No Flickr, mais de três mil fotos são publicadas a cada minuto. No Twitter, o número de mensagens superou os dez bilhões. A previsão de Flusser, feita 20 anos atrás, de que seríamos subjugados pelas imagens técnicas (telas de computadores, de televisão, de celulares) e apenas nos submeteríamos a uma avalanche infinita de informações “novas” a cada dia nunca pareceu tão concreta. A esperança de que talvez fosse possível usar a difusão da informática a das telecomunicações para o aumento da consciência sobre o funcionamento desse sistema, ao permitir uma espécie de contracontrole, diminui a cada movimento que “facilita” a comunicação.
Os e-mails já estão fora de moda. Os blogs já parecem pesados e antiquados. Fóruns de discussão são ferramentas rudimentares e seletivas. As formas de comunicação pela internet seguem a lógica da sigla TLDR, que significa too long; didn’t read, ou seja, “muito longo; não li”. A comunicação é cada vez mais fácil, imediata, curta, objetiva, clara. Porque escrever um e-mail se com 140 caracteres se cria uma mensagem no celular ou no Twitter?
No seu célebre 1984, escrito nos anos 50, George Orwell descreve a sociedade totalitária futurística no qual todos são vigiados através das teletelas. São monitores que ao mesmo tempo mostram e captam imagens, utilizados como instrumento de controle do governo. A privacidade não existia e cada cidadão precisava controlar até mesmo seus pensamentos: falar mal do líder (o Grande Irmão, ou Big Brother) até mesmo durante o sono poderia evidenciar um traidor, que era punido exemplarmente. O que Orwell não previu é que não seria necessário um governo totalitário para forçar as pessoas a perder sua privacidade. As pessoas voluntariamente, e com prazer, abrem suas vidas e sua intimidade para quem quiser ver. E não estou falando daqueles que aparecem em reality shows na TV, como o que tem o título ironicamente baseado no romance de Orwell. Falo de todos nós que nos expomos diariamente no Facebook, no Orkut, no Twitter, no Flickr. Somos o sonho de qualquer ditador.
No entanto, não há ditador. Há apenas um sistema baseado na comunicação cada vez mais rápida e simples, que premia com 15 minutos de fama e segue em frente, na necessidade voraz de produzir, a cada segundo, “novas” informações e “novas” imagens. A arte já era “contemporânea” antes mesmo da telemática de Flusser se tornar tão evidente: já não importa mais a qualidade dos trabalhos, o valor das obras. Vale a rede do comunicação, os contatos, o networking. Quem faz o artista não é sua produção, é sua capacidade de se adequar a essas contingências. Para os que não aceitam esse novo estado de coisas: o próprio Flusser já diz que não adianta gastar voz contra a qualidade dos trabalhos ou pela restauração dos valores ultrapassados; é preciso conhecer o sistema e subvertê-lo de dentro, já que ele não é planejado nem controlado por ninguém. Ele simplesmente existe.
A fotografia digital é a vedete dos novos tempos. Ao permitir sua visualização e disseminação imediata (já existem câmeras que fazem upload automático das fotos para o Facebook ou outras redes sociais), ao não ser necessário o conhecimento de nenhum tipo de código para sua produção e leitura, como na escrita, ela é o combustível perfeito para essa roda de moinho que precisa de impulso constante. O conteúdo importa pouco, desde que seja de fácil compreensão e de preferência com uma forma impactante. Isso ajuda na sensação de que aquilo que está sendo visto é novo e relevante, embora se preste atenção por apenas um segundo e um minuto depois já foi esquecido, na medida em que nossa atenção já flutuou por dezenas de outros estímulos. Em última análise, não passa de mais do mesmo.
Obviamente, existem ótimos trabalhos expostos na internet (como os que ilustram este artigo, e foram postados justamente… no Flickr). A questão é que infelizmente eles se pulverizam sobre o mar de banalidades. Se forem vistos, poderão ao menos gerar uma dezena de comentários vazios e delegados ao esquecimento, logo em seguida. Os trabalhos mais apreciados na rede são aqueles que seguem a lógica do TLDR, que também vale para imagens: fotos de fácil compreensão, mensagem rasa, clara e limpa, que alimente a roda e não a trave, exigindo reflexão ou uma leitura mais apurada.
