Existem alguns termos relativos a características humanas que ouvidos o tempo todo, mas que, se olharmos de perto, perceberemos que são bastante obscuros. Personalidade e inteligência são dois exemplos. São palavras que ocultam um significado muito mais amplo e variado, pois referem-se a coisas diferentes em diferentes grupos, culturas, ou até indivíduos. Como nosso foco é a produção cultural e, mais especificamente, a fotografia, podemos nos ater a dois outros desses conceitos: talento e criatividade.
Essas palavras são inúteis até que possamos atribuir a elas um significado concreto e mais objetivo. Podemos considerar que talento é realizar bem uma tarefa e criatividade é produzir resultados únicos e diferenciados com certa freqüência. A partir daí, podemos nos perguntar de onde vêm essas habilidades e porque algumas pessoas são mais talentosas ou criativas do que outras. E talvez a pergunta mais importante seja: é possível aprender a ser talentoso ou criativo?
O senso comum costuma atribuir razões pouco claras para que uma pessoa tenha talento ou criatividade. Diz-se que a pessoa tem um “dom”, como algo inato e imutável. Mas dizer que uma pessoa é talentosa porque nasceu assim não responde coisa nenhuma. Afinal de contas, isso significa o que? Que existe um gene do talento? Ou que a habilidade se deve à quantidade de maçãs que a mãe ingeriu durante a gestação? Como se vê, é preciso olhar bem para esse tipo de pseudo-resposta.
O fato é que talento significa saber como fazer alguma coisa. E, como qualquer tipo de conhecimento, ele é basicamente aprendido. É possível que existam predisposições inatas para executar bem uma determinada tarefa, mas sem o devido treino, nenhuma habilidade é desenvolvida. Falando de fotografia, fica ainda mais estranho falar de um talento desvinculado desse processo, uma vez que ninguém nasce sabendo como operar uma câmera. A habilidade, então, é devida a um incentivo que ocorre desde cedo em que a performance do indivíduo é fortalecida por uma série de condições ambientais favoráveis, ainda que seja difícil determiná-las retrospectivamente.
Já a criatividade é um conceito um pouco mais complicado. Essa capacidade de produzir constantemente coisas novas, inovadoras e únicas parece ser algo enterrado inexoravelmente no fundo da alma. Mas não é. Aprende-se a ser criativo. Um estudo clássico, de 1973, trabalhou com crianças montando blocos de madeira. As crianças eram recompensadas a cada vez que faziam uma forma que ainda não tinham feito. Se repetissem, não ganhavam nada. Elas logo passaram a produzir sempre trabalhos diferentes do anterior. Isso mostra que é possível incentivar um padrão de comportamento (no caso, variar as formas de montagem) associado à criatividade.
No entanto, para poder variar o próprio comportamento e, conseqüentemente, o resultado dele, é preciso ter um bom repertório de comportamentos básicos, a fim de que seja possível realizar sempre novas combinações. Além disso, os estímulos aos quais respondemos nos comportando também precisam variar. Em fotografia, isso significa que, quanto mais formas diferentes de fotografar soubermos e quanto mais assuntos diferentes escolhermos, mais criativa será a nossa produção, uma vez que podemos fazer inúmeras combinações.
Sob este prisma, dizer que fulano é talentoso porque tem um dom ou é criativo porque nasceu assim é dar as costas às verdadeiras razões pelas quais aquelas habilidades existem. Essas respostas, além de não responderem, ainda atrapalham a descoberta do que está de fato por trás delas. Talento e criatividade se aprendem, da mesma forma que aprendemos a falar, a escrever ou a achar um caminho num mapa. E isso é algo fantástico pois democratiza as possibilidades. Saber criar não é um presente dos céus, como se a atividade humana obedecesse a um estranho sistema monárquico, mas sim conseqüência das experiências que temos ao longo da vida.
Pode-se argumentar que, mesmo que essas habilidades não sejam inatas, elas estão fora do controle de cada um de nós, uma vez que são resultados das influências do nosso ambiente. No entanto, o ser humano pode mudar o próprio ambiente. Podemos ir a um museu em vez de assistir televisão aos domingos. Podemos ler um livro clássico em vez de uma revista de fofocas. Quando vamos fazer um curso, estamos nos inserindo numa situação que fará com que nos comportemos de forma diferente. Isso significa que ser bom em alguma coisa envolve trabalho duro, dedicação, estudo e prática. Mas, sobretudo, envolve escolha. Ou seja, a coisa está nas próprias mãos: por um lado, as possibilidades são praticamente infinitas; por outro, adotar esse ponto de vista significa abrir mão de desculpas (Deus, seus genes ou as maçãs que sua mãe não comeu na gravidez) pelas próprias falhas.
Rodrigo:
Acho que nunca li um texto seu com o qual concordasse tanto. E est? muito claro, coisa que n?o ? f?cil tratando ele dos assuntos que trata.
Tornar-se criativo, quando j? se ? muito cristalizado em modelos n?o-criativos, ? algo que exige dar um passo para tr?s. A pessoa precisa abandonar aquilo que lhe d? mais conforto, que ? um comportamento acostumado. Da? a dificuldade. E diante dos problemas da cria??o, sente-se sem ch?o, sem base, e ? preciso reeducar-se para aprender a reconhecer os pontos de apoi nesse novo jogo.
Muito bom, Rodrigo. Acho que o mais dif?cil realmente n?o ? ser talentoso ou criativo e sim se dedicar ao trabalho que isto d?. Tudo depende de muito estudo, muita observa??o, muita reflex?o. E uma pessoa para se dedicar de tal maneira a uma atividade, creio eu, precisa gostar muito dela. Precisa am?-la.
Acho que a? entra um componente que n?o diria inato, mas inerente ? personalidade do sujeito: suas prefer?ncias, seus gostos, aquilo por que ele se sente apaixonado e que o motiva a mergulhar cada vez mais naquele universo, n?o por obriga??o e sim por necessidade ?ntima, mesmo que este seja um processo frustrante e doloroso muitas vezes.
A minha pergunta ?, algu?m pode ‘aprender’ a gostar de verdade de alguma coisa ou isso sempre ? algo que aflora naturalmente (independentemente dessa discuss?o de inato ou aprendido ou produzido pelo meio)?
Ivan,
Voc? provavelmente concorda com o texto porque muito dele se baseia em conversas que j? tivemos. Voc? ? construtivista, eu sou behaviorista e em pontos como o do texto isso significa uma grande congru?ncia de id?ias.
Al?m de sair do conforto, como voc? coloca, entender a criatividade dessa forma significa assumir responsabilidade, pois fica claro que ser criativo ? poss?vel a qualquer momento. ? muito mais f?cil simplesmente achar que isso est? fora de alcance.
Lilian,
? poss?vel aprender a gostar sim, claro. As pessoas aprendem a gostar de bebida alcoolica ou de cinema europeu. Os gostos podem tanto ser naturais (como geralmente se gosta de a??car ou de algu?m nos aprovando) ou aprendidos, e geralmente os aprendidos s?o associados aos naturais ou parte de circunst?ncias complexas.
? claro que o gosto ? aprendido e desenvolvido. Olhando para tr?s, na minha hist?ria pessoal, vejo como diversas das coisas que mais gosto hoje n?o gostava em alguma ?poca, e fui aprendendo a gostar, fui entendendo o que eram.
Gera isso ums segunda pergunta: O que motiva as pessoas a buscarem conhecer algo que n?o est? em um dado momento na regi?o do que ? gostado? Uma das respostas ? que a pr?pria vida vem apresentando quest?es que nos produzerm deslocamentos. Outra ? serem aqueles que sabem que o gosto ? educado -e isso se torna evidente a partir de certo ponto- procurarem seguidamente educ?-lo expandindo as fronteiras do gosto.
Se voc? observar o processo que aconteceu com muitos a partir da cat?lise da sua oficina, Lilian, ver? que ela menos do que ter ensinado algo a algu?m abriu a perspectiva de alguns. Isso j? ? muito, e o que cada um far? com isso ? imprevis?vel, mas ? uma experi?ncia que motiva pensar sobre ela.
Em tempo: Lego verde ? bem raro. Falo porque aqui em casa h? uma montanha de Lego -risos.
[…] Esta é uma frase profundamente elitista. Afirmar que as potencialidades humanas são inatas é afirmar que quem faz bem alguma coisa não se esforçou pra isso, apenas “recebeu um dom” e que aqueles que não fazem bem alguma coisa nem devem tentar, pois não foram agraciados com o talento. Além de ser questionável moralmente, é uma concepção baseada no senso comum que não tem força científica. Na pior das hipóteses, ainda que certas características humanas fossem inatas, certamente elas são perfeitamente passíveis de alteração pelo ambiente em que vivem. Já fui mais a fundo nesse ponto no texto Sobre talento e criatividade. […]