobrevivem ganhando bem são aqueles que têm um trabalho diferenciado e sabem vender o seu peixe. A fotografia profissional é um campo no qual é difícil ingressar e se manter sem um bom planejamento.

Por que é tão difícil aceitarmos que a maioria de nós é e continuará sendo de fotógrafos amadores? Para mim, há duas razões principais: a primeira é que é mais fácil justificar os gastos que temos com equipamentos se acreditamos que um dia haverá algum retorno financeiro. Entretanto, acredito que a principal razão pela qual tentamos transformar a fotografia em algo que dê dinheiro é porque buscamos validação daquilo que fazemos, e o pagamento vem como validação. Sendo assim, procuramos vender nossas fotografias impressas, vender o nosso “olhar” fotografando um evento ou o nosso conhecimento ministrando workshops. Mas o fato é que essas formas de validação não são as únicas. Podemos ter outras formas de validação que não sejam financeiras, como o reconhecimento de amigos e familiares. Ou até mesmo a validação interna, através do prazer de fotografar ou da própria satisfação com o trabalho.

O problema de buscar a validação financeira externa é que ela aprisiona. Apenas uma pequena fração dos fotógrafos profissionais será contratada para trabalhar do seu jeito, com total liberdade. O resto terá que trabalhar em função daquilo que o cliente exige. Mesmo a validação externa não financeira — o elogio dos conhecidos, por exemplo — também pode restringir aquilo que fazemos. A única forma de se fotografar com total liberdade é fazendo isso apenas por si só. E, para isso, é preciso admitir que a fotografia é apenas uma atividade com fim em si mesma, que aquilo que gastamos com ela é gasto com lazer e assumir que se é apenas um fotógrafo amador.

Razão e emoção na fotografia

Vivemos em uma cultura que valoriza a razão, o pensamento, a ordem, em detrimento da emoção, da intuição e tem dificuldades em lidar com a natureza caótica das coisas. Quando nos envolvemos com uma atividade, como a fotografia, tentamos organizá-la, mentalmente, utilizando os recursos racionais que empregamos diariamente para lidar com o mundo. Isso nos leva a priorizar a forma, os números, as regras e o método.

Consequentemente, nos vemos apegados aos aspectos técnicos das imagens, às especificações das câmeras, aos números, ou seja, a tudo que possa ser organizado e quantificado. Queremos saber quantos megapixels tem o sensor, quão nítida é uma lente, quantas fotos são feitas numa viagem ou num evento, quanto tempo dura uma bateria. Continue lendo “Razão e emoção na fotografia”

Dez maneiras de fugir dos clichês

Há milhões de ótimas fotos na Internet. Fotos surpreendentes, bem trabalhadas, expressivas, contundentes. Basta procurar um pouco em qualquer galeria online. É admirável que, mesmo com tantas fotografias já feitas, ainda assim fotógrafos consigam criar ótimas imagens a cada dia, ou a cada minuto. Ao mesmo tempo em que percebo isso, pergunto-me porque a maior parte das pessoas que fotografam têm dificuldades para sair do lugar comum, para arriscar mais e deixar de usar as velhas fórmulas fotográficas: enquadramentos clássicos, fundos desfocados, nitidez no plano principal, exposição correta etc. Em geral, as fotos mas expressivas não se preocupam com a correção, com o método convencional. Reuno aqui alguns exemplos, descrevendo o que cada uma dessas fotos aponta sobre como fotografar bem, indo além das convenções. Continue lendo “Dez maneiras de fugir dos clichês”

Cinco razões para deixar sua câmera em casa

Se você for a um show musical nos dias de hoje, é provável que, entre você e o palco, haja centenas de pequenas telas acesas. São câmeras digitais e telefones celulares, no alto das mãos do público presente na plateia ou na pista, fotografando e filmando cada instante. Tenho um tio que mora há cerca de 20 anos em Portugal. Em visita ao Brasil, foi ao aquário municipal de São Paulo. Ele ficou impressionado em ver como as pessoas pouco olhavam para os peixes; em vez disso passavam de atração a atração com câmeras em punho, apenas fotografando. A hoje é vista através de telas de cristal líquido — e não estamos falando dos filmes e da televisão, e sim daquilo que se passa bem na frente das pessoas.

