Na sua coluna de agosto na Revista Photo Magazine, Flávio Damm, um dos ícones do fotojornalismo brasileiro, comenta as obras do FotoRio 2007 e faz uma crítica ao fotógrafo digital e às “bobagens gráficas” que as facilidades da tecnologia digital permitem. Segundo Damm, o uso de solarizações, colagens e falsas técnicas apenas revelam uma falta de respeito com o público e com o próprio trabalho, já que a fotografia é, por si, uma arte autônoma e não precisa desses recursos para ser apresentada com tal. O colunista afirma que lançar mão desses recursos denota falta de maturidade e criatividade, já que a fotografia, dentro de seus limites técnicos, é suficiente para produzir trabalhos completos.
Olhando para a sua trajetória, não é difícil entender porque ele tem essa opinião. Com mais de 50 anos de carreira, cobertura de diversos eventos de relevância histórica no Brasil e no exterior, passando por muitas situações dramáticas, além da elaboração de exposições e livros, podemos apenas imaginar o valor que este instrumento, a fotografia, tem dentro dessa perspectiva. Vê-la sendo banalizada pela tecnologia digital e utilizada como tubo de ensaio para idéias e técnicas tidas como duvidosas, na comparação com a importância que ela teve em sua carreira, leva a concluir que isso realmente não passa de um mau uso.
No entanto, sinto que cabe uma ressalva no texto citado acima. Embora eu compreenda a opinião ali expressa e concorde com ela em partes, não concordo com a invalidação, a priori, de qualquer tipo de produção tida como artística. A Arte – pelo menos essa com A maiúsculo – tem como elementos a inquietação, a transgressão, a fuga do lugar-comum. Portanto, tem sempre um caráter experimental que significa, muitas vezes, a subversão de uma determinada técnica ou de uma ferramenta.
E aí acho que a crítica que é colocada pelo Flávio Damm equivocada, ou ao menos incompleta, pois se dirige às técnicas, e não ao trabalho como um todo. E essa invalidação geral das técnicas não me parece uma forma adequada de levar à questão, pois pode-se facilmente concluir a partir de seu texto que a fotografia digital ou outros procedimentos dificilmente poderiam gerar bons trabalhos, sendo preferível permanecer dentro de limites fechados que seriam as práticas tidas como válidas.
Costumo geralmente partir do que ocorre entre os fotógrafos amadores que desejam criar ou solidificar um trabalho mais “autoral”. O grande problema é que não vejo a maioria deles, que também são fotógrafos digitais, usando e abusando de técnicas como colagens, montagens e sobreposições, criando trabalhos em diversos meios – o que seria ótimo, ainda que fossem experiências. O que vejo é justamente uma obediência aos limites do que é a fotografia “tradicional” e uma total incapacidade de explorar as possibilidades dessa fotografia de forma criativa, ou de romper com seus limites – ainda que seja para experimentar novas técnicas, ser criticado e voltar ao tradicional, mas já com outro tipo de experiência.
Portanto, não sei se isso também não acaba sendo uma espécie de suicídio cultural. Tenho uma tendência a pensar que quanto mais flexíveis forem os limites da experimentação, melhor para o fotógrafo que se aventura por eles, mesmo que isso sirva apenas como uma experiência formadora. Desenvolver a criatividade dentro dos limites da fotografia “não-subversiva” parece ser ainda mais difícil e uma verdadeira corrente no pescoço daqueles que não têm uma formação cultural suficiente para essa empreitada, já que é um desenvolvimento muito mais sutil e especializado.
Ao contrário do Flávio Damm, prefiro partir do pressuposto de que tudo é válido, pois de fato tudo tem algum tipo de valor, ainda que seja o pessoal, de formação, para o autor. Ainda que essa validação geral a priori signifique que tenhamos que lidar com algumas atrocidades, como provavelmente são aquelas que o colunista cita, é possível que este seja um caminho melhor do que limitar o espaço do desenvolvimento criativo, já que isso pode significar, logo de cara, o atestado de óbito da criatividade de muitos fotógrafos.
Rodrigo;
Tenho a? dois pontos. O primeiro ? que sou f? do Fl?vio Damm. Mas n?o sou f? porque sou f?, mas exatamente porque a fotografia dele me parece trazer aquilo que reconhe?o como o mais valioso da fotografia, esse sutil depoimento a partir da argila do mundo mas que n?o resume-se ? argila. Assim, vejo o dito por ele como coerente com aquilo que mais gosto na fotografia, e completamente estretecido com sua pr?tica, e s? posso admirar.
A segunda quest?o ? que vejo freq?entemente nos seus (do Rodrigo) textos uma esp?cie de excessiva cerim?nia com tra?ar limites ?s pr?ticas. Provavelemente voc? toma tais limites de uma forma mais s?ria do que eu, e assim n?o acho nada perigoso tra?ar esses limites, pois n?o os obede?o se a circunst?ncia pedir, somente servem para pensar as coisas em suas diferen?as. Identidade e diferen?a s?o duas faces da mesma moeda.