Tenho visto as pessoas que de fato gostam da fotografia lidando de diferentes formas com esse cenário. Algumas simplesmente não conseguem se adaptar a ele, não postando fotos na internet e mantendo o velho hábito de imprimir as imagens ou apenas compartilhá-las com conhecidos. Outros, de forma inversa, entendem que é preciso lutar pela visibilidade a cada dia, e de fato obtêm sucesso com um trabalho consistente: embora muitas vezes ele seja pautado simplesmente pelos comentários de desconhecidos e envolva uma necessária repetição, o que inevitavelmente acaba tolhendo as possibilidades criativas. Alguns preferem uma perspectiva mais introspectiva, buscando fotografar para si mesmos, ainda que publiquem os resultados na internet. Inevitavelmente, nesse caso, há um conflito entre a perspectiva pessoal e a expectativa geral, de que as fotos devem comunicar algo menos particular. E há aqueles que não se preocupam tanto com a questão, simplesmente publicando imagens de forma indiscriminada: e essas imagens médias são o grosso desse oceano.
E há, de fato, poucas alternativas para quem fotografa e quer, de alguma forma, validar ou expor seu trabalho. Afinal de contas, a explosão da internet e de outras formas modernas de comunicação fazem com que se você não está online, é como se não existisse. O dilema é como se situar entre a inexistência e a pulverização no oceano de informações. Se alguém souber a resposta, me avise.
Passaram-se duas horas desde que comecei a escrever esse texto. Nesse meio tempo, mais de 360 mil fotos foram publicadas apenas no Flickr. Diversas pessoas acordaram e narraram suas atividades no Twitter. Inevitável pensar que é quase um exercício de simplesmente falar sozinho. Estarmos totalmente conectados, ao invés de propiciar a troca e a criação em conjunto de que Flusser fala, a partir de um patamar que é impossível de se obter sozinho, apenas nos torna mais narcisistas. Mas, se você chegou ao fim desse texto, é porque a lógica do TLDR ainda não é universal. E talvez nem tudo esteja perdido.
Mais uma postagem excelente.
Obs.: Não foi curto, mas eu li.
Rodrigo; Um dos seus textos de quem mais gostei, por um motivo muito simples: desde o início você não busca solução, não indica solução, e isso é perfeito, pois não há solução mesmo, ou pelo menos não no nível onde as coisas ganham selos de reconhecimento, onde são validadas.
Você conhece minha posição, embora hoje eu tenha mais algo a dizer sobre ela -não aqui, pois é coisa longa- mas para mim existe o “Paradigma Elomar”. Que paradigma é esse? Pois bem, o Elomar é um dos 10 maiores músicos do Brasil. Contudo, é praticamente um desconhecido. Ele não é desconhecido por ser injustiçado, isso é uma leitura errada. Ele é desconhecido porque quer. Por se recusar a jogar o jogo e preferir produzir como gosta. E viver sua vida nas barrancas do Rio Gavião, em sua fazenda de bodes. Ele dosa a fama, ele dosa de maneira a não lhe custar nenhuma concessão a ela, nenhuma produção somente para tê-la.
O visgo da armadilha é querer ser conhecido. Querer ser conhecido nos lança diretamente nessa roda-viva, nessa roda de moinho, nessa Roda D’água de Lorenz, caótica mas movimentada.
Adiantando um pouco meus pensamentos, os quais tentarei depois explicar mais longamente, penso haver uma única chance para o homem: viver uma existência estética. Mas isso é com ele, não tem nada a ver com reconhecimento externo ou validação de sua produção. Todo o resto é alienação. O Paradigma Elomar é um exemplo dessa opção.
