Há um conceito nas obras de Freud — criador da psicanálise — chamado de “narcisismo das pequenas diferenças”. Para Freud, há sempre uma ferida narcísica quando se reconhece, no outro, alguma distinção: uma discordância sobre um ponto de vista, uma maneira diferente de fazer as coisas, por exemplo. Ou seja, nos sentimos pessoalmente afetados quando nos percebemos diferentes do outro. Ao nos sentirmos mal com nós mesmos, precisamos de confirmações: o errado sou eu o outro? Melhor que seja o outro. Dessa forma, aquela pequena dissonância torna-se mais relevante do que todos os pontos em comum e o outro, embora muito semelhante, é tido como muito distinto.
Esse processo é essencial na formação de grupos. Para nos reafirmarmos frente ao diferente, associamo-nos a pessoas com quem nos identificamos. Em contrapartida, elegemos um grupo de pessoas parecidas, mas com pequenas diferenças, a quem nos opomos. Dentro do grupo, as relações são relativamente fraternais e ausentes de críticas; o ódio e a agressividade são dirigidos para fora do grupo, para esse alvo ligeiramente diferente. Podemos ver isso desde em torcidas de futebol como na unificação da Alemanha nazista que precisou construir um contraponto no ataque aos judeus.
Embora bastante primitivo, o narcisismo das pequenas diferenças está presente em muitas – quem sabe, quase todas – das relações humanas grupais. Na fotografia, não poderia ser diferente. Profissionais opõem-se a amadores; fotógrafos que usam filme opõem-se a fotógrafos que usam digital; compradores da marca x opõem-se a compradores da marca y; fotógrafos de paisagem opõem-se a lomógrafos; fotógrafos publicitários opõem-se a fotógrafos sociais e por aí vai. Todas essas distinções, no entanto, ocultam algo que todos têm em comum e que é muito mais relevante: o amor pela fotografia.
É bastante confortável se identificar com um grupo. Recebemos apoio, aprovação e compreensão. Temos a sensação de pertencer a algo. Ao nos compararmos com outros grupos, sentimos que temos mais razão, mas qualidade, mais valor: tudo isso alimenta o nosso ego. É justamente essa necessidade egóica de afirmação que nos empurra para os grupos; quanto maior for nossa insegurança, quanto menor for nossa autoestima, maior será a nossa necessidade de buscarmos essa aceitação no grupo e maior será a nossa agressividade em relação a grupos distintos.
No entanto, isso terá um preço. Uma vez que os grupos tendem a ser essencialmente confirmadores, não tolerando conflitos internos, o indivíduo terá que se conformar às normas grupais. Se o fizer, terá o apoio que busca. No entanto, ao se mostrar “desviante” além do tolerável pelo grupo, será convidado a se retirar. É muito mais fácil simplesmente eliminar o diferente do que tentar incoporá-lo. Obviamente, isso varia de acordo com a maturidade de seus membros.
Na fotografia, isso significa ter uma produção condizente com a proposta do grupo e não questionar a superioridade da pequena diferença que identifica aquela facção em particular — o estilo das fotos, a marca da câmera, o ramo da profissão etc. Tudo que for feito dentro do aceitável será elogiado, enquanto tudo que for feito de diferente será rejeitado. Dessa forma, o indivíduo não sabe de fato qual o valor da sua produção em si: ele terá, apenas, uma avaliação da concordância ou não da sua fotografia em relação ao ideal formado pelo grupo.
Qual seria a maneira, então, de poder se agrupar sem cair na armadilha de fazê-lo puramente por conta das nossas necessidades de autoaformação? Em primeiro lugar, é essencial reconhecer que aquilo que nos une é muito maior do que aquilo que nos divide. Todos gostamos de fotografia, todos queremos fazer boas fotos, todos queremos fazer algo relevante. Nenhuma diferença é tão importante que se compare a isso. Em segundo lugar, os grupos precisam de flexibilidade e tolerância suficientes para que seus membros possam expor sua produção e ideias sem se sentirem acuados pela necessidade de conformação com os demais. Tolerar a diferença dentro e fora do grupo é essencial para o desenvolvimento fotográfico de cada um, bem como do grupo como um todo.
São as particularidades que pavimentam nossos objetivos em comum.
Pois é, antes de mais nada apreciar a Fotografia e tudo que a palavra Fotografia signifique. Porém, para muitos o que mais vale são suas verdades pessoais. E neste caso, ainda que façam fotos de boa qualidade, ainda que aceitem com o orgulho o rótulo de fotógrafo, nunca chegarão à Arte ou a Produção. Pois esta demanda a inexistência de cercas, a visão desbloqueada e sobretudo – pelo menos assim me parece – colocar a mente em estado de aceitação, revertendo a regra, um tanto moribunda, que manda enquadrar a Natureza das coisas dentro de uma lógica comum.
Aceitar inclusive que existam facções e reconhecer os pontos positivos nisso – tal como você tem feito nos seus últimos posts.
Sem esse estado de aceitação, parece-me um tanto dificil ultrapassar a barreira da fotografia com reprodução.
Corrigindo a última frase:
Sem esse estado de aceitação, parece-me um tanto dificil ultrapassar a barreira da fotografia COMO reprodução.
Rodrigo;
Gostei muito do início do artigo, e ele é bastante pertinente a respeito da dinâmica dos grupos. Sobre pertencer a grupos, tenho um cacoete antigo que chamo de “a arte de decepcionar”. Para mim, a medida da naturalidade com que lidamos com decepcionar pessoas que querem nos ver assim ou assado, a medida em que recusamos não apenas confirmar os demais, mas principalmente confirmar a nós mesmos através dos demais -e assim os decepcionamos- é a medida da nossa liberdade.
A partir de certo grau de concordância, começo a sentir a coisa como um grude, uma prisão que me obriga a repetir.
Penso que só se pode querer ser autor, não importa se amador ou não, não importa se reconhecido ou não, não importa se bom ou não (porque ser autor nada tem a ver com qualidade) quando extraímos de nós mesmos as validações de nossa produção. Evidentemente é bom quando ela é compreendida, mas a maior graça da autoria é exatamente o oposto: é buscar aquilo que ainda não é compreendido e persistir naquilo. A graça da autoria é a identificação de um sinal, um “presságio” de caminho, que está em uma foto, que está disfarçado ou tênue mas conseguimos percebê-lo, e aí podemos brincar com ele em desenvolvimentos sucessivos.
Inexiste autoria que depende de aprovação prévia ou que a busque.
PS: jogos grupais ocorrem, nós querendo ou não, e participamos deles, querendo ou não.