A escolha do assunto

Podemos pensar na fotografia de acordo com os seguintes elementos: o referente, ou aquilo que é fotografado; o fotógrafo; o aparelho fotográfico; a fotografia como resultado e/ou objeto; e o observador. Uma das relações que mais me intriga é entre o fotógrafo e o referente. Contudo, é o uso da fotografia, ou seja, aquilo que o fotógrafo procura no seu resultado, a fim de provocar uma reação no observador — ainda que este seja ele mesmo — que determina a escolha do assunto.

A maior parte das pessoas, quando fotografa, segue a ideia de obter um registro. Em viagens, em festas, em reuniões familiares. Por isso, a escolha do referente é quase óbvia: retratam-se os pontos turísticos, os amigos, os familiares em situações importantes.

Há um aspecto marcante entre os fotógrafos amadores avançados, visível em comunidades virtuais ou fóruns de discussão: embora haja um conhecimento técnico e tecnológico gigantesco, há pouquíssimo desvio da fotografia como registro. Poder-se-ia continuar fotografando eternamente as mesmas coisas, embora com técnica apurada, caso não fosse a fotografia digital.


Rémy Saglier

Antigamente, a cada foto gastava-se filme, revelação, ampliação. Havia um limite mais restrito no número de fotos, já que filmes tinham 12, 24 ou 36 poses. Tudo isso provocava uma certa seleção em relação ao que se fotografava: apenas as pessoas, locais e momentos mais relevantes mereciam um clique. A fotografia digital acabou com esse problema. E, de repente, tudo se tornou fotografável.

O grupo de amadores-avançados, então, tem técnica exímia e um mundo à sua disposição, já que se pode pressionar o disparador livremente, sem peso na consciência por conta dos custos ou do número de fotos — os cartões de memória comportam centenas de imagens. Entretanto, toda essa liberdade se converteu num problema. Quanto mais possibilidades, mais perdido se fica.

Surpreendentemente — ou não — os fotógrafos avançados voltam-se ao registro e escolhem como assunto aquilo que sempre foi tido como fotografável para o senso comum: pontos turísticos, pores-do-sol, eventos familiares etc. As fotos passaram a ter, sem dúvida, um ritmo diferente, uma vez que agora são utilizadas para alimentar blogs, flickrs e afins. No entanto, os assuntos permanecem. Ou seja, a fotografia digital abriu um mundo de possibilidades, que são constantemente negadas pelos fotógrafos amadores.


Dalton Rooney

Quando consideramos as atividades de um fotoclube tradicional, por exemplo, veremos que há, essencialmente, passeios por locais turísticos ou presença em eventos significativos. Algo como se todos fossem fotojornalistas, buscando meros registros. Há alguma atenção à fotografia de estúdio, seguindo geralmente uma receita publicitária e muito raramente incentivo a uma proposta autoral de qualidade, que discuta conceitos, experimentos ou até mesmo um simples desenvolvimento pessoal através da fotografia.

O que acontece, então, é que quando alguém inserido em algum desses grupos tenta produzir algo fora da linha do registro, acaba, pela falta de referência e método, conseguindo um resultado muito superficial. Aliada à incompreensão e intolerância que por vezes ocorre dentro das comunidades, a frustração acaba por devolver o amador avançado de volta para o registro. Tecnicamente apurado, mas ainda um registro.

O problema está justamente na escolha do assunto. Ao tentar produzir algo diferenciado, o amador busca algo fotografável e tenta extrair dali uma visão diferente. No entanto, quando olhamos para o trabalho de fotógrafos autorais consagrados, bem como outros artistas, veremos que há uma história passada, mais ou menos imediata, por trás do ato fotográfico. Antes de tudo, há uma formação (formal ou não) relativa à observação e expressão através das artes. Segundo, há uma elaboração conceitual, mais ou menos consciente, na forma de projetos ou esboços. Terceiro, há pesquisas, experiências e refinamento dos conceitos, que só então começarão a produzir resultados consistentes. Ou seja, cria-se um conceito e a fotografia é um instrumento em seu favor.