Uma categoria ? um limite de significado e um n?cleo de significado. Fotografia: Fotografia ? um n?cleo de significado e um limite. Quando o Fl?vio Damm tra?a esse limite justo ao n?cleo, ele est? defendendo o que preza. Mas no fundo, todo limite que tra?armos ser? em algum grau arbitr?rio e em algum grau inv?lido. Contudo, sem tra?armos limites para os conceitos n?o os podemos empregar, pois tudo significar? tudo. ?gua pode significar laranja, lim?o pode significar avi?o se formos absolutamente flex?veis com os conceitos. E fotografia pode significar arte-gr?fica. Quando chegamos nesse ponto, para que serve a palavra Fotografia? J? n?o servir? para nada, pois pode indicar tudo.
Quando o Fl?vio Damm fala da fotografia mesma, isto ?, aquilo que para ele ? o n?cleo do significado, e diz ser suficiente, ele fala de uma op??o. “Quero ser fot?grafo!”. N?o quero ser ilustrador, arte finalista, artista digital, o escambau.
As op??es limitadoras s?o fecundas em termos criativos, e as op??es excessivamente desamarradas iludem, pois parecem fecundas mas s?o vazias. Veja que n?o ? inv?lido fazer artes-gr?ficas a partir da fotografia. S? ? preciso ter consci?ncia de se estar fazendo artes-gr?ficas, e j? n?o se estar adotando a fotografia como arte visual aut?noma.
Voc? quer lutar Jud?? Bem, ent?o siga as regras do Jud?. Voc? tamb?m pode empregar a t?cnica do Jud? e mescl?-la, digamos, com Capoeira. Poder pode, mas a? chama-se Vale Tudo, e n?o Jud? nem Capoeira. O que voc? n?o pode ? em uma luta de Jud? usar golpes de Capoeira. ? voc? que escolhe ser ou n?o judoca, entende? Mas se escolheu ser, ent?o aceite os limites do conceito.
Ivan,
Muito obrigado pelo coment?rio. Voc? est? certo; tenho essa cerim?nia em rela??o aos limites. Mas n?o me refiro aos limites pessoais que nos colocamos naquilo que fazemos. Esses, concordo com voc?, s?o important?ssimos para guiar nossa produ??o e para que haja uma desenvolvimento criativo.
Mas n?o fico confort?vel quando se coloca um limite conceitual ? e quando se fala que isto ? ou n?o v?lido ? um limite conceitual ? que se aplica ? Fotografia como um todo, feita por todos.
Meu inc?modo n?o se deve a um liberalismo excessivo ou a um comprometimento com algo que n?o seja a fotografia dentro desses limites que conhecemos. Voc? sabe que muitas das fotos que fa?o caem dentro daquela concep??o sua e do Fl?vio Damm dela como arte visual aut?noma, como nas experi?ncias de cunho construtivista.
No entanto, voc? se lembra como foi dif?cil amarramos todas as pontas quando escrev?amos justamente sobre o que era a fotografia? E ainda h? o problema das diversas vis?es te?ricas que existem, desde Barthes com sua defesa realista at? o Dubois colocando a fotografia como ?ndice, passando pelo Arlindo Machado e sua ilus?o especular.
Portanto, acho dif?cil construir uma conceitua??o e delimita??o da fotografia que n?o se baseie num referencial naturalmente excludente de pr?ticas diversas ?s centrais das de quem elabora os conceitos. Ent?o, escolho ser judoca, mas nesse caso talvez as regras ainda n?o tenham sido totalmente consolidadas e sempre requerem um n?vel de interpreta??o maior do que seria necess?rio caso houvesse maior consenso.
Ent?o, veja que eu n?o discordo de voc? ou do artigo do Fl?vio Damm. Pelo contr?rio, s?o concep??es que fazem muito sentido e s?o coerentes. Meu ?nico ponto nessa discuss?o ?: “ser? que j? (ou ainda) podemos fazer esse tipo de afirma??o sobre o que ? a fotografia?” O F. Damm, pode, a partir de toda a sua experi?ncia com o fotojornalismo, tra?ar suas pr?prias defini??es. Voc? pode, a partir de sua forma??o e seu contato com as artes pl?sticas estabelecer o seu c?rculo de atua??o. Meu ponto n?o ? que n?o s?o concep??es e limites v?lidos, ? apenas de que n?o s?o consensuais.
Tamb?m li esse artigo e quando o li fiquei pensando o porqu? daquela rea??o. Ficou parecendo um pouco o Monteiro Lobato falando da Semana de Arte Moderna. Adoro Monteiro Lobato, mas nunca concordei com ele nesse ponto.
De qualquer modo acho que a quest?o nem eram os limites da fotografia para ele e sim o fato de se apresentarem trabalhos ruins definidos como arte apenas por terem sido utilizadas t?cnicas pouco convencionais ou mesmo esdr?xulas. Foi essa a impres?o que o artigo me passou.
[…] H? alguns meses, comentei um artigo do mestre Fl?vio Damm no qual ele acusava alguns dos artistas do FotoRio 2007 de fazerem um mau uso da fotografia. Eu expressava minha dificuldade em tra?ar limites sobre o que pode ou n?o pode, uma vez que entendo ser a fotografia j? um processo brutal de transforma??o do real. Para quem quiser conferir o post, que teve algum desenrolar nos coment?rios, basta acessar: O Uso Leg?timo da Fotografia. […]