Porque você não precisa trocar sua câmera

Chega um momento na trajetória de todo fotógrafo amador em que a insatisfação com o equipamento atinge um nível insuportável. Geralmente isso ocorre quando ele começa a aprender mais sobre fotografia e suas diversas técnicas e percebe que o seu equipamento não dá conta de realizar essas operações. O usuário chega então à conclusão de que precisa de um novo equipamento. Os motivos mais comuns por trás dessa iniciativa são: ruído e ISOs altos; lentes e alcance de distâncias focais; resolução e qualidade de imagem.

A idéia toda, então, é aumentar as possibilidades. No entanto, é provável que essa troca tenha um efeito contrário para o fotógrafo. Será que o aumento das possibilidades está realmente no equipamento? Para responder essa pergunta, voltemos mais uma vez ao Flusser, autor de Filosofia da Caixa Preta. Flusser coloca, basicamente, que cada aparelho fotográfico tem um programa, ou um modo de funcionamento. Neste programa estão inscritas todas as suas possibilidades de funcionamento. Por exemplo, sua câmera pode ter uma lente fixa com zoom de 3X, ou um ISO que vai de 200 a 3200. Tudo isso faz parte do programa, que determina e limita o funcionamento do aparelho dentro de suas especificações. Quando trocamos de equipamento, estamos optando, na verdade, por um programa diferente, que tem limitações e possibilidades diferentes.

O problema é que a fotografia, para ser séria, não pode ser apenas a utilização quase automática de um programa. Flusser é radical a ponto de dizer que só há criação quando o programa é subvertido e alteramos o equipamento para que ele funcione fora daquilo que foi programado para fazer. No entanto, não precisamos ir tão longe. Podemos nos contentar com a utilização plena de um programa, ou seja, fazer com o equipamento tudo aquilo que ele é capaz e encontrar dentro de suas possibilidades os meios para desenvolver uma linguagem própria.

Para entender melhor, vamos voltar ao momento em que o fotógrafo se sente insatisfeito com o seu equipamento, ao perceber que ele não dá conta das tarefas que ele vê em revistas, galerias, fóruns etc. Há duas escolhas básicas: trocar o equipamento por um que lhe possibilite fazer todas essas coisas ou resignar-se com sua câmera e tentar extrair dela tudo que é possível. Qual das duas opções favorecerá a capacidade criativa do fotógrafo? Não trocar o equipamento.

Primeiro, porque a motivação para a troca do equipamento é, geralmente, a possibilidade de seguir certos padrões já utilizados. Em outras palavras, para copiar o que já existe. O fotógrafo troca o equipamento e se satisfaz em conseguir fazer o que outros conseguem. Não há mérito ou criatividade aí. Em segundo lugar, porque a mudança de programa cria a falsa ilusão de que ele está sendo criativo. Não está, só está fazendo coisas diferentes das que fazia antes, mas iguais às de todo mundo.

Ao permanecer com o equipamento, o fotógrafo tem a chance de dar um passo em direção à real criação, pois se verá forçado a explorar novas possibilidades dentro do mesmo programa, ou até inventar outras maneiras de fotografar que não estão inscritas na máquina. Através dessa experimentação, ele encontra o caminho para que o aparelho e o programa sejam subordinados à sua vontade, e não o contrário.

No entanto, é extremamente difícil ver alguém que resista à tentação consumista e de status e permaneça com um mesmo equipamento por muito tempo, especialmente no meio digital, em que as máquinas são praticamente descartáveis (e são planejadas para isso). É preciso que o fotógrafo amador inserido nesse meio rejeite uma série de pressupostos e preconceitos da comunidade e tenha tutano suficiente para buscar sua própria linguagem, abandonando os problemas que não são seus e envolvendo-se apenas com o que importa, que é a criação.

Esta criação pode ser feita até mesmo com uma câmera de celular, como nos mostra o fotógrafo Carlos Costa na exposição Gesto, com imagens feitas a partir de telefones móveis. A proposta encontra-se no MAC do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, no Ceará. Não à toa, a mostra faz parte do projeto Sala Experimental. E é justamente a questão experimental de que estamos tratando aqui. Seguem algumas fotos, que para a exposição foram ampliadas em 20×26,5cm.

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© Carlos Costa

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© Carlos Costa

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© Carlos Costa

Na verdade, a questão nem é se você troca de câmera ou não. Quando a criação por parte do fotógrafo é plena, ela quase se desliga do equipamento, de forma que é possível fazer fotos com qualquer coisa. O aparelho passa a ficar em segundo, terceiro plano e o fotógrafo já nem se preocupa mais com ele. A dúvida sobre a câmera já nem passa pela sua cabeça; há coisas mais importantes com as quais se ocupar.

