A questão da edição na fotografia digital

Já dizia B. F. Skinner que o nosso comportamento verbal pode ser editado, ou seja, ser corrigido antes mesmo de emitido abertamente, de acordo com as conseqüências que agem sobre ele. Em outras palavras, pensamos muito mais do que realmente falamos. Podemos adotar um raciocínio semelhante em relação à fotografia: temos muitas idéias, pensamos em enquadramentos, composições, mas algumas simplesmente não funcionam, e por isso são descartadas.

O leitor perspicaz já percebeu que a edição de que falamos aqui não deve ser confundida com manipulação de imagens. Uso o termo edição no sentido de seleção. Quando eu estava no bate-papo com o pessoal do f/508 há duas semanas, ouvi do Humberto Lemos que era preciso fotografar com digital como se estivesse fotografando com analógica. Não é à toa que ele e muitos outros professores e autoridades na área de ensino de fotografia insistem no aprendizado com filme, já que ele faz com que se “pense mais”. A questão central nessa idéia é justamente a edição.

Quando se fotografa com filme, há uma série de limitações: não se tem mais do que 36 poses, muito menos do que um cartão de memória comporta; não se saberá o resultado até a revelação, tornando imperativa a correção técnica; e há um custo envolvido a cada foto (que também existe no sistema digital, mas que está muito mais disfarçado). Todas essas circunstâncias pressionam o fotógrafo a ser mais cuidadoso com o que faz, e até a desistir de idéias que não sejam suficientemente boas. O processo de edição ocorre, então, antes mesmo da foto ser feita, um pouco como o comportamento verbal citado no primeiro parágrafo.

No sistema digital, essas limitações não existem. Os cartões de memória comportam até centenas de fotos; o resultado é obtido na hora; e tem-se a impressão de não haver custo (especialmente se você já terminou as prestações da sua câmera). Sem as circunstâncias que obrigam um maior cuidado antes da foto, a tendência é que se fotografe mais e que a edição seja feita posteriormente, ao se rever a imagem, tanto na câmera como no computador. Pode-se editar imediatamente depois de fotografar, o que é muito comum. Percebe-se um erro técnico e a foto vai para o lixo. Logo em seguida, outra, com os ajustes corrigidos, é feita.

Muitas pessoas dirão que a edição deve ser feita antes do clique, como no filme. No entanto, não há “pressão ambiental”, tomando emprestado um termo da biologia evolutiva, para que se aja dessa forma, já que o digital acabou com as conseqüências aversivas do clique ruim. Daí a fala do Humberto (que está ele mesmo criando uma pressão ambiental para seus alunos, na ausência da pressão natural), colocando que se deve esquivar da facilidade do botão delete. Entretanto, como os processos são muito parecidos, podemos pensar que trata-se apenas uma questão do momento em que a edição ocorre: se antes do ato ou depois da foto pronta.

O grande problema, na verdade, é quando a edição não ocorre. Talvez a atitude do cara que tira 1000 fotos e apaga 900 não seja tão condenável quanto a do cara que tira 1000 fotos e mantém as 1000 porque acha todas ótimas. E, quando vamos olhar, ele na verdade teve apenas 10 temas e fez 100 fotos de cada um, sem edição nenhuma, nem antes nem depois de fazer a foto. Quando entramos no seu portfólio, vemos diversos retratos da mesma pessoa, de praticamente os mesmos ângulos e só percebemos que não é a mesma foto porque dois fios de cabelo estão em lugares diferentes. Será que é tão difícil escolher uma imagem entre tantas absurdamente parecidas?

Meu amigo Ivan diz que o resultado imediato do sistema digital é uma ferramenta excepcional para o aprendizado de técnicas simples, como alteração de abertura, tempo de exposição, foco etc. Não há como discordar. Entretanto, sempre considero que o aprendizado também depende de certas limitações que, agora, precisam partir do próprio indivíduo. E a última coisa que se quer, geralmente, é abrir mão de todas as ferramentas e facilidades que se tem à disposição.

No fim das contas, o conselho do Humberto talvez seja um bom caminho. Se imaginarmos que cada quadro disponível na câmera digital é uma chapa de cromo, ou um Tri-X, talvez sejamos capazes de olhar para todo o processo com mais consciência. E, se tivermos um certo medo no dedo, como temos ao usar filmes caros e de ótima qualidade, passaremos a editar mais e isso certamente trará boas fotos, bem como mais aprendizado. Hoje temos todos os recursos que poderíamos querer. No entanto, isso não quer dizer que precisamos usá-los todo o tempo, com o risco de nos dissolver no meio desse mar de contingências frouxas.

4 comentários em “A questão da edição na fotografia digital”

  1. “Edi??o antes do clique”. O nome ? bem sugestivo, porque edi??o est? associada ao processamento p?s-m?quina. Essa estranheza ajuda a fixar um conceito, que, por sua vez, j? ? conhecido: pensar antes de clicar.

    Interessante, Rodrigo, que mesmo usando a c?mera anal?gica, ?s vezes me pego repetindo um dos v?cios da fotografia digital: clicar mesmo sabendo que o resultado n?o vai ser t?o bom. Por outro lado, estou clicando bem menos com a digital, chegando a desistir de algumas capturas por saber, de antem?o, que o resultado n?o ser? satisfat?rio. Paradoxo curioso, n?o?

    Mas, de forma geral, usando o auto-policiamento, a captura com filme tem sido positiva. E a quest?o ? essa: auto-policiamento.

    Indo al?m, ? poss?vel desenvolver essa id?ia do portf?lio com fotos praticamente id?nticas, e acrescentarmos a discuss?o da uniformiza??o de padr?es est?ticos e dos “torrents” de fotos, assuntos j? abordados por voc? e pelo Ivan.

    Abra?o!

  2. Daniel,

    Obrigado pela dica. De fato, mesmo no filme, h? um grande trabalho de edi??o posterior atrav?s das folhas de contato. Os DVDs parecem muito interessantes.

    Seymor,
    Parece que a sua pr?tica com filme influencia a maneira como voc? fotografa em digital e vice-versa. O que ? muito interessante, pois h? uma complementaridade entre os sistemas que acaba se refletindo no jeito como voc? fotografa.

    A palavra que voc? usou, auto-policiamento, refere-se a um procedimento que, ao aplicado, ajuda a identificar melhor as caracter?sticas das suas pr?prias fotos.

    Abra?o aos dois.

  3. Ol?, Rodrigo.

    Voc? sabe que ao lado disso que reconhe?o na fotografia digital, de ser um incr?vel acelerador de aprendizado porque permite acumular experi?ncia rapidamente, sou dado a disciplinas bastante r?gidas ao disparar. Para voc? ter uma id?ia, em meu cart?o cabem apenas 70 fotos em RAW, e em um fim de semana raramente fa?o mais de 50. Outro dia fotografando na serra fiz duas seq??ncias quase initerruptas numericamente, isto ?, sem apagar quase.

    Como voc?, penso que a limita??o ? fundamental ? critividade, ao aprofundamento. No meