De Weimar a Gursky – Parte 01

Apresentação

Este post é o primeiro artigo ou capítulo sobre a fotografia e a linguagem praticada por alguns fotógrafos alemães. O texto foi escrito a partir de uma pesquisa pessoal que tentava responder algumas perguntas. Como este é um assunto muito rico, o que seria uma olhada na internet sem grandes pretensões, acabou se tornando uma pesquisa e um texto. Para manter a agilidade natural da internet, o artigo será dividido em capítulos, que serão apresentados periodicamente.

Andreas Gursky – 99 Cent II Diptychon

Introdução

Quando a foto o díptico 99 Cent II de Andreas Gursky foi arrematada por valores acima de três milhões de dólares, foi impressionante a quantidade de gente escandalizada com o valor atribuído a uma fotografia, mostrando prateleiras de uma loja, que possivelmente falava algo sobre o consumismo. Muita gente, incluo-me aí, não entendeu o porque deste trabalho ter sido elevado ao topo dessa pirâmide.

Assim como muitas outras questões em aberto, este assunto foi para a “geladeira”, com a promessa de um dia retornar para entender onde o bicho pega. Ficou em tupperware, até uma daquelas crises em que olhamos para os nossos CDs com a impressão tudo aquilo já foi ouvido um milhão de vezes. No meio dessa crise, lembrei de alguns nomes de grupos de rock alemães, um dia apresentados pelo amigo, escritor e jornalista Sergio Kulpas.

No meio da pesquisa discográfica, topei com um movimento musical ocorrido entre o final da década de sessenta e meados da década de setenta. Neste período, após quinze anos de reconstrução, pelas mãos do Wirtschaftwunder (milagre econômico), uma geração de músicos começa a sair do ninho. Porém mesmo sob o bombardeio cultural feito pelo financiadores desse milagre econômico, estes músicos buscam uma identidade musical, que fosse correspondente aos anseios da época, sem os temperos da língua inglesa e as sem amarras de suas raízes.

Depois encontrar a cura para o meu tédio musical, veio a pergunta: qual seria a “cara” da fotografia nesse cenário efervescente? Já nas primeiras interações com o Google, surge um primeiro conceito: no momento em questão, a cara da fotografia não é passiva, não é uma reação à pressão externa, nem tenta criar uma identidade própria, tal como foi a música. Na fotografia essa identidade já existia, assim ela não é influenciada, ela é a influência! A fotografia é um dos fatores que influenciam o cenário musical em questão.

Verificando os trabalhos dos nomes fornecidos pelo Google, percebi que a fotografia praticada por artistas formados na Alemanha tem um ar diferente. Aí Andreas Gursky e outros autores se encaixam. Mas qual é essa diferença? A primeira resposta surge em alguns dossiês do Goethe-Institut que confirmam a suspeita: a fotografia na Alemanha tem forte ligação com o design e a arquitetura. Ir um pouco mais fundo e tentar responder o porque dessa afirmação é o motivador deste texto.

Para os não iniciados no mundo da história da arte, um dos grandes problemas em tentar rastrear as origens de estilos ou conceitos adotados por diversos fotógrafos são os “ismos”. As vezes as discussões, entre o adeptos, desta ou daquela corrente ou “ismo”, sobem o tom. Entretanto, estar ou ser enquadrado em um “ismo”, não é como torcer para um time de futebol: uma vez escolhido o time, isso o acompanhará até o túmulo! Ao contrário, os conceitos, os estilos são elásticos, se aprimoram, evoluem, ora entram em desuso, ora são sujeitos a releituras. Embora estes conceitos estéticos se apresentem de modo difuso, muitas vezes sem delimitadores claros, durante a pesquisa constata-se existência de uma linha mestra, com outras linhas ao seu redor. Em determinados momentos estas linhas convergem sobre alguns nomes. Seguir e investigar essa linhas será o objetivo destes artigos.

1920, o início

Porque retroceder quase um século? Porque é aí que estão as raízes da afirmação do Goethe-Institut sobre a relação fotografia/arquitetura/design. É possível resumir o cenário inicial em duas palavras: caos social!

Para a Alemanha, o final da primeira guerra não se tratou exclusivamente de um fracasso militar. Ainda no final de 1917 em Kiel, um motim coordenado por trabalhadores organizados em conselhos, inspirados nos soviets russos, transforma-se em uma revolução, quase similar a revolução comunista vista na Rússia, que provoca a queda Kaiser e a instauração da República de Weimar. Ao contrário do que aconteceu na Rússia, na Alemanha essa revolta foi abafada, porém o temor de uma revolução comunista era um fantasma a assombrar a classe média e as elites.

