Freqüentemente, ouvimos que aquilo que fazemos demonstra o que somos. Nossas ações mostrariam nossa personalidade, nossos instintos, nossas idéias. É como se fôssemos um reservatório de ações potenciais prontas a serem realizadas. Na verdade, a coisa é um pouco mais simples: o que fazemos não mostra o que somos; o que fazemos é o que somos. Conceitos como personalidade são construídos para representar os padrões de comportamento que apresentamos ao longo da vida, mas a personalidade não é uma entidade que causa o comportamento. Ou seja, pode-se dizer, para simplificar, que uma pessoa que se comporta de maneira agressiva tem uma personalidade agressiva. Isso significa que sabemos que ela tende a se comportar dessa maneira, mas não é correto dizer que ela age de maneira agressiva porque tem uma personalidade agressiva. Uma vez que a entidade personalidade é apenas uma ficção inferida a partir do comportamento, ela não pode ser causadora do comportamento.
Nossas fotos, assim, não expressam nossa personalidade. Nossas fotos são o que fazemos. Logo, nós somos nossas fotos. Em última instância, o que fotografamos é a nossa própria vida. Não podemos fotografar lugares nos quais não estamos ou situações as quais não vivenciamos. Fotografamos as pessoas com quem encontramos, locais em que estamos presentes e cenas das quais participamos. Doravante, há apenas uma decisão realmente fundamental na fotografia: o que fotografar? Que parte da minha vida será reconstruída num quadro bidimensional; qual o corte que farei de tudo aquilo que vivo, cuja luz permanecerá impressa num pedaço de papel?
É a essa pergunta que estamos respondendo ao fazer um ensaio em estúdio, ao registrar uma viagem, ao fotografar os moradores de uma vila distante ou ao fazer uma foto da flor do jardim. E é a partir dessa primeira decisão que todas as outras decisões técnicas serão tomadas: qual equipamento usar?, que abordagem empregar?, que tipo de tratamento fazer?. No entanto, essas decisões são secundárias e subordinadas à primeira, que é de fato a que determina o resultado. Mesmo quando saímos de casa sem um objetivo muito definido, com a câmera a tiracolo, há esse recorte da própria existência. Vive-se, por um momento, em função da fotografia, e essa pequena experiência, o ato fotográfico, é fotografada: metafotografia.
Há situações, entretanto, em que esse passo inicial determinante é inconsciente, ou conscientemente desprezado, em prol de decisões secundárias. Entre os amadores, é comum que o uso de um determinado equipamento direcione aquilo que se fotografa, a fim de justificar a posse do material. Por outras vezes, a repetição de um padrão estético oriundo de uma área alheia, como a publicidade, dirige o fotógrafo a uma situação em que este paradigma possa ser efetivamente reproduzido.
É a esse desperdício do potencial da fotografia que me refiro quando falo dos clichês. É claro que muitos clichês podem ser uma parte importante da trajetória de cada um, uma que vez que representam, de fato, situações pelas quais passamos. No entanto, quando a fotografia é orientada a produzir certos resultados impessoais, e se resume a eles, a oportunidade de criar um registro iconográfico da própria vida, que teria valor inestimável tanto para si quanto para outras pessoas. Sempre tivemos álbuns de família, mas as facilidades atuais permitem que façamos muito mais do que isso, não só por podermos reunir mais material como por termos a chance de exercitar, sem maiores ônus, formas bastante pessoais de ver o mundo.
Um outro problema relativo à reprodução de padrões é que os fotógrafos podem buscar tão incansavelmente um determinado resultado que a câmera torna-se uma barreira entre ele e o mundo, anestesiando a própria experiência. As sensações ficam apagadas, pois todo o foco está no visor e no corte a ser feito. Percebi isso acontecendo comigo no último fim de semana, enquanto fotografava um pequeno posto ferroviário no interior paulista. Enquanto estava por lá, percebi que um trem se aproximava. Desde que ele apareceu no meu campo de visão, esperei olhando pela câmera até fazer a foto no momento em que ele estava mais próximo. E foi só quando afastei a câmera do rosto, com a foto feita, que ouvi o barulho, senti o tremor e percebi o tamanho do trem que passava ao meu lado, a um metro de distância. Até aquele momento, essas sensações estavam obstruídas pela câmera e pela preocupação em fazer a foto. Embora esse não seja um evento extremamente relevante, foi suficiente para me mostrar como a fotografia pode, de fato, nos fazer perder momentos da nossa vida.
Com a tecnologia atual, temos condições extremamente favoráveis para construirmos uma grande trajetória visual própria. No entanto, para que ela seja de fato representativa daquilo por que passamos e para que ela não seja um obstáculo à experiência, é necessário que o fotógrafo tenha consciência de quais decisões são de fato importantes, e quais delas são secundárias e, olhando na perspectiva global, quase insignificantes. Decidir o que fotografar e entender o porquê dessa decisão deve ser a preocupação central de quem de fato tem interesse em fazer da sua fotografia algo importante e consistente em termos de conteúdo. Não se preocupe se não houver respostas imediatas para essa preocupação. Como qualquer processo que envolve auto-conhecimento, por vezes os passos são lentos. O primeiro deles, no entanto, é justamente permanecer atento à própria inquietação.
Rodrigo,
Esse texto sintetiza as discuss?es que temos acompanhado recentemente. O resultado dessas discuss?es, somado ao fato de eu estar viajando menos, tem me levado a fotografar o que est? mais pr?ximo de mim: o meu dia-a-dia.
E ? interessante como tenho aproveitado as abordagens que utilizo externamente, para tentar obter resultados menos ?bvios e comuns a partir daquilo que ? mais ?bvio e comum, que o cotidiano.
Um outro coment?rio, sobre a fotografia fazer com que percamos momentos de nossas vidas: chegou num ponto, em que estava t?o obcecado em fotografar o “diferente” nas minhas viagens, que minha esposa – ? ?poca namorada – reclamou e brigamos. Com raz?o.