Enquanto navegava pelo blog El patio del Diablo, indicado pelo meu amigo Daniel Cobucci, certa inquietação em relação à fotografia ia se formando, conforme se passavam as páginas dessa antologia de grandes fotógrafos. Foto após foto, percebia que havia ali uma certa atmosfera comum, independentemente dos assuntos e estilos diversificados de cada autor referenciado. A maior parte dos trabalhos apresentados situa-se temporalmente em meados do século passado. Será essa atmosfera que permeava os trabalhos uma característica existente na luz do passado? Eram os estilos na verdade homogêneos, apesar de parecerem distintos?
Busquei uma referência atual no site do YPU. Lá encontra-se a mesma força nas imagens, a abordagem semelhante que dá ao banal uma fúria estética capaz de transformar a percepção que se tem do mundo. Mas ainda falta a tal atmosfera, a incerteza das fotos antigas. Detesto responder essas questões tão abertas, mas a diferença entre o velho e o novo é tão gritante que uma explicação se explicita.
Surge Flusser alertando, incessantemente, que o programa está embutido no aparelho. Operamos o aparelho dentro de uma gama limitada de possibilidades que já vêm pré-estabelecidas. E qual a grande diferença entre os aparelhos do século passado e os desse. Com relutância, a resposta se deixa admitir: o filme.
A fotografia com filme é meio suja, mais incerta, menos corrigível… Talvez sejam esses elementos que criam toda a atmosfera que se vê nas imagens antigas. Há certa crueza nas fotos, grãos aparentes, cores irreais (mas sedutoras). Fotografias analógicas têm textura, enquanto as digitais são lisas.
Uma vez que o programa está embutido no aparelho, podemos apenas escolher entre as possibilidades que nos são oferecidas. Entretanto, o rumo adotado pela indústria, independentemente de marca ou modelo de câmera, é apenas um: o da antissepsia. Antisséptico “se refere se refere a tudo o que for utilizado no sentido de degradar ou inibir a proliferação de micro-organismos” (Wikipedia). Na fotografia, esses micro-organismos são os grãos, a textura. A fotografia digital tem horror a isso. O objetivo dos engenheiros é projetar câmeras que gerem imagens cada vez mais limpas, lisas, livres de quaisquer irregularidades. Objetiva-se imagens cada vez mais nítidas e livres de imperfeições. O vilão da fotografia digital, o ruído, característico do ISO alto, é desagradável, já que é uma interferência na imagem, enquanto o grão do filme, mesmo que aparente, é o constituinte da imagem formada pela câmera.
A indústria, então, propões uma direção única para os equipamentos fotográficos. Relaciona-se qualidade com uma pretensa reprodução “fiel” da realidade, sem interferências, criando uma ilusão cada vez mais perfeita, em que se oculta cada vez mais sua criação dentro da caixa-preta que é o equipamento. Uma tendência que segue muito bem o paradigma da fotografia publicitária, em que a antissepsia é fundamental. Mas, espere um pouco, as pessoas não querem fazer propaganda com suas câmeras e fotografias. Ou querem?
Combater moinhos. A indústria não tem culpa alguma da bitola que os fotógrafos colocam em si mesmos e do fato deles pautarem toda a sua produção pelo desejo de agradar a outros colegas, no mais das vezes agradar a um amplo público fotográfico. A lei é simples: quanto mais amplo o público, menos sofisticado, menos capaz de lidar quem aquilo que foge do mainstream. A assepsia não está nas câmeras, que produzem imagens ruidosas em ISOs altos, estouram os brancos, que podem ter cores modificadas à vontade. A assepsia provém um desejo dos fotógrafos de serem aceitos pelos outros fotógrafos. O filme parece diferente não por ele em si, mas porque em sua época não havia a rede, esse poderosíssimo meio de afinamento das condutas. Não havia essa ferramenta de aliciamento.
Não é culpa da indústria as pessoas não desejarem a liberdade. Quando digo não desejarem não significa o discurso vazio do desejo verbalmente expressado, mas a disposição de pagar por ela criando aquilo que a si interessa mas pode ser rejeitado pela maioria. Paga-se para ser livre. Paga-se para criar. O pessoal quer de graça.
A culpa não é da câmera. Atribuí-la à cãmera é simétrico com a atribuição de virtudes fantásticas aos novos modelos, coisa que vemos por aí.
As pessoas, porém, vivem a dinâmica do mundo tecnológico e industrial, suas ações, no final, se tornam instrumento da máquina toda, pois elas estão atendendo a demanda da indústria ao se especializarem em qualquer área, inclusive a fotografia. As pessoas realmente tem escolha, porém, a alternativa tem de ser apresentada à elas.
O Câmara Obscura é um excelente local de discussões onde alternativas são apresentadas e discutidas. Acredito que o blog não procura colocar a culpa em alguém e apenas mostrar as alternativas e tentar levar a fotografia além do que pregam hoje em dia regras e fabricantes de câmeras com seus manuais.
Lucas, como você colocou bem, não há preocupação, no texto, em apontar culpados e sim em descrever um processo, para que seja possível interagir com ele de forma mais consciente.
Frequentemente, quando a relação entre indústria e consumidor é levantada, surge a questão: “quem impõe as coisas a quem?”. É como perguntar quem vem primeiro, o ovo ou a galinha. No fim das coisas, se acontece, é porque ambos querem.
Obrigado pelos comentários.
Pois é. Tu chamas de antisséptica, eu costumava pensar de “pasteurizada”. A fotografia digital de fato tende a eliminar as peculiaridades que o filme gerava. As fotos digitais tendem para uma certa “perfeição”, e uma perfeição que tende a tornar as fotos iguais.
Como eu cresci usando filme, tento continuar usando filme.
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