Temos uma tendência a venerar os inventores e seus esforços individuais. Sabemos quem inventou o avião, o telefone, o rádio, a fotografia. Ao pensar nessas pessoas, temos a impressão de que elas criaram, do nada, objetos revolucionários. Olhando de perto, no entanto, podemos perceber que não é bem assim. Por que foram os irmãos Wright e não Leonardo da Vinci que inventou o avião? Entre outros motivos, porque só no início do século passado havia tecnologia suficiente para possibilitar a construção de um aparelho que voasse, ainda que da Vinci dominasse os conceitos necessários para idealizar tal objeto. Quem possibilitou a existência dessa tecnologia? Diversos outros anônimos que aprimoraram técnicas e materiais, por exemplo.
A invenção, assim, não é obra de apenas uma ou duas pessoas. Qualquer tipo de invento é uma somatória de esforços que ocorre durante anos, décadas e, não raro, até séculos. Quando dizemos alguém inventou alguma coisa, estamos reconhecendo apenas aquele que realizou a última etapa do processo, sem olhar para todo o caminho percorrido.
Se formos a fundo nessa concepção, veremos que qualquer tipo de criação humana cai no mesmo tipo de funcionamento. Mesmo as criações intelectuais consideradas artísticas. Quando escrevo um texto, produzo algo impregnado de todas as referências que já tive: da forma dos meus pais falarem, de todos os livros que li, das minhas aulas de gramática e redação, do que leio diariamente na internet, dos modelos que tive ao longo de toda a minha vida. Mesmo os assuntos sobre os quais me interesso têm a ver com aquilo que me foi apresentado por outras pessoas; não nasci com nada disso programado. Tudo o que fazemos é resultado de milhões de condições prévias que moldam o comportamento atual. Por mais que queiramos nos ver como seres únicos e especiais, não passamos do amálgama dos genes e ideias que vieram de outras pessoas.
Na fotografia não poderia ser diferente. Temos fotógrafos que admiramos, fotografias que nos inspiram, técnicas que aprendemos. Tudo isso foi criado por outras pessoas. E o que elas criaram foi influenciado por outras pessoas antes delas. Não há uma criação individual e totalmente autônoma, a partir do zero. Tomamos emprestado muito mais do que admitimos, ou sequer percebemos. Copiamos uns aos outros, querendo ou não.
Qual é, então, o mérito do autor? Se ele apenas reorganiza ideias e conceitos pré-existentes, geralmente adicionando pouco ao que já foi construído, pode ele querer dominar aquilo que produziu? Seria o mesmo que eu tomar um muro em construção, adicionar um tijolo e dizer que o muro é meu. Pode-se argumentar que quem escreve, cria ou produz arte coloca seu tempo e esforço naquela produção. É uma posição válida e acho que isso justifica a existência do crédito (fui eu quem colocou este tijolo). Mas não acho que isso é suficiente para justificar a posse sobre todo o muro, ou seja, o conteúdo.
Uma das formas que encontrei para lidar com essa questão foi liberar todos os meus textos e fotos sob Creative Commons. Mas mesmo essa minha atitude pode ser analisada em função das influências que tive: sendo um acadêmico que desenvolve atividades em universidade pública, é de praxe entender que o que produzo deve voltar, de forma irrestrita, para quem o financiou. Da mesma forma, como entendo que tudo o que escrevo sobre fotografia não é mais do que uma reorganização de outras ideias, não vejo sentido em querer assumir, sobre os artigos, uma ideia de posse. O mesmo vale para a minha fotografia. Por mais que tenha uma relação de afeição com algumas de minhas produções, nunca consegui senti-las como absolutamente minhas. Quando olho para minhas fotos, vejo conceitos elaborados por outra pessoa; técnicas aprendidas com outras pessoas; outros fotógrafos tomados como modelo. Tomar posse da minha própria produção como algo autônomo e independente seria injusto com todos eles.
Sendo assim, talvez seja mais útil, para o autor, em vez de vangloriar seus feitos individuais e buscar a originalidade, entender melhor quais são as suas referências e influências. Se enxergarmos a nós mesmos – assim como nossos trabalhos – como resultado de milhões de condições prévias, não há outro caminho para nos entendermos e àquilo que fazemos a não ser identificar essas condições. E aí, pode ser que o sentimento de posse com o que produzimos caia por terra e faça mais sentido devolvermos livremente para os outros tudo aquilo que inevitavelmente pegamos.
Gostei muito da sua lucidez.
Paulo Freire já dizia: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediados pelo mundo.”
Obrigado pelo comentário, Camila.
Carla, ótima citação. Bom saber a visão de uma educadora.
Autoria é trabalho e não genialidade.
