Imagine uma folha de papel em branco. Com uma simples caneta, você poderia encher essa folha de papel com uma história, um poema, seus pensamentos, seu ponto de vista. Se você consegue ler este texto é porque foi treinado, durante anos a fio, na habilidade da leitura e da escrita. Você pode, através de sinais especiais e combinações — letras e palavras — organizar qualquer discurso que o idioma permitir.
A fotografia também é uma espécie de discurso. Como qualquer arte visual, ela oferece, através da imagem, a possibilidade de se contar uma história, mostrar uma cena poética, expressar a sua opinião e a sua forma de ver o mundo. No entanto, nós não recebemos anos e anos de treinamento nos elementos do discurso fotográfico como recebemos no uso de palavras e frases. Isso torna a construção e a leitura de fotografias uma tarefa que, embora pareça fácil na prática, é difícil ao se considerar as possibilidades que o idioma da câmera nos permite.
Ao ver boas fotos, nem sempre é possível identificar os porquês de tal julgamento. Geralmente, diz-se que a foto é bonita quando aquilo que ela retrata é bonito. No entanto, a imagem é uma construção do aparelho, que tem a sua própria linguagem, podendo ser mais ou menos controlada pelo seu operador. Quanto mais o fotógrafo conhece essa linguagem e a utiliza em prol das suas intenções, maiores serão as possibilidades criativas e, provavelmente, melhor será o seu discurso. Fotografar ignorando a construção da câmera e apenas retratar o mundo é como escrever apenas copiando.
Bons fotógrafos podem trabalhar de forma que essa construção não seja percebida, fazendo com que o observador mergulhe na cena. Da mesma forma, bons escritores podem elaborar seus textos de maneira que o leitor mergulhe na história. No entanto, enquanto escritores experimentais podem ressaltar aspectos da construção do texto a fim de explicitar esse processo, criando uma espécie de metalinguagem, fotógrafos também podem tornar claros os mecanismos de ação do aparelho, impedindo que o observador caia direto na imagem e, antes, perceba a sua natureza. Na fotografia, pode-se considerar que essa conduta é importante justamente pelo fato de não sermos treinados no seu discurso.
O que chamamos de elementos da linguagem fotográfica são os aspectos técnicos implicados na construção da imagem pela câmera. Alguns, como o enquadramento, o movimento e a resolução já foram abordados em detalhes. Mas há outros, como o foco, as cores, o formato, a distância focal. Há um modelo de discurso tido como mainstream na fotografia, ou seja, uma forma de fazer consolidada. Geralmente prega-se que as fotos devem ser nítidas, o enquadramento mostre uma cena fácil de ler, o foco esteja pelo menos num ponto da foto, as cores sejam equilibradas ou sejam substituídas por tons de cinza e por aí vai. Esse modelo é difundido porque é efetivo em mostrar as coisas. As câmeras geralmente são configuradas, manual ou automaticamente, a fim de se manter dentro desse modelo. No entanto, aquele que quer exercitar a fotografia como atividade de criação, precisa entender cada um desses elementos como um leque de possibilidades, um conjunto de palavras pelas quais pode ser optar.
Valorizam-se muito, entre os amadores avançados, as câmeras que têm modos manuais de controle, ou seja, que permitem controlar foco, abertura do diafragma, ISO e tempo de exposição. Ou seja, há uma maior possibilidade de combinações, permitindo variar mais o discurso fotográfico. No entanto, muitos amadores usam o modo manual apenas para fazer eles mesmos o que a câmera faria automaticamente, ou seja, montar o discurso do mainstream. A grande vantagem dos controles manuais e permitir que cada elemento técnico seja visto como uma opção.
Algumas pessoas se incomodam com fotografias que não usam o discurso convencional. Isso ocorre porque a fotografia, quando feita de forma a evidenciar o processo, através, por exemplo, de um corte não convencional, com a aparência dos pontos que a compõem ou com “defeitos” óticos, parece errada. Parece errada porque não obedece o mote de se criar uma ilusão quase perfeita e porque é diferente da grande maioria das fotos, que apenas mostram. Também incomoda porque a leitura é mais difícil: não basta simplesmente “ver” a cena, coisa com a qual já estamos mais do que acostumados: os elementos fora de lugar saltam aos olhos, e é inevitável dar atenção a eles, que quebram a simples ilusão e a leitura fácil. É preciso entendê-los, tais quais as palavras, e pode ser incômodo passar por esse processo.
Por certo, pode-se ser muito bom no discurso convencional, e pode-se ser muito bom sem conhecer ou experimental outros modelos. Entretanto, parece-me lógico que decodificar a construção da imagem fotográfica e recompor os seus elementos a favor do sentido que se pretende atribuir pode tornar a fala fotográfica muito mais eloquente. Ou seja, em vez de pensar em um modelo único, vale a pena conhecer as palavras e montar o próprio discurso.
Bom artigo, Rodrigo, especialmente os três primeiros parágrafos.
Uma delícia poder brincar com os recursos da câmera, não? Desconstruir o óbvio pra reconstruir um discurso.
E vou além, não é preciso restringir essa reconstrução às fotografias autorais. Aplicar esse discurso pode proporcionar resultados muito interessantes na fotografia publicitária, ou na fotografia social, por exemplo.
O complicado dessa obviedade visual é as pessoas comprarem câmeras manuais para imitar o japonesinho que mora dentro da máquina.
Manipulador malandro esse japa…
este post evidencia a meu ver um dos grandes problemas de quem gosta de fotografia; passamos demasiado tempo preocupados com o aspecto técnico e descoramos o discurso.
Parabéns! adorei
Sou escultor e sempre utilizei a fotografia como fonte de pesquisa e inspiração, sejam fotos de profissionais ou as que faço, mas só recentemente estou me dedicando a estudar as técnicas mais profundamente e este tópico me faz lembrar uma ocasião ainda adolescente, fiz um desenho que representava o Sol e suas camadas e ao entregar para a professora de Geografia fui repreendido pela outra, a de desenho: “Não te ensinei que deve pintar numa só posição para que não apareça a marca do lápis?” O fato é que eu sabia da “regra” mas tive a inspiração de fazer de forma mais dramática, afim de passar a impressão ardente do Sol, desculpem a comparação, mas é isso que vemos em todas as formas de Arte, aliás muitos se esquecem que Fotografia é uma delas. Portanto não existem regras o que existe é técnicas e recursos tecnológicos que devemos nos aprofundar para estarem a serviço désta nobre arte.
Outro artigo muito oportuno — vc anda “afiado”, hein, Rodrigo?
Já tomaste contanto com os estudos do Pierre Bourdieu sobre a arte? Acho que eles enriqueceriam teu ponto de vista. (Não estou dizendo que hj teu ponto de vista esteja pobre –risos– mas que há uma série de discussões que estão implicítas no teu texto e que podem ser brilhantemente desenvolvidas.) Do Bourdieu recomendaria, especialmente, “O amor pela arte” e “As regras da arte”.
Abraços!
Agradeço a todos pelos comentários. João, obrigado pelas indicações de leitura.
Abraços.