Karolina Michalowska

Esse é um dos fatores que mergulha o amador avançado na relação de fetiche com seu equipamento: ao frustrar-se na inovação e na monotonia da atividade fotográfica, a manipulação motora e verbal do equipamento ganha força. Não raramente o fotógrafo amador considera que a sua frustração é oriunda da limitação do seu equipamento, que se torna um bode expiatório. Ou, por outro lado, tal como o fetichista, só consegue satisfazer-se ao fotografar quando possui e utiliza uma câmera moderna, repleta de recursos, fálica. O assunto relega-se a segundo plano, o observador fica esquecido, e mesmo a foto adquire um caráter de confirmação da posse do equipamento. Enquanto o artista concebe o processo com todos os seus elementos e usa o aparelho como tal, o amador desiludido concebe apenas a parte que lhe é inteligível, e afoga-se numa relação em que o aparelho se torna ícone.

O assunto, então, como um mero coadjuvante do ato fotográfico, torna-se um pretexto. E, de acordo com sua não-importância, acaba sendo óbvio e de senso comum. Portanto, toca-se a ir atrás de pretextos turísticos, pretextos sociais, pretextos pseudo-jornalísticos. Organizam-se saídas fotográficas, sempre para locais atrativos. Como se pode imaginar, dificilmente se pode produzir algo relevante quando se fotografa no meio de um grupo de 40 pessoas, especialmente quando não há uma formação de conceitos, propostas e objetivos anterior ao passeio. Acaba-se fotografando aquilo que é típico, sejam objetos, pessoas, lugares. O fotógrafo torna-se um pleno operador, submetendo-se ao aparelho, escolhendo os assuntos a esmo. Não há, nas fotos, o gesto do fotógrafo: resultados estéreis.


Camil Tulcan

Para não ser generalista e injusto, cito um fotoclube que apresenta projetos e incentivo à construção de uma linguagem mais elaborada: o Fotoclube F/508, de Brasília. O clube tem como metas principais o desenvolvimento de projetos fotográficos e sociais, dando menor importância a atividades mais valorizadas em outros clubes, como os passeios. Além disso, volta-se para técnicas alternativas e novas propostas de construção de imagens, em vez de apenas reconhecer e registrar: olha para dentro de si e da câmera, para depois olhar para o mundo. Essa abordagem certamente leva a resultados diferentes.

Nos meses em que estive na diretoria de um fotoclube em São Paulo, tentei implementar algumas atividades nesse sentido. Entre outras coisas, começamos a reservar um espaço nas reuniões apenas para discutir as fotos feitas. Era pouco, no entanto, e não foi possível avançar muito nessa área, já que o clube tinha diversas outras atividades e interesses. Acabei saindo da diretoria por outros motivos, com um sentimento de tarefa não-acabada. O clube, crescente no momento, tinha todas as condições para alavancar quaisquer projetos pelos quais houvesse interesse.

Por conta dessas exemplos e experiências, parece-me que para o amador que busca criar uma produção de qualidade, é preciso mergulhar de cabeça nos problemas da fotografia, deixando de se esconder na relação com a câmera. A formação e o planejamento precisam estar presentes, para que o ato fotográfico não seja apenas uma operação de maquinário. Subjugar a câmera requer coragem para sair do lugar e do senso comuns, percurso que certamente será permeado por frustrações maiores do que as iniciais, quando se busca uma experimentação um tanto débil e há o recolhimento ao clichê. Grupos podem ser muito úteis para esse trajeto, desde que haja um contexto favorável ao desenvolvimento, que é o contrário do que acontece mais comumente. E, estando ou não em grupo, é preciso lembrar que o ato fotográfico é feito por apenas uma pessoa, o que faz disso uma empreitada extremamente solitária.

Junho de 2007.

