Ao longo da evolução da fotografia, houve uma transferência da predominância das grande-angulares para as teleobjetivas. Na época das rangefinders, as lentes com grande distância focal eram problemáticas, por questões de construção e paralaxe. A popularização das câmeras reflex de 35mm trouxe um certo equilíbrio a esse panorama, já que permitia o uso desde de lentes olho-de-peixe como de teles longas. Hoje, com a fotografia digital, a balança está pendendo para as teles.
Atualmente, como a maioria das câmeras digitais tem um fator de corte em relação ao formato do filme, uma vez que os fabricantes apostam no modelo híbrido de câmera reflex, que usa os mesmos encaixes das câmeras analógicas, a grande-angular saiu perdendo. Uma lente de 50mm agora tem o ângulo de visão de uma 75mm numa Nikon ou Pentax e 80mm numa Canon. E a visada que antes se conseguia com uma 24mm necessita de uma lente de 16 ou 15mm, com claros prejuízos aos fotógrafos: qualidade ótica inferior e custo astronômico.
Não precisamos ficar no campo das reflex para constatar o desequilíbrio: as câmeras compactas e superzooms, como o próprio nome diz, querem atrair o consumidor com distâncias focais máximas equivalentes de até 400mm, para “aproximar” o assunto. Só que há pouquíssimos modelos de câmera nesse segmento com distância focal inicial menor que 35 ou 36mm. A grande-angular foi sacrificada e o ângulo de visão 28mm, comum em muitas lentes para as analógicas, é raro entre as máquinas com lentes fixas.
O resultado desse novo paradigma do mercado é uma linguagem específica da tele, que envolve o corte agressivo, achatamento dos planos, destacamento do assunto em relação ao fundo pelo enquadre e pela profundidade de campo curta. Como a composição acaba ficando fácil, sem muitos elementos, já que o fundo é seccionado e borrado, as fotos tendem a apresentar um visual límpido e asséptico, que pode ser tomado como qualidade, ainda mais quando associado à pasteurização típica — e também já quase paradigmática — do digital.
Um outro resultado, mais contundente no que se refere ao ato fotográfico, é o distânciamento do fotógrafo em relação ao assunto. Pode-se fazer um retrato a metros de distância. Portanto, ao contrário do que o senso comum diz, as teles não aproximam: elas afastam o assunto. E o contato entre o fotógrafo e o fotografado é reduzido, ou simplesmente não existe.
Para ilustrar um pouco do caminho oposto, ou seja, da aproximação — real e não através da lente — pedi ao Ivan de Almeida retratos feitos com grande-angulares, e ele gentilmente me disponibilizou duas imagens. Ainda que tenham o crop das reflex digitais, essas fotos mostram o contato e a cumplicidade implícitos entre o fotógrafo e o fotografado.
Percebe-se que, nesses retratos, as pessoas estão envolvidas pelo seu ambiente. Embora seja mais difícil o arranjo dos elementos do fundo sem a artimanha do desfoque e do corte, toda essa contextualização torna a cena muito mais interessante, uma vez que é mais complexa e dá mais chance à narrativa. Além da qualidade estética do arranjo formal, as fotos ainda registram a presença do fotógrafo, também imerso nesse mesmo mundo. Claramente uma linguagem muito distinta das teles.
Mais uma vez, não escrevo a fim de desqualificar um tipo de linguagem ou atuação. Como sempre, meu texto tem como intuito fomentar a reflexão e a discussão sobre alguns elementos da fotografia que podemos não perceber de pronto, mas que podem ser valiosos ao tomarmos consciência de sua existência. Há muitos que utilizam as características das teleobjetivas que citei aqui para produzir trabalhos muito interessantes. Como exemplo, destaco a série “Incomunicabilidade”, de Gregório Graziosi, cujo recorte das formas urbanas e o isolamento dos sujeitos jogam a favor da idéia que o autor busca com suas fotos.
Para aqueles que tiverem interesse, resolvi criar um grupo no Flickr para envio de fotos feitas com 28mm ou menos e discussão sobre o tema, já que não existia nenhum em língua portuguesa. O endereço é http://www.flickr.com/groups/44219001@N00/.
Foto topo da página: Dennis Taufenbach.