Poderíamos tomar “O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade” (São Paulo, Annablume) e abordar diversas questões que se relacionam com a fotografia nesse profético livro de filosofia escrito por Vilém Flusser em 1985. Estão presentes a questão da superficialidade das imagens técnicas (caracterizadas na fotografia, televisões, computadores, filmes), a da crescente entropia de uma sociedade que se pulveriza e abandona os valores já inúteis para o nosso tempo e dificuldade em imaginarmos um mundo sem as estruturas que estão se desintegrando. Por conta de todas essas questões, considero o ensaio, sucessor de “Filosofia da Caixa Preta“, uma leitura obrigatória não só para aqueles que querem entender melhor o papel da fotografia, mas também alguns aspectos da sociedade atual.
No entanto, achei interessante abordar um aspecto do livro estritamente ligado à produção de imagens dentro do contexto de comunicação em massa e do mundo conectado no qual vivemos. Na página 104, dentro do capítulo “Criar”, o autor argumenta contra um dos mitos em relação à produção cultural ainda muito arraigados no senso comum, o mito do criador, do gênio. Dois parágrafos elucidativos seguem abaixo.
“Toda informação se produz como síntese de informações precedentes, por diálogo que troca bits de informação para conseguir informação nova. O mito do autor pressupõe que o ‘fundador’ (o gênio, o Grande Homem) produz informação nova a partir do nada (da ‘fonte’). O autor mítico cria na solidão da geleira, nos mais altos picos (Nietzsche). Por certo, muitos mitólogos da criatividade admitirão que o autor está inserido em determinado contexto cultural do qual sorve as informações que o nutrem, mas também afirmarão que tais informações são elaboradas pelo autor em diálogo interno e solitário, e que há algo misterioso no íntimo do autor que faz com que algo de inteiramente novo se acrescente às informações recebidas. Destarte tais mitólogos projetam visão da história que passa a ser uma série de picos altos que se elevam sobre a bruma amorfa da planície a partir da qual os picos se nutrem. Ora, a informática torna inoperante essa visão da história.
Atualmente, a massa das informações disponíveis adquiriu dimensões astronômicas: não cabe mais em memórias individuais, por mais ‘geniais’ que sejam. Por mais ‘genial’ que seja, a memória individual não pode armazenar senão parcelas das informações disponíveis. E tais parcelas armazenadas aumentaram, elas também, de modo que o consumidor médio detém atualmente mais informações do que o ‘gênio’ renascentista. Tais parcelas de informação exigem processamento de dados para serem sintetizadas em informação nova: a memória humana se revela lenta demais para poder processar semelhante quantidade de dados. O diálogo interno e solitário se tornou inoperante. Exigem-se grupos de memórias individuais assistidos por memórias artificiais (laboratórios, comités, grupos de pesquisa e de realização) e, estes sim, produzem informação nova em quantidade e qualidade jamais sonhada no passado. De forma que o autor, o Grande Homem, não apenas se tornou redundante como estritamente impossível.”
Mesmo a noção inicial de que seria possível uma criação a partir do nada, apenas de diálogo interior, já é questionável. Aquele que produz qualquer tipo de imagem ou peça cultural bebe do seu tempo, dos seus antecessores, dos mestres, daqueles com quem dialoga. No entanto, ainda que essa concepção um dia tenha feito sentido, torna-se claro, pelos argumentos acima, que frente à quantidade de informações e possibilidades que temos hoje, criar sozinho dificilmente levaria a uma produção de qualidade e em boa quantidade.
Flusser argumenta ainda que as formas de comunicação atuais permitem que cada um seja um potencial produtor que dialoga com muitos outros, aumentando as chances de gerar informações (imagens, trabalhos, conceitos) novas e relevantes. No entanto, o autor não é tão otimista: essa mesma estrutura que possibilitaria a todos serem participantes também pode levar a sociedade à entropia, ao fim em si mesmo, à constante repetição de informações que “parecem” novas, mas que na verdade são uma tediosa cultura massificante de entretenimento vazio. Naturalmente, o autor considera essa última possibilidade mais provável. Haja visto os programas de televisão, como novelas ou futebol que, aparentemente, são novos a cada dia, mas que na verdade são uma repetição infinita das mesmas coisas. Não é difícil imaginar o mesmo acontecendo com a fotografia. Basta acessar as galerias de fotos na internet para vermos fotografias espetaculares sendo produzidas a cada segundo, apenas para serem esquecidas no segundo seguinte. Contentamo-nos com microespetáculos que não nos tiram da letargia induzida por uma torrente cada vez maior de informações massificantes.
Entretanto, com a Internet, ícone maior do conceito de “telemática” proposto pelo autor (imagem técnica + telecomunicação), teríamos uma ferramenta poderosíssima para combater esse movimento. Temos sites, fóruns, blogs, numa rede imensa que permite que criemos grupos de articuladores a fim de produzir diálogos e trabalhos novos. Essa é a real forma de criação atual. No entanto, Flusser avisa: para isso, é preciso esquivar-se do entretenimento, dos microespetáculos das imagens técnicas. Em vez de preocupar-se em produzir imagens fantásticas, bonitas, vistosas, é preciso afastar-se e falar do processo em si: de como se dá produção e disseminação das imagens, do funcionamento da sociedade, numa tentativa de esclarecer quais são os fios que tecem essa rede e usá-la a favor do nosso aprimoramento, e não da repetição de padrões. Ou seja, a opção está entre continuar alimentando a roda de mesmice ou criar uma metalinguagem que nos possibilite ver, de fato, o que acontece no mundo.
Fantástico. Vou ler mais algumas vezes antes de comentar algo sobre o texto…