11 comentários em “A escolha do assunto”

  1. Caro Rodrigo, estou divulgando seu texto pois ele resume um questionamento meu de muito tempo. Há anos eu tento reunir grupos de fotógrafos no sentido de formar um fotoclube nos moldes do F508 ou do Ifoto, de Fortaleza. Mas a maior dificuldade é a falta de interesse do pessoal em sair do convencional e encarar um projeto de fotografia mais ousado. Mas enfim, estou tentando levar um pouco de reflexão àqueles que tem potencial para romper com o lugar comum. O teu texto é um excelente instrumento de reflexão. Um abraço!

  2. Gostei muito do seu texto! Interpretando-o de acordo, é extremamente útil e aplicável, sem dúvida!

    E, é claro, não consigo me segurar em apenas folhear esta página sem antes deixar algumas palavras:

    Esconder-se atrás de um belíssimo artefato tecnológico, sem dúvida é o que muitas vezes acontece! Começar dirigindo um Fusca (costumo comparar minha K-1000 com o velho VW) acho viável! Vejo muitos dirigindo Mercedez antes mesmo de tirar a carteira…
    Contudo, acredito que o fotógrafo precisa sentir-se bem com seu equipamento, e deve ser sempre encorajado a evoluir seus intercambiáveis e acopláveis afim de adquirir qualidade e dispor de recursos necessários para construir uma bela foto! Um dos erros creio que esteja nas “aquisições para evoluções”, sendo que o equipamento deve vir de acordo com o crescimento intelectual do fotógrafo, de acordo com o crescimento da sua própria capacidade! Trocando em miúdos, “troca-se a bota quando ela começar a perder a tração no barro”! É preciso escorregar para identificar isso!
    Acredito que muitos confundam o termo “evolução”, enganando-se ao aplicar cifras na aquisição da capacidade!
    Acredito também que falta mesmo é mais mãos em analógicas com filmes monocromáticos, conjunto este que julgo ser o verdadeiro construtor da magia fotográfica…

  3. Caro Rodrigo, gostei bastante de seu texto porque me identifiquei bastante com ele. Como fotografa amadora, já ha algum tempo, tenho sentido uma certa monotonia e também uma ansiedade como se faltasse alguma coisa nas fotos. Talvez seja exatamente a ausencia de conceitos, de elaboração do que se quer, que esteja me faltando.
    Seu artigo me fez refletir. Obrigada!

    Viviane Magalhães

  4. Caro Rodrigo,
    Esse texto é muito sensato. Acabo de ler um pequeno grande livro do Edgard Morin intitulado “Amor Poesia Sabedoria”. Aprendi, ali, que vivemos em busca do amor sem saber vivenciá-lo intimamente.
    Fazemos, o tempo todo, muita prosa (lado técnico, racional, empírico) e deixamos de lado, muitas vezes, a poesia (lado mágico, simbólico, mítico). Ao meu ver, esse é o diferencial e o maior legado do F/508.

    Grande abraço,
    Rose

  5. E ainda acho que o mais difícil é sair dessa monotonia e buscar o tal do novo conceito.

    O primeiro passo eu acredito que já dei, quando percebi que deveria esgotar todas as possibilidades do meu equipamento antes de correr a trocar.

    Agora falta exercitar, exercitar, e pensar e repensar até chegar nesse conceito próprio, ou estilo, não sei. É preciso refletir bastante.

  6. Rodrigo,

    Mais uma vez, direto ao ponto. Sua colocação:

    “Quando consideramos as atividades de um fotoclube tradicional, por exemplo, veremos que há, essencialmente, passeios por locais turísticos ou presença em eventos significativos. Algo como se todos fossem fotojornalistas, buscando meros registros. Há alguma atenção à fotografia de estúdio, seguindo geralmente uma receita publicitária e muito raramente incentivo a uma proposta autoral de qualidade, que discuta conceitos, experimentos ou até mesmo um simples desenvolvimento pessoal através da fotografia.”

