Nas vezes em que conversei com fotógrafos profissionais consagrados, percebi que eles têm, em comum, uma preocupação com a excelência técnica. Entenda-se por isso a produção de ótimas cópias, utilizando papéis da melhor qualidade; capturas corretas em termos de exposição e registro de detalhes; emprego do melhor equipamento possível e outras coisas. Embora para essas pessoas a busca por qualidade faz todo o sentido, já que em sua trajetória eles já devem ter tido sua dose de experimentações, penso que essa preocupação com a qualidade possa ser bastante contraproducente para o fotógrafo amador, principalmente o iniciante.
Podemos pensar que a fotografia envolve os seguintes elementos: o referente, ou assunto; o fotógrafo, junto com sua experiência, sua visão, sua formação; o aparelho fotográfico (os recursos que o fotógrafo tem para produzir as fotos, que vão desde a câmera até acessórios e pós-produção); a foto em si, o resultado final; e o observador.
A preocupação com a qualidade geralmente foca na operação do aparelho fotográfico. Quais tipos de câmeras e lentes comprar, como operar melhor o equipamento, como tratar as fotos etc. Tudo em função de obter um bom resultado final. A atenção exagerada nesse processo, no entanto, acaba deixando de lado outros fatores importantes, como a escolha do assunto e a relação com o observador.
Ou pior ainda: a relação entre o fotógrafo amador e os seus instrumentos acaba tendo uma dimensão tão exagerada que o aparelho se torna um fetiche. Faz-se tudo em função dele e o ato fotográfico acaba sendo apenas um pretexto para o uso do equipamento. Quantas vezes não vemos quem faça fotos “apenas para testar a lente nova”? Ou seja, nesse caso, o assunto vira apenas um acessório dessa relação íntima entre o fotógrafo e o aparelho.
Vemos, então, que a preocupação com a qualidade, para o amador, pode levá-lo a um tipo de fotografia que lhe renderá fotos tecnicamente boas, mas totalmente desprovidas de conteúdo e significado. Uma bela embalagem, mas um pacote vazio. A solução para isso é relegar o aparelho ao lugar que ele pertence: o funcionamento subversivo ou o segundo plano. Já descrevi um pouco a questão do funcionamento subversivo aqui. Relegá-lo ao segundo plano significa não dar importância a ele, pelo menos até que a sua linguagem já esteja mais do que consolidada. Esse processo leva diversos anos e muito estudo, mais do que a simples prática.
Troquei um par de e-mails com Humberto Lemos, coordenador do Fotoclube f/508, de Brasília. Tive interesse por saber como eles funcionavam, visto que têm uma produção diferenciada. Ele me explicou que o clube se formou de um curso bastante extenso que ministrou, e vem crescendo desde então. Sem uma hierarquia complicada — ele era o único coordenador até pouco tempo, agora são dois — o clube realiza encontros semanais para discutir projetos fotográficos e sociais. Parece haver um foco direto no trabalho autoral de qualidade (que passa por muitas coisas, como antropologia, semiótica, filosofia, antes de envolver a questão do aparelho) e na atuação junto às comunidades através da fotografia.
O exemplo do f/508 mostra que há muitos outros caminhos a se seguir para um trabalho que tenha excelência como um todo, e não apenas excelência técnica. Esses caminhos envolvem, invariavelmente, esquecer a relação fetichista entre fotógrafo e aparelho e voltar-se para as outras relações possíveis, especialmente entre o fotógrafo e o seu assunto e o fotógrafo com a sua própria formação cultural.
Foto: Pat Herman
Outros caminhos:
Sem passagem por cursos de cinema, o cineasta Nilson Primitivo, 39 anos, ? um estranho no ninho da nova gera??o de cineastas cariocas. Na contram?o do cinema patrocinado e de filmes cada vez mais esteticamente padronizados, Nilson j? assinou onze produ??es sem qualquer verba p?blica, utilizando uma metodologia pr?pria, muitas vezes “montando” o filme na c?mera e revelando-o em condi??es prec?rias, de forma caseira.
Anarcopunk nos anos 80, Primitivo recria o cinema marginal com poesia e cr?tica: “Assumo o que eu fa?o e espero n?o ser preso”. Seus onze filmes foram rodados com uma Bolex 16mm a manivela, usada na Segunda Guerra Mundial pelo av? de um amigo. Os negativos s?o sobras recusadas por produtores amigos. Volta e meia, ele manda o filme para o laborat?rio e ligam dizendo que a imagem est? com problemas. “Est? tudo muito limpinho. Precisamos do defeito”, argumenta.
Mais velho (2000) conta a hist?ria de um assaltante de pontos do jogo do bicho nos anos 80. O cineasta se baseou em not?cias de jornal para biografar o bandido, que levava o dinheiro dos mais perigosos mafiosos do Rio na m?o grande. A revela??o e a montagem do material foram experi?ncias formid?veis: na banheira, as pontas dos negativos foram testadas at? chegarem num resultado interessante.
Al?m de Mais Velho, Primitivo filmou no Rio Exu do Amor (2001), Idade da Pedra (2002), Duelo das Loiras (2003), Dez pro Inferno (2004) e O Craque do Futuro e Imp?rio das Pel?cias (ambos de 2005). Sem perspectivas e com os alugu?is do apartamento em Copacabana atrasados, Nilson mudou-se para S?o Paulo em 2006, onde veio fazer trilha sonora para teatro. Ainda sobraram algumas latas de velhos negativos, que nas m?os desse experimentador compulsivo, se transformaram em mais tr?s t?tulos: GRU (2006), Alerta aos Carcereiros e Quando a verdade vai entrando ou Carta aos cegos (para aqueles que sabem ouvir e falar) (ambos de 2007). Ano passado, Nilson Primitivo fez uma ponta no longa-metragem Encarna??o do dem?nio, novo filme de Z? do Caix?o.
Assista ao curta Mais velho no site Porta Curtas. Acesse o endere?o: http://www.portacurtas.com.br/buscaAvanca.asp