Vicente gostava de escrever. Não era uma profissão nem exatamente uma grande paixão, mas já fazia parte de sua rotina sentar em frente a sua velha máquina de escrever — uma Olivetti mecânica, com a fita de tinta já gasta — e preencher duas ou três páginas de papel meio amarelado com um conto ou algumas poesias. Não sabia muito bem quando aquele hábito havia começado, nem muito bem porque se mantinha.
Terminadas as histórias, ele as guardava numa pasta de couro marrom, já meio embolorada, que já continha uma parte expressiva da sua imaginação. Personagens, lugares, acontecimentos solenes e corriqueiros, transportados para o papel, jaziam ali por anos, longe dos olhos alheios. Não costumava mostrar suas histórias para ninguém. Escrevia para si, por hábito, por prazer. Guardadas na pasta, as narrativas já cumpriam sua função.
Num dia de insônia, Vicente sentou-se mais uma vez frente às teclas duras e dali saiu uma história mais vibrante, mais intensa, cheia da sua visão pessoal do homem e do mundo. “Quiçá uma pequena obra prima”, pensou. Aquela história precisava ser vista.
Não era de muitos amigos. Tinha dois colegas, do escritório, com quem saía em alguns fins de tarde para uma gelada no boteco da esquina. Modernosos, ambos trabalhavam com a parte de informática da firma, enquanto Vicente, meio que parado no tempo, permanecia na sua função de contador da mesma forma como começara, quinze anos atrás. Avesso aos computadores, permitia ser auxiliado apenas pela sua calculadora, em cujos botões já nem se viam números, depois de tantos balanços checados. Sua acomodação tecnológica rendia algumas piadas aos colegas, mas nunca sua competência fora colocada em dúvida — na ponta do lápis, entregava planilhas com correção impecável.
Levou, então, suas páginas datilografadas, no dia seguinte, ao Luís e ao Sérgio, seus colegas. — Tenho aqui algumas linhas que escrevi na última noite… Gostaria da vossa opinião — disse ele, estendendo as folhas para ambos. — O que é isso? — respondeu Luís de pronto — você ainda usa máquina de escrever? — Meu caro Vicente — completou Sérgio — realmente não passa de uma peça de museu.
Envergonhado, Vicente alcançou as folhas de volta. Procurou algum computador disponível na empresa. Dorotéia, a secretária do chefe, havia ficado em casa, mais uma vez doente. Sentou-se em sua cadeira e, após tensas dezenas de minutos, conseguiu fazer com que a impressora cuspisse alvas folhas com a sua história. Levou de volta aos colegas.
— Mas Vicente, assim não é possível… — analisou um deles, com ar de piedade. — Veja, você nem soube fazer as margens direito.
— E essa fonte? Ninguém usa uma fonte dessas — completou o outro.
— A impressão está péssima, você deve ter usado o modo rascunho.
— Se quiser uma boa impressão, compre uma impressora top de linha. Suas letras sairão sem nenhum serrilhado e você poderá ter textos em tamanho gigante.
— E esse papel? Muito vagabundo, gramatura baixa.
— Concordo. Para que sua história fique boa, imprima em glossy super luxo. Assim ela será muito mais valorizada.
— Para fazer boas histórias, você precisa usar um monitor LCD de pelo menos 19 polegadas.
— Isso mesmo. Só assim você conseguirá visualizar bem como seu texto vai ser impresso, pois os outros modelos enganam a vista.
— E não esqueça do teclado ergonômico. É impossível escrever bem sem uma boa pegada no teclado.
— Exatamente, é fundamental. Eu escolho um computador pela pegada do teclado.
— Não esqueça de todo mês comprar a revista “Escreva Melhor”. Ela sempre traz análises dos melhores processadores de texto do mercado.
— Assim você não terá dúvidas na hora de escolher.
— Siga nossos conselhos, caro Vicente, e aí você vai conseguir escrever ótimas histórias, com certeza.
Embaraçado, Vicente mais uma vez pegou seu texto de volta. Uma parte dele se sentia inclinado a agradecer os colegas, por terem lhe ajudado tanto. Tinham dado a ele, espontaneamente, inúmeras dicas que certamente o ajudariam a escrever melhor. Uma outra parte, no entanto, sentia que havia algo errado, pois tivera a impressão de que nenhum dos dois sequer lera o que ele havia escrito.
Voltando à sua casa, contemplou sua estante de livros, com os clássicos da língua, como Camões, Pessoa, Rosa, Assis, Andrade, Cunha. Algo não fazia sentido. Como todos eles conseguiram produzir tamanhas obras sem os auxílios do mundo moderno? Abriu o antigo volume de “Os Sertões” e ao passar os olhos pelas palavras de Euclides, teve a certeza de que seus amigos estavam errados. Havia ali algo essencial que transcendia o método, passava muito ao largo dele. Voltou à sua máquina, e suas histórias saíam de lá direto para sua pasta de couro. Embora não humana, ela as aceitava e as compreendia. Era tudo de que ele precisava.
Foto: Patuska
Rodrigo,
Muito boa a id?ia do texto! Metaf?rica!
Mas tenho certeza que os “advogados do diabo” n?o perder?o a oportunidade: “?, mas se Machado de Assis, Guimar?es Rosa ou Euclides da Cunha estivessem vivos, certamente fariam uso da tecnologia moderna e, assim, escreveriam muito melhor…”.
? ingl?ria a luta contra a “programa??o”…
Um abra?o.
Eric,
Essa resposta sempre est? na ponta da l?ngua de quem prioriza o aparelho.
Abra?os.