Adorei muito seu texto, tudo que escrevesse é pertinente e nos faz pensar, onde está nossa privacidade, lutamos tanto por isso e hoje a jogamos fora, não vou negar, tenho twitter, facebook, orkut, flickr, mas a única coisa que eu realmente atualizo é o flickr, apesar da fotografia mostar nossos sentimentos, ela nao é tao escancarada quanto outras formas de comunicação.
E acho que nem tudo está perdido… até pq eu li todo o seu texto ( o que é uma coisa rara hoje em dia, ler algo maior que 140 caracteres na internet). beijos.
Adorei o artigo Rodrigo e como a historia nos mostra há sempre um movimento hora expandindo hora contraindo e a maioria se deixa levar nesta onda, porém eu acredito que o maior presente que temos nesta vida é nossa liberdade e é por ela que devemos lutar, pelas coisas que acreditamos, o reconhecimento e a fama podem chegar e podem ir embora, mas aquilo que temos de nós para nós, ninguém nos tira e a liberdade de podermos dizer “nao” à grande massa é algo que muito poucos possuem.
abracos
vilma
[…] Fotografia: vedete do admirável mundo novo, no Câmara Obscura […]
parece legal, mas muito longo, não li.
haha.
essa lógica da sociedade contemporânea é difícil de lidar, mas do mesmo modo como ela nos atrapalha, ao dar a possibilidade de qualquer um tornar qualquer coisa pública, não importa a qualidade ou relevância do conteúdo, a internet possibilita a construção do conhecimento compartilhado e colaborativo, e é auto-regulada. só visitar a wikipédia e ver que a maior parte das pessoas dividem seus conhecimentos e há estudos que comprovam que essa plataforma wiki pode ser compara à barsa, no que diz respeito a exatidão do conteúdo.
eu acredito que essa é uma fase de transição, de uma profunda mudança na cultura e na sociedade, e como toda coisa que não conhecemos, assusta.
Caro, cheguei ao final do texto e sinto-me feliz por isso.
Muitos são os que re-produzem e disseminam conteúdo, mas poucos são os que produzem. Você é um dos poucos e raros que produzem e com qualidade! Todas as pontuações para boas reflexões. Que legal reencontrar o Ivan de Almeida, saudações! Imaginem o tormento para um pobre brasileiro que vive no Brasil e teimosamente continua a fotografar e produzir em preto e branco? Mas existo, tenho um SAITI hehehheh abraços
Há tanta coisa que eu gostaria de dizer! Não que eu não saiba o quê dizer… Não, não é nada disso! Mas por hora eu prefiro não dizer nada. Só pensar. E refletir, claro! Não é preciso chegar a uma conclusão. Eu gosto mesmo é disso: pensar e refletir. É que seu texto leva à reflexão.
Ah, uma citação:
“O que caracteriza um artista é ele olhar para dentro de si mesmo . Toda experiência em arte é um experimentar-se, é a experiência de si mesmo, é uma pesquisa em você mesmo. Você não pode fazer experiências com os outros. Este silêncio do olhar para dentro à procura da origem das coisas é o grande problema da arte. Procurando a origem você fica original, e não, querendo fazer uma coisa diferente. É por isso que eu acho que criar está junto com viver, que arte e vida são a mesma coisa.”
Amílcar de Castro
Está cada vez mais dificil encontrarmos textos tão bons quanto esse, justamente por causa da lógica do TLDR. Sabe por que consegui chegar ao final do seu texto? Porque ele é incrivel, assim como os outros do blog! Aliás, um blog como esse, com textos tão bons é que raramente encontro por aí. Parabéns!
Sendo completamente TLDR em meu comentário: ótimo artigo, para ler e pensar do inicio ao fim.
Abs.
[…] é à toa que a fotografia é a vedete do admirável mundo novo. Ela assume tantas funções que se conformam perfeitamente com o sistema econômico e o modo de […]
Li o texto todo. Boa proposta para discussão.
Sigo pouco diferente… leio o primeiro parágrafo, não gostei, não leio o resto. Vi as 10 primeiras fotos, não gostei, não vejo as outras.