Qual seria a motivação para esse tipo de comportamento? Pode-se imaginar que as pessoas queiram se agarrar àquele momento único, especial. Fotografar significa, de certa forma, prolongar o momento no tempo. No entanto, que momento é esse que não foi vivido, apenas fotografado? Qual lembrança será evocada através das imagens? Provavelmente há também a influência das redes sociais. Todo mundo precisa mostrar cada momento da vida. Somos controlados não apenas pela fotografia em si, mas também pelo papel da fotografia no nosso meio social virtual, na qual a fotografia é o principal instrumento para mostrar que se esteve em lugares legais, com pessoas legais; em outras palavras, que se é “feliz”.

Gergely Vida
Gergely Vida 

Hoje em dia parece ser uma heresia sair de casa para uma atividade interessante e não levar a câmera junto. Mas podemos pensar em algumas razões para, ao ir a algum evento importante, deixar a máquina fotográfica em casa.

1. Viver o momento
Quando se está fotografando, dificilmente se está vivendo de fato o momento. Se, ao estar num show, num museu ou até mesmo no topo de uma montanha vendo o sol nascer com o vento gelado no rosto, a sua preocupação é com que abertura usar, com o flash carregando ou com o enquadramento, sua cabeça está dentro da máquina. A vida passará num piscar de olhos e você não poderá levar suas fotos com você para se lembrar dela após a morte. A única coisa que existe é o momento presente. Gastar esse momento com a cara enfiada num equipamento eletrônico não parece ser a melhor opção.

2. Respeito
É muito inconveniente assistir a um evento com dezenas de pessoas esticando seus celulares e câmeras na sua frente. Pior ainda, quando são disparados flashes a torto e a direto, mesmo quando se pede para não utilizá-lo. Já vi fotógrafos se vangloriando de conseguirem fotografar com câmeras reflex em teatros em que isso era proibido. Fico imaginando o incômodo causado pelo barulho do espelho e pela movimentação do camarada, extasiado com sua esperteza, ao mesmo tempo em que atrapalha a experiência dos outros. No fim, isso não é esperteza: é simples desrespeito.

3. Boa fotografia
Convenhamos, fotografar um show com um celular a 200 metros do palco não vai render boas fotos. Na verdade, vai render péssimas fotos que apenas contarão contra sua qualidade como fotógrafo. Não é melhor então apenas esquecer a possibilidade de fotografar e aproveitar a música e a companhia?

4. Preocupação
Se por um lado usar equipamentos simples em condições extremas produzirá fotografias ruins, sair com equipamentos caros apenas fará com que o fotógrafo passe o tempo todo preocupado com seu equipamento. Há a chance de roubo, queda, dano. A preocupação com o material fotográfico tornarão bastante difícil ao entusiasta aproveitar o momento e talvez até mesmo tirar boas fotografias. Felizmente esse problema tem uma solução fácil: quando não se tem nada a perder, o medo desaparece.

5. Controle
O fato é que, se deixarmos, a fotografia nos controla. Se estamos preocupados em fotografar, pensamos o tempo todo no ângulo, na luz, nos ajustes, no equipamento, no momento certo. E isso é totalmente incompatível com certas atividades. Já imaginou se, naquela apresentação do seu filho na escola, você, ao contrário de todos os outros pais, não se preocupasse em registrar a qualquer custo cada instante e, em vez disso, estivesse 100% presente apreciando, rindo e aplaudindo? Algo me diz que a lembrança seria muito mais marcante, viva e valiosa do que qualquer fotografia poderia suscitar no futuro.