    Infelzimente, é a mais pura verdade. O que vemos em nosso país hoje é um cenário de fotoclubismo completamente defasado do cenário internacional, extremamente apegado a fotografia modernista e sem qualquer representatividade no universo artístico, com exceção de alguns fotoclubles que “marginalmente” conseguem obter resultados fantásticos e diferenciados.

  7. Bom dia !

    Desculpe discordar de você, mesmo que esta discórdia venha alimentar uma conversa interessante, espero…

    Não creio que a escolha do assunto seja determinante numa “bela fotografia”. Ao contrário, é um desafio buscar num tema sem interesse imagens surpreendentes, se for essa a busca.

    Para melhor explicar o que digo, vou exemplificar : A Rosângela Rennó, trabalhou em um projeto bastante interessante em que ela pediu a alguns fotógrafos imagens do mais clichê de todos os assuntos : O Cristo Redentor. Ela fêz uma belíssima exposição de arte com imagens nada clichês (com uma câmera analógica lacrada ao lado de cada foto) de um grande clichê.

    Porém, concordo que as vezes os temas são tão “batidos e sem interesse” que perdemos a motivação de fotografá-los ou mesmo de apresentarmos fotos que já possuímos sobre ele.

    Também acho que o interessante não é a “representação” do referente, ou registro, seja ele qual for (coisa ou evento, este último sai da norma referencial)… Mas é sair da posição de “funcionário” e “fazer uma fotografia à partir de uma interpretação pessoal, subjetiva, para que ela possa provocar, ou inquietar , ou causar estranheza,conter uma poética tocante, ou simplesmente uma estética diferenciada, etc . Não acha ?

    Na verdade o conhecimento técnico do dispositivo passou a ser importante para que possamos revertê-la, (ler, subvertê-la), o “tecnicamente correto” passou a ser “uma fotografia do fabricante de câmeras” e não do fotógrafo, já que ele segue as normas do fabricante. (A menos que relmente ela favoreça seu objetivo).
    Quebrar regras com lógica de inclusão no conceito do projeto, passou a ser quase que critério do contemporâneo. Não porque isso seja regra, mas porque da mesma maneira que no passado buscava-se a “nitidez, velocidade, mimética,etc.”, hoje buscamos outras coisas bem diferentes, opostas. O que você pensa ?

    A falta de reconhecimento de uma fotografia-expressão ou arte acho que não está somente nos fotoclubes, mas em todos os universos, incluindo o dos curadores.
    Talvez por ser a “arte” de difícil explicação. E isso não pertence apenas aos novos tempos, vem acontecendo desde o renascimento com uma abordagem extremamente marcante no Impressionismo. Sempre cito Van Gogh, não sei se por ser inconcebível que um talento assim extraordinãrio possa ter passado por tantos “marchands” e “especialistas” “colecionadores” e “obsevadores” , incluindo seu irmão, que nada entenderam de sua obra encantadora como a menosprezaram.
    Tudo de bom !

  8. Sou solidário à crítica do Rodrigo e partilho da maioria das opiniões; mas, tenho a impressão que Rodrigo seja um pouco intolerante com outras formas de fotografia que não se encaixam naquelas do paradigma que ele tanto preza. Abraços! Dr. S. Cooper.

  9. Acho que de certa forma atualmente tenho fotografado com prazer mais sob um pretexto turístico, pois o que me motiva ao sair a levar a câmera comigo é estar em um lugar que me evoque beleza, paz ou novidade. Tenho aprendido que a mera representação de algo que me evoque estas sensações, de uma forma que remeta o leitor a elas de acordo com a maneira como descrevo o objeto fotografado (por meio dos detalhes a que me atento), é um resultado consistente e relevante, ao menos dentre os meus objetivos.

    Sei do que você está falando e ao que está se referindo, mas achei interessante também demonstrar que às vezes é justamente um bom pretexto aquilo capaz de dar início ao pensar subjetivo.

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