É só entrar num fórum de fotografia para fazer uma constatação: fotógrafos amadores vivem perdendo fotos. Não quero dizer que as fotos já feitas desaparecem; as fotos que eles perdem não chegaram a existir. Perder uma foto significa, por algum motivo, não conseguir fazê-la. A foto perdida, então, existiu por um momento apenas como um esboço de tentativa que jamais foi realizada. Esse fenômeno é muito interessante, pois apesar de parecer trivial, é estranho perder algo que não existe, que nunca chegou a ser de fato.
Dizer que se perdeu uma foto envolve uma série de conceitos subliminares, anteriores a essa idéia. Talvez o mais importante deles seja o fato de tomar a fotografia como um tipo de cópia daquilo que se vê. De fato, essa é a construção do senso comum — e da maior parte dos amadores. Portanto, se fala da fotografia como registro ou como captura. Esses termos dizem que a realidade está lá, disponível, prestes a ser aprisionada pela câmera. A partir dessa concepção, o trabalho do fotógrafo é percorrer o mundo em busca daquilo que é fotografável, ou seja, digno de ser registrado. Ao encontrar, ele precisa ter os meios para capturar a realidade de acordo com um padrão específico, que valoriza a leitura fácil e a representação o mais fiel possível do referente. Tal qual um caçador de borboletas, ele precisa encontrá-las e usar dos seus materiais e técnicas para prendê-las, a fim de apresentar o resultado de sua caça.
A maior sina do fotógrafo de registro é, então, encontrar as cenas fotografáveis e não dispor, no momento em que elas ocorrem, do material necessário para transformá-las em fotos claras e límpidas. Ou dispor do equipamento, mas não ter acesso às cenas que justificam a captura. Quando esse desencontro ocorre, diz-se a foto foi perdida.
Quem vê essa situação com mais clareza do que os próprios amadores e toma proveito disso são os departamentos de marketing das fabricantes de câmera. Os lançamentos de novos modelos de máquinas e lentes são voltados a aprimorar os aspectos que os amadores mais valorizam: ISO alto, velocidade do auto-foco e número de fotos por segundo. Nada disso fará com que as fotos sejam melhores. Mas esses recursos criam a impressão de que as fotos poderão ser feitas instantaneamente em qualquer situação, e é apenas isso que os amadores querem: aumentar sua capacidade de capturas e diminuir a de fotos perdidas. Não é à toa que os amadores avançados tomam como medida para avaliar equipamentos a sua capacidade de fotografar esportes ou eventos.
Curiosamente, os amadores não sabem direito o que eles mesmos chamam de eventos. Afinal de contas, qualquer coisa é um evento, até mesmo uma pedra jazendo por anos a fio na beira de um rio. Há alguma idéia sobre isso, no entanto. Aparentemente, muitos amadores se inspiram em fotógrafos de casamento. Registrar um casório parece ser o maior acontecimento na vida de um amador, especialmente se ele não tem a mínima intenção de se profissionalizar. A questão é que um casamento tem todos os elementos que justificam o ISO alto, a lente rápida, os quadros por segundo. É a realidade que o seu equipamento esperava ansiosamente. No fim da noite, o cartão cheio com centenas de fotos garante que não houve fotos perdidas. Tudo se encaixou e a missão foi cumprida.
O curioso é que tudo isso só faz sentido quando se tem uma visão muito limitada da fotografia, e mais curioso ainda (embora totalmente lógico) é o fato de ser em cima dessa estreiteza que os fabricantes vendam seus produtos. No entanto, é fácil perceber que se os amadores percebessem o que de fato faz uma boa fotografia, isso tornaria mais difícil a vida dos fabricantes, pois o que faz uma boa fotografia não está na câmera. Ao menos não está na câmera em escala industrial e generalizada, e sim na escolha individual do que é adequado.
Por exemplo, o fotógrafo que, antes mesmo de se propor a fazer fotos traça um projeto sobre um tema, como a geometria, não depende de cenas que se apresentem e, conseqüentemente, muito menos do equipamento. A foto passa a ser construída com os elementos que ele dispõe, sejam as linhas do seu guarda-roupa ou de um cruzamento de ruas. O autor então passa a controlar o processo criativo, selecionando e até moldando o seu referente para que este esteja adequado à proposta.
Não há mais fotos perdidas porque o fotógrafo já se apropriou da idéia, da racional, do fio da meada. Todo o resto é conseqüência. Ele já não é mais um mero receptor que espera pronto a reagir. O conceito já é seu, e esse conceito não pode ser perdido, a menos que ele queira. A fotografia passa a ser um processo de construção que começa antes do momento da foto e pode continuar muito além dele. Esse tipo de fotografia, felizmente, pode deixar de lado as palavras registro e captura.
É claro que não há nada de errado, por si só, na fotografia de registro. Ela só se torna um problema quando há uma supervalorização dessa abordagem pela ignorância de outros paradigmas possíveis. Ou, como também é muito freqüente, quando a fotografia nada mais é do que um pretexto para o consumo, e essa visão é a mais apropriada para justificar compra de equipamentos. O que se vê, então é que não há caminhos certos ou errados em absoluto. Há apenas que se ter consciência de seus motivos e de quão ampla é a própria visão, a fim de que as escolhas sejam realmente escolhas, e não apenas inércia.
Muito bom texto, Rodrigo. Quando nos assumimos criadores e respons?veis pelas nossas fotos de certa forma a ‘captura’ deixa de fazer sentido dando lugar ? ‘constru??o’. E est? sendo fascinante para mim ingressar neste mundo em que tudo do lado de fora s?o utens?lios para a cria??o fotogr?fica, e n?o mais as pr?prias fotos esperando serem capturadas.