Doug Geisler
Doug Geisler

Você pode perguntar: “mas então eu não fotografaria nunca?” Claro que essa não é a ideia. O que estou dizendo é que a fotografia não deve ser mais importante do que… aquilo que importa. A fotografia é secundária ao viver. E ela deve ser feita com tanta presença como os momentos que devem ser aproveitados sem que ela atrapalhe. Não tente encaixar a fotografia em tudo o que você faz. Em vez disso, escolha um momento apenas para fotografar. Saia apenas para isso, suba aquela montanha apenas para isso. Esteja totalmente envolvido com o propósito de fotografar, em situações adequadas para isso. O casamento da sua irmã não é essa situação. Separando as coisas, a vida fica melhor — e a fotografia também. Eventualmente, depois de um bom tempo, você conseguirá conciliar as coisas. Vivendo e fotografando, sem que uma coisa atrapalhe a outra. Mas é preciso começar com elas separadas.

É véspera de ano novo e, ao pensar no programa de logo mais, fico tentado: “pessoas interessantes, lugar legal, queima de fogos… renderia boas fotos”. Mas então me lembro que quero ouvir o que as pessoas têm a dizer, rir junto, ver a queima de fogos com os próprios olhos, não através de um visor, preocupando-me com qual ajuste usar para congelar o momento. O máximo que isso vai me custar é não receber um elogio em alguma rede social por uma foto dos fogos explodindo — igual a milhares de outras, diga-se de passagem. Ou seja, um preço muito baixo frente ao que se ganha. A câmera vai ficar em casa.

Fotografia, grupos e o narcisismo das pequenas diferenças

Há um conceito nas obras de Freud — criador da psicanálise — chamado de “narcisismo das pequenas diferenças”. Para Freud, há sempre uma ferida narcísica quando se reconhece, no outro, alguma distinção: uma discordância sobre um ponto de vista, uma maneira diferente de fazer as coisas, por exemplo. Ou seja, nos sentimos pessoalmente afetados quando nos percebemos diferentes do outro. Ao nos sentirmos mal com nós mesmos, precisamos de confirmações: o errado sou eu o outro? Melhor que seja o outro. Dessa forma, aquela pequena dissonância torna-se mais relevante do que todos os pontos em comum e o outro, embora muito semelhante, é tido como muito distinto.

Esse processo é essencial na formação de grupos. Para nos reafirmarmos frente ao diferente, associamo-nos a pessoas com quem nos identificamos. Em contrapartida, elegemos um grupo de pessoas parecidas, mas com pequenas diferenças, a quem nos opomos. Dentro do grupo, as relações são relativamente fraternais e ausentes de críticas; o ódio e a agressividade são dirigidos para fora do grupo, para esse alvo ligeiramente diferente. Podemos ver isso desde em torcidas de futebol como na unificação da Alemanha nazista que precisou construir um contraponto no ataque aos judeus.

Embora bastante primitivo, o narcisismo das pequenas diferenças está presente em muitas – quem sabe, quase todas – das relações humanas grupais. Na fotografia, não poderia ser diferente. Profissionais opõem-se a amadores; fotógrafos que usam filme opõem-se a fotógrafos que usam digital; compradores da marca x opõem-se a compradores da marca y; fotógrafos de paisagem opõem-se a lomógrafos; fotógrafos publicitários opõem-se a fotógrafos sociais e por aí vai. Todas essas distinções, no entanto, ocultam algo que todos têm em comum e que é muito mais relevante: o amor pela fotografia.

Pasty Xie
Pasty Xie

É bastante confortável se identificar com um grupo. Recebemos apoio, aprovação e compreensão. Temos a sensação de pertencer a algo. Ao nos compararmos com outros grupos, sentimos que temos mais razão, mas qualidade, mais valor: tudo isso alimenta o nosso ego. É justamente essa necessidade egóica de afirmação que nos empurra para os grupos; quanto maior for nossa insegurança, quanto menor for nossa autoestima, maior será a nossa necessidade de buscarmos essa aceitação no grupo e maior será a nossa agressividade em relação a grupos distintos.

No entanto, isso terá um preço. Uma vez que os grupos tendem a ser essencialmente confirmadores, não tolerando conflitos internos, o indivíduo terá que se conformar às normas grupais. Se o fizer, terá o apoio que busca. No entanto, ao se mostrar “desviante” além do tolerável pelo grupo, será convidado a se retirar. É muito mais fácil simplesmente eliminar o diferente do que tentar incoporá-lo. Obviamente, isso varia de acordo com a maturidade de seus membros.