Como as coisas exigem trabalho, e como o aprofundamento em uma idéia exige abordagens recursivas (ou seja, trabalho sobre trabalho ou trabalho exponencial), os resultados obtidos são “do autor” na exata media que foi ele quem pagou em trabalho ter alcançado um ponto qualquer, seja de técnica, seja de conceito, etc. Contudo, conceito é algo que se pega no vento, então há muita confusão sobre isso. Porque quem pega o vento acha que o vento soprou sozinho e não vê o trabalho exponencial que o gerou. É fácil seguir um conceito pronto.
A autoria é do autor pelo simples fato que é necessário à sociedade proteger o trabalho sob pena dele não ser mais feito. O que se protege é o trabalho. Isto é muito claro na literatura. Posso escrever o Dom Quixote de novo, desde que o faça com minhas palavras e com minha narrativa. Não é a idéia que está protegida, é a escrita mesma, aquilo que é trabalho puro. O que é protegido na literatura é o texto, não o assunto. Contudo, em uma sociedade não totalmente predatória, se entende que a autoria inclui certo grau de concepção (conceito), mesmo que a lei não o proteja exatamente.
Pode ser reorganização, em grande dose é, mas a autoria de fato é uma organização de idéias e métodos em etapas sucessivas, cada nova etapa montada sobre a outra, de modo que, embora seja reorganização, é uma reorganização com feições específicas que são de construção individual. O autor é a pessoa que seguindo um rumo de pensamento e objetivo vai presistindo em trabalhar sobre as reorganizações, e segue de nível em nível e em cada nível o anterior por ela construído é base, referência e suporte.. Digamos que para alcançar uma idéia o autor teve de empilhar patamares de idéias antes, e não encontrou aquilo tão empilhado assim. Autor não é quem colhe o fruto, é quem o planta. Autoria não é coisa fortuita.
Ligar a autoria a qualquer coisa de genialidade é o mesmo que supô-la ou inexistente ou golpe de sorte. Ela não é nem uma coisa nem outra, mas meramente trabalho sobre trabalho. É o trabalho alheio que deve ser respeitado, não a genialidade.
Rodrigo;
Publiquei a resposta acima e alguns acréscimos como artigo no Fotografia em Palavras:
http://fotografiaempalavras.wordpress.com/2011/06/09/autoria-e-trabalho-continuado/
Ivan, obrigado pelo link.
Repetindo a resposta que postei no BrFoto:
A conversa teve como eixo a questão do mérito da autoria: todos concordam que há elementos sociais e individuais na criação, sendo que o problema é o quanto há de cada. Como entendo que mesmo o individual também é basicamente social, então vejo a autoria com uma tendência para um dos lados. Esse é apenas o meu viés, sendo que cada um aqui tem o seu.
Mas, na verdade, a questão que me intrigava quando escrevi o texto – e para a qual não tenho uma resposta fechada – seria algo do tipo: “uma vez que, em menor ou maior medida, há elementos sociais na autoria, até que ponto o trabalho individual é suficiente para garantir ao autor posse sobre o conteúdo criado?”
Como já disse várias vezes, seu artigo parece considerar um tipo de autoria mágica (o falso gênio), rápida ou fútil. Desculpe-me dizer, mas isso indica incompreensão com o real processo de autoria, que não é mágico, não é rápido e não é fútil (e não é previamente pago). Você tem o mesmo direito sobre um artigo que fez do que teria sobre um banco de madeira que construísse. Embora em ambos haja elementos sociais, é o seu trabalho de fazer o banco e o fato de ter comprado as madeiras que o faz seu. E no artigo, e o seu trabalho de organizar suas idéias, o seu trabalho de escrever, e o fato de ter comprado com anos de leituras e de pensamento a respeito delas materiais sociais que lhe permitem escrever. Como já dise, autoria é trabalho. Trabalho presente e trabalho passado. É o trabalho que deve ser respeitado. Produzir obras culturais não é golpe de sorte nem impostura.
Me parece haver uma grande confusão aqui entre ideias e conceitos abstratos, e a realização, a concretização material, ou não, desses conceitos e ideias, na forma de obras. Obras não são ideias, ainda que resultem de ideias. Um muro deve ser concebido antes de ser construído, logo há uma ideia específica de muro antes que este seja construido. E essa ideia específica desse muro em particular, pertence a uma ideia (categoria/conceito) genérica de muro, que é ao que a palavra ‘muro’ se refere, e no que pensamos quando alguém diz: “muro”. A ideia de muro seja generica ou particular não é propriedade de ninguém, ao contrário da realização da ideia, na forma do muro construido. Mas o próprio muro não é a ideia de muro.
Sobre Creative Commons, convido-os aler e comentar o texto que escrevi à respeito: http://apontaechuta.wordpress.com/2011/06/05/creative-commons-use-com-moderacao/
[]’s
http://vimeo.com/14912890