Politicamente, os primeiros anos da Republica de Weimar eram extremamente instáveis. A República de Weimar era um regime parlamentarista, sendo que este parlamento para controlar a pressão interna e dissipar o fantasma da revolução apressou-se em declarar o armistício e assinar o tratado Versailles. As cláusulas reparatórias deste tratado tornam-se um peso extremo para economia, já arrasada pelo esforço de guerra e pela concentração extrema das riquezas nas mãos da aristocracia e burguesia. A população, que sofre com a hiperinflação e o desemprego, culpa a aristocracia e o parlamentarismo por esta situação.

A entrada de investimento americano – Plano Dawes – e uma reforma monetária pesada, fazem esse cenário mudar de forma drástica, mas  ao contrario do esperado, a pressão por mudanças dos modelos sociais, aumenta ainda mais. Surge um mundo dominado por inovações tecnológicas e poder mecânico, que coexiste com o atraso social. Este novo mundo transforma pessoas e a paisagem: núcleos urbanos e industriais avançam sobre a natureza e a arquitetura tradicional, alterando o modo de percepção da realidade e, consequentemente, requer uma nova forma de representação.

Nesse cenário a preocupação com o mundo interior ou o subjetivo, que caracterizavam as diversas formas de expressão do pré-guerra, eram inadequados pois eram associados aos responsáveis pela situação de deterioração em que se encontrava a sociedade alemã além de não corresponderem com esse mundo novo. A arte geralmente não fica alheia ao cenário social, e a preocupação social e  sentimento de insatisfação eram expressa de forma mais forte. Assim, artistas inspirados e diretamente influenciados pela revolução russa, puxaram para si a responsabilidade de pensar e expressar os conceitos da arte para uma nova sociedade, descolada dos modelos anteriores.

Tal como em outros campos, para a arte, estes anos foram particularmente turbulentos, o cenário artístico era dominado por diversos grupos exaltados: dadaístas, construtivistas e neo-plasticistas, com diferentes gradações e origens, eram arroz de festa.

A fotografia Pré Primeira Guerra

Nenhuma pesquisa será completa sem verificar o “antes” ou qual é o inimigo a ser combatido. Portanto, antes de nos debruçar sobre os movimentos surgidos a partir do final da primeira guerra, é bom passar uma rápida revista nos movimentos anteriores. Uma olhada somente na fotografia, pois os movimentos ou “ismos” na artes todos já viram ou ouviram falar.

Heinrich Kühn – Still Life – 1918


Heinrich Kühn – On the Hillside – 1914


Rudolf Eickemeyer – Passeio pelo Pasto de Ovelhas – 1901


Hugo Erfurth – Mother and Daugther – 1906

Hugo Erfurth – Costume Study – 1909

Desde meados do século dezenove, a fotografia já era lecionada em escolas técnicas na Alemanha, que formavam profissionais para atuarem nos meios científicos, industriais, militares e social. A fotografia era uma ciência praticada por profissionais com treinamento específico, com maior enfoque na ciência do que em aspectos da arte.

Em 1886, quando Alfred Lichtwark se torna diretor da escola de artes de Hamburgo, ele entende que o futuro da fotografia está relacionado aos amadores e através de artigos ele inicia um movimento em prol de melhorias na fotografia. Na visão de Lichtwark, os amadores por serem livres do comissionamento, poderiam utilizar a fotografia como ferramenta de expressão artística e portanto aprimorá-la. É bom observar que os amadores neste caso são indivíduos da burguesia e aristocracia alemã.

A medida que os amadores – burguesia e aristocracia – adotam a fotografia, o seu status muda, fazendo com seja reconhecida como arte, valorizada por colecionadores privados e museus públicos: a fotografia passa de instrumento a objeto artístico valorizado, associado as altas classes. Os assuntos preferidos, são os temas clássicos da classe que a pratica: paisagens, retratos e nus, misturando elementos do Art-Noveau e Simbolismo, traduzidos em impressões gráficas no que se convenciona chamar de pictorialismo.

Surge então o fotógrafo/artista e já no começo do século, muitos fotógrafos são formado na tradicionais escolas e academias de artes: Preußische Akademie der Künste(Berlin), Hochschule für Grafik und Buchkunst (Leipzig), Hochschule für Bildende Künste (Dresden), Folkwang Universität (Essen), Staatliche Kunstakademie (Düsseldorf).

O leitor com um pouco experiência em fotografia, certamente vai observar que algumas das fotos selecionadas, são cópias de impressões por processos, que hoje chamamos de “alternativos”: goma bicromatada, platina, bromoil, daguerreotipia, etc… Embora processos mais modernos já fossem comuns – do outro lado do Atlântico, a Kodak já cuidava do resto – estes fotógrafos preferiam a impressão utilizando processos mais artesanais, pois estes processos proporcionavam alguma liberdade de estilo e eram mais valorizadas, pois denotavam a perícia do artista. Nestes trabalhos, a perícia do artista era mais apreciada e tinha maior relevância que o assunto ou objeto fotografado.

Estes trabalhos se tornam símbolos das classes que os consomem, e portanto o Pictorialismo é colocado em cheque pelos artistas surgidos no pós guerra.

Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade)

Os primeiros nomes, do pós guerra, que surgem nesta pesquisa estavam relacionados a uma corrente chamada Nova Objetividade ou Neue Sachlichkeit. Esta era, na verdade, uma tendência nas artes, identificada por Gustav Friedrich Hartlaub por volta de 1920. Não se trata de um “ismo” com um manifesto ou uma obra que marquem no calendário uma data de início. Trata-se de uma tendência estética. Uma tendência que se propagou por diversas categorias: pintura, música, arquitetura e fotografia. Basicamente surgia como uma ressaca negando as diversas formas de expressionismos, ou colocando de uma forma simplista: uma forma de retorno ao realismo com uma tendência social.

É importante observar que o realismo com tendência social do Neue Sachlichkeit, não tem nada a ver com o Realismo Socialista. Este último é a estética balizada e dirigida por Estados: propaganda política. Não era esse o caso.

Na fotografia, a proposta declarada da Nova Objetividade, era apresentar as coisas em sua simplicidade e beleza, mantendo um distanciamento do objeto. Os fotógrafos relacionados ao Neue Sachlichkeit acreditavam e buscavam a fidelidade mecânica proporcionada pela câmera para obter uma visão imparcial e documentar a realidade visual que os rodeava, descolado de qualquer traço sentimental ou discurso. Há declaradamente um caráter documentário ou cientificista quando anunciam reproduzir a forma exata das coisas e assim promover um inventário de imagens do seu tempo.

Documentar ou inventariar o que? No início do período do pós-guerras havia a crença que os avanço tecnológicos e o poder industrial que emergia seriam a solução para os eternos problemas sociais e políticos, era a Idade da Máquina: maquinaria pesada, automóveis, trens, aeroplanos, grandes tratores, hidroelétricas, rádios, fonógrafos. Cabia à fotografia documentar e inventariar essa mudança. A câmera, considerada imparcial por natureza e objetiva por excelência, é o melhor instrumento para registrar essa nova realidade e educar a sociedade.

E era em cima do conceito de catalogar, inventariar e descrever sem ser afetado por humores, que os principais fotógrafos da Nova Objetividade trabalhavam.

Próximo Capítulo – Os Fotógrafos da Nova Objetividade

Referências:

John Hannay, Encyclopedia of nineteenth-century photography, Volume 1

Helmut Gernshein, A Concise History Of Photography

Lucia Moholy – One Hudred Years of Photography – Liz Heron, Val Willians, Womem Writing In Photography From 1850 to the Present

7 comentários em “De Weimar a Gursky – Parte 01”

  1. Prezado Rodrigo, sua pesquisa é sem dúvida, muito interessante.

    Também causou-me estranheza que a foto do Andreas Gursky tivesse alcançado tão altas cifras à época, já que retinianamente não é lá grandes coisas. Aí é que mora o X de nossa questão. A fotografia, como um ato isolado que lhe é pertinente, não busca imagens meramentes voltadas a retinas alheias e por isso, a foto em questão, é altamente contemporânea. Não bastasse a formação visual do Gursky (Hilla e Bernd Becher), a fotografia é de um distanciamento ímpar do “sujeito” da foto, o próprio consumo, ideal para a época realizada.

    Dentro da mesma linha citada por você “a estética balizada e dirigida por Estados” destaco o trabalho do artista, fotógrafo e “marginal”, Miroslav Tichý, que, negando-se a seguir ordens do regime totalitário do seu país, na representação ideológica da ex-Checoslováquia, desenvolve um trabalho através da fotografia, altamente marginal, que hoje vale bem mais do que “99 Cent”.

    Os processos históricos estão de volta, seja através da goma bicromatada,daguerreotipia, cianotipia ou papel albuminado, tanto faz! O que importa é que talvez uma “Nova Objetividade” se faça presente em contra-ponto a banalização de nossas retinas.

    Espero encontrar em seus futuros artigos sobre esse tema, algo sobre Moholy-Nagy (Bauhaus) László.

    Grande abraço

    Humberto

    1. Olá Humberto, obrigado por seu comentário.

      Quanto a Gursky, é esse distanciamento que vem me interessando. Postulo que esse distânciamento é, em maior ou menor grau, um demoninador comum a muitos alemães contemporâneos ligados a academias, do que costumávamos chamar, lado de cá da cortina de ferro.

      Sim, Moholy-Nagy está incluso na série, é genial, é obrigatório.

  2. Humberto, obrigado pelo comentário. Só deixando claro, a pesquisa é do Eduardo, que consta lá como autor do artigo. Ao tomar contato com o trabalho que ele estava desenvolvendo, convidei-o a publicá-la, em partes, aqui no Obscura. Vale a pena divulgar para os alunos.

    Abraços.

  3. Rodrigo,

    Parabéns pelo artigo. Riquissimo em informação e detalhes, muito bem executado. Se quiser, tenho a disposição os vídeos de uma série da bbc que fala desta e de outras obras.

    Abraço,
    Daniel

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