Michael Goodin
Michael Goodin

Na fotografia, isso significa ter uma produção condizente com a proposta do grupo e não questionar a superioridade da pequena diferença que identifica aquela facção em particular — o estilo das fotos, a marca da câmera, o ramo da profissão etc. Tudo que for feito dentro do aceitável será elogiado, enquanto tudo que for feito de diferente será rejeitado. Dessa forma, o indivíduo não sabe de fato qual o valor da sua produção em si: ele terá, apenas, uma avaliação da concordância ou não da sua fotografia em relação ao ideal formado pelo grupo.

Qual seria a maneira, então, de poder se agrupar sem cair na armadilha de fazê-lo puramente por conta das nossas necessidades de autoaformação? Em primeiro lugar, é essencial reconhecer que aquilo que nos une é muito maior do que aquilo que nos divide. Todos gostamos de fotografia, todos queremos fazer boas fotos, todos queremos fazer algo relevante. Nenhuma diferença é tão importante que se compare a isso. Em segundo lugar, os grupos precisam de flexibilidade e tolerância suficientes para que seus membros possam expor sua produção e ideias sem se sentirem acuados pela necessidade de conformação com os demais. Tolerar a diferença dentro e fora do grupo é essencial para o desenvolvimento fotográfico de cada um, bem como do grupo como um todo.

Uma janela e um dia nublado

A luz difusa é a essência do retrato. Ela suaviza as formas do rosto ao mesmo tempo em que cria volume. Não é à toa que em estúdios são utilizados sistemas complexos de iluminação, flashes, rebatedores etc. a fim de se eliminar sombras e criar transições suaves entre áreas mais ou menos iluminadas. Porém, muitas vezes as únicas coisas necessárias para criar essa luz perfeita para fotografar pessoas são muito mais triviais: uma janela, que todos temos à mão; e um dia nublado, que é algo que temos à disposição de tempos em tempos.

Com essa combinação, cria-se uma luz difusa lateral que usualmente joga uma parte do rosto na sombra, enquanto revela detalhes da expressão da pessoa retratada. Mas não é apenas isso. A luz fria e suave proporciona um ambiente de intimidade e proximidade, especialmente porque estamos, nessas fotos, dentro, junto com a pessoa, isolados e protegidos do mundo exterior. A luz difusa também ajuda a moldar o ambiente que cerca o retratado, compondo assim o cenário em que a pessoa é protagonista. Selecionei uma série de fotos que ilustram o universo que vai do cotidiano ao melancólico e que pode ser criado, apenas com os elementos mais básicos da fotografia: uma câmera e uma boa luz. Continue lendo “Uma janela e um dia nublado”

Câmeras e fogões

Na última sexta, eu e minha amiga Paula Porto andávamos pelo centro de São Paulo, na região da Rua Sete de Abril, famosa por reunir diversas lojas de material fotográfico. Estávamos indo até o laboratório do sr. Ogava, na Rua Barão de Itapetininga, para deixar alguns rolos de Tri-X para revelar. Paula tem um blog de culinária bastante conceituado, o …de Salto Alto na Cozinha. As fotos dos pratos que ela apresenta no site são feitas pelo seu marido, Ricardo. Passando pelas lojas cheias de câmeras e lentes nas vitrines, começamos a conversar sobre equipamentos, fotográficos e culinários.

Ela me contou que tinha alguns amigos que também gostavam de fotografia. Ela explicou que o padrão que eles apresentavam era de aquisição de uma grande quantidade de material: lentes, mochilas, acessórios. Fazendo uma analogia com a culinária, ela falou, em tom divertido, sobre pessoas que tinham fogões e equipamentos de cozinha caros e sofisticados, mas que apenas os utilizavam para receitas extremamente simples, para as quais não havia necessidade de tanto. Constatamos que existe, muitas vezes, um fetiche pela manipulação da ferramenta como mais importante do que a criação de fato. Ou seja, há pessoas que gostam de usar a câmera, mais do que de fazer fotos; ou de usar o fogão, mais do que de cozinhar.

Sergey Podatelev
Sergey Podatelev

Enquanto esperávamos o elevador no antigo prédio a poucos metros do Teatro Municipal, perguntei se as pessoas sobre quem ela falou eram felizes fazendo isso. Ela disse que sim, que eles se divertiam muito tanto com suas câmeras como na cozinha. Respondi, então, que achava que não havia mal nenhum nisso e que, na verdade, era isso que importava. No fundo, o que todos queremos é fazer aquilo que nos faz bem, e me parece fora de lugar criticar alguém porque seu prazer está na operação dos equipamentos e não na criação de fotografias — ou pratos.

Chegamos ao laboratório. A sala em que o Ogava nos recebe estava no seu habitual caos, repleta de pacotes amarelos de filmes revelados, fotografias ampliadas, algumas câmeras antigas jogadas em um canto e a antiga TV de tubo sobre um móvel. A janela estreita e longa no fundo da sala, condizente com o alto pé direito, permitia a entrada da luz opaca, típica de um dia chuvoso de outubro. Deixei dois rolos de filme para revelação e pedi que ele ampliasse, em 30×40 cm, o retrato de um casal de amigos que se juntará em breve e que eu havia feito alguns meses antes: será uma espécie de presente de casamento. Conversei com ele sobre como fazer o corte para acertar o quadro na proporção do papel e fomos embora.

We Make Noise !
We Make Noise !

Embora eu já tenha sido muito crítico em relação a questão da supervalorização do equipamento — e provavelmente alguns dos textos mais antigos do Câmara Obscura refletem isso — hoje não me sinto à vontade para criticar a forma como as pessoas escolhem usar o seu tempo. Há uma espécie de paradigma, entre fotógrafos amadores-avançados e profissionais, que diz que as pessoas não podem simplesmente usar uma câmera e fotografar os momentos relevantes da sua vida. De acordo com essa concepção, elas têm que estudar fotografia, têm que saber como usar a câmera, têm que fazer cursos, têm que ler livros, têm que saber compor, e por aí vai. Mas, pensando a fundo, não consigo imaginar nenhuma boa razão para todas essas obrigações. A impressão que dá é que todo mundo é obrigado a produzir obras-primas o tempo todo. Essa concepção não é apenas ditatorial — é também impossível.

Não deixo de pensar, no entanto, que para aqueles que de fato querem fazer fotos significativas — por opção, não imposição — que além de todo o estudo que realmente é necessário, é preciso utilizar o equipamento com racionalidade. Uma boa câmera compacta, ou uma reflex digital com a lente do kit (em geral 18-55mm), ou uma reflex analógica com uma lente de 50mm são mais do que suficientes para um fotógrafo inspirado, com boas ideias e disposição para procurar as melhores imagens. Até porque a “limitação” do equipamento ajuda no desenvolvimento de outras habilidades que são essenciais para a boa fotografia e não estão na operação da câmera (escolha do assunto, leitura da luz, ângulo, momento). Isto posto, posso até arriscar uma conclusão: se o seu prazer está na operação da câmera — e não há nada de errado nisso — você provavelmente está certo em ter o máximo de equipamento possível. No entanto, se a sua busca é por uma fotografia significativa no seu conteúdo, talvez seja uma boa ideia reduzir o equipamento ao mínimo possível.

Fotografia: um bloco de notas

Em um dos últimos textos, falei de como as fotografias, através do seu corte no tempo, atestavam a morte de um momento. Entretanto, e talvez pelos mesmos motivos, o ato de fotografar é um tributo ao momento presente. Existem poucas atividades que trazem tanto a nossa atenção ao instante imediato do que enquadrar uma cena através do visor de uma câmera. Nos instantes que precedem a tomada da foto, não há preocupações com o futuro ou o passado: desligamos, ainda que brevemente, nossa torrente de pensamentos que nos arrasta para longe do presente e focamos no aqui e no agora.

As filosofias orientais costumam ressaltar a importância de voltar-se para o momento presente. Estamos constantemente pensando, planejando, antecipando ou fazendo alguma coisa. Podemos passar dias, meses ou anos com nossas mentes ligadas nesses processos, sem nunca parar um momento e simplesmente viver o instante em que se está. Se pensarmos que na verdade não há passado ou futuro, é ainda mais estranho o quanto gastamos de tempo vivendo em função deles.


xiu×5

Fotografar, então, pode ter essa função. Não é possível fotografar o que já passou ou o que será. Somos obrigados a nos voltar para o que está acontecendo no momento, no lugar em que estamos. Temos que lidar com o que está disponível. É comum que depois de um tempo dedicando-se à fotografia como atividade de lazer ou profissão, passemos a olhar o mundo com um olhar diferente, enquadrando e compondo cenas que se formam na nossa frente. Talvez esse exercício também possa nos ajudar a retornar para o aqui e o agora mesmo quando não estamos com a câmera nas mãos.

Quando fotografamos, estamos criando, de certa forma, o enredo das nossas vidas, montado a partir dos milhares de momentos presentes que passamos. Mesmo quando estamos preocupados com questões técnicas, mesmo que estejamos fotografando num estúdio, por mais artificiais que possam parecer as situações, mesmo assim, fotografamos aquilo que vivemos, sempre. Algumas vezes, quando queremos fazer uma fotografia especial, tomamos cuidado com a técnica, gastamos tempo com o pós-processamento, estamos, metaforicamente, tentando escrever um pequeno conto, uma narrativa mais elaborada a partir daquilo que testemunhamos. Inversamente, quando sacamos o celular para uma foto rápida, estamos anotando um lembrete num bloco de notas. Mas, quer a foto seja uma narrativa elaborada, quer seja uma nota rápida, são igualmente relatos daquilo que vivemos.


Matea Jocic

Se abandonarmos por um momento todas as questões criativas, artísticas e estéticas envolvidas, focando apenas nessa característica da fotografia enquanto testemunho, relato ou demonstração de alguns de nossos momentos, torna-se difícil olhar as fotos de forma crítica. Todas elas são igualmente banais e igualmente significativas, independentemente de como foram feitas. Cada foto representa um instante de alguém. E somos bilhões de alguéns passando de um instante a outro constantemente. Como algo poderia ser mais comum? Por outro lado, não há nada além disso. Como algo, então, poderia ser mais sublime?

Tendemos a organizar tudo que percebemos de acordo com classificações, julgamentos, análises, aplicando constantemente um ou outro critério, um ou outro referencial. Será possível tomarmos as fotos – e talvez outras coisas – apenas como aquilo que são? Nada e tudo ao mesmo tempo?

Técnica e linguagem: flash

Quando se aprende a fotografar, um dos aspectos mais relevantes é como explorar a luz. Nos cursos e livros de fotografia, incentiva-se o uso da luz natural ou de sofisticados esquemas de iluminação para que as sombras fiquem suaves, as formas volumosas. Foge-se do flash direto a qualquer custo. Flash direto é o flash sem qualquer rebatimento ou suavizador da luz, disparado direto da câmera (ou de um aparelho de flash externo) para o assunto fotografado. A luz resultante é dura, fria, gerando sombras marcadas e formas chapadas.

Há dois motivos principais pelos quais os profissionais ou amadores avançados fogem do flash direto: primeiro porque associam essa técnica aos amadores “comuns”, ou os fotógrafos de fim de semana, cujas câmeras automáticas sempre utilizam esse recurso quando há escassez de luz. Criar iluminações mais sofisticadas é uma espécie de atestado de conhecimento fotográfico. Além disso, o flash direto denuncia a captura fotográfica, o funcionamento da câmera e a sua limitação: uma vez que não é capaz de captar a cena apenas com a luz existente, é preciso lançar mão de um recurso artificial, quebrando a ilusão da fotografia como cópia da realidade.

No entanto, a luz do flash não rebatido é apenas mais um tipo de luz, como qualquer outra. Ela descreve a cena de uma maneira particular que, por si só, não é melhor ou pior do que outras maneiras, até que utilizemos algum critério subjetivo. O uso do flash direto, pelo seu caráter de desconstrução da ilusão, também é algo subversivo, proporcionando uma forma interessante de fotografar de forma mais autoral.