7 comentários em “Porque você não precisa trocar sua câmera”

  1. Caro Rodrigo,

    Outra indica??o de fotos feitas com telefones celulares: Fala Foto, um livrinho bem interessante da jornalista Cora Ronai, publicado pela editora SENAC Rio.

    Um abra?o.

  2. Concordo 100%!!!

    O fot?grafo deveria valorizar mais sua habilidade pessoal q a c?mera usada, pois a partir de certo n?vel de familiaridade com a c?mera esta se torna o ?ltimo problema, deixando a criatividade fluir naturalmente; ?s vezes de modo ?nico.

    Com o tempo, consegue-se planejar o resultado a ponto de, via “racioc?nio pessoal”, imaginar necess?rios ajustes na c?mera e no espa?o em fun??o de poss?veis resultados desejados, e ? o inverso. Isso estabelece como foco a id?ia, o resultado, a mensagem a transmitir, q ao meu ver interessa mais ? maioria das pessoas. Assim, inclui-se o processo mec?nico no processo criativo, definindo 1 estilo pessoal.

    ? como dirigir 1 carro ? busca de resid?ncia, ou mergulhar em leitura qualquer: o motorista ? avalia rota??o do motor ou consumo de combust?vel, mas visual da fachada e conforto da resid?ncia; o leitor ? avalia cor ou tipo de fonte, mas informa??o contida no texto. Enfim, para o fot?grafo importa mais o resultado q o processo para obt?-lo, embora seja bom registr?-lo. ? ruim habilidade pessoal depender s? de m?quina.

  3. […] Gilson Lorenti lançou em seu blog, no Meio Bit, um Manifesto Contra a Elitização da Fotografia. Ele conta que, nas discussões sobre a formação, houve preconceito contra pessoas que só fotografam com uma pequena compacta, o que o motivou a escrever o texto. Ele defende que não importa a câmera utilizada, e sim o talento que se tem para produzir arte. Até aí tudo bem. Essa é uma opinião coerente com vários textos que já publiquei aqui, como o Porque você não precisa trocar sua câmera. […]

  4. Muito interessante o artigo, que nos leva a refletir sobre a real necessidade da troca de equipamento. Certamente que o fotógrafo amador não teria a mesma preocupação do profissional, em se manter atualizado. Eu, que tenho duas máquinas de filme e uma compacta chinfrim, estou à busca de uma DSLR de ‘entrada’, por algumas razões. Tirando o custo do filme e revelação (só escaneamento), o mundo digital nos trás mais um elemento de relação de fatores, que é a mudança de ISO – visto que na máquina de filme, fico ‘preso’ às 36 poses em ISO 100 ou 400 – como já dito no artigo; e mais o uso do histograma, que facilita a medição e correção de luz para a próxima foto.
    Assim sendo, tecnicamente você ‘erra menos’, pois não é fácil você gastar 3 poses de toda foto que tira. No meu caso específico, como aquarista, eu gostaria de um equipamento que fizesse fotos mais que razoáveis desse ambiente. Assim, a qualidade tecnológica do equipamento é essencial para a função requerida.
    O que o(s) colega(s) diria(m) sobre o fato de que os cursos sobre fotografia deveriam então deixar a parte sobre equipamentos para o final? O aluno começa com uma digital simples ou de filme, com foco, velocidade e abertura fixas e irão primeiro trabalhar o ‘olhar fotográfico’. Na avaliação das fotos, seriam apenas observadas a linguagem que se tentou captar, desenvolvendo no aluno essa capacidade do olhar através da máquina. Passada essa fase é que se levaria o aluno a conhecer o que é profundidade de campo, f-stop, ISO, etc.
    Algo como aprender a nadar: primeiro você aprende a não se afogar, ganhar confiança no meio aquático e só depois que irá entrar em contato com a técnica. Parabéns pelo artigo e excelente site!

  5. Themeron,

    Obrigado pela visita e pelo comentário. Concordo com você que os cursos poderiam explorar outras aspectos que não diretamente a técnica de operação da câmera. A maior parte das habilidades que produzem boas fotografias, como saber compor, ler a luz, escolher o assunto, se relacionar com o assunto etc. não tem nada a ver com a manipulação da máquina.

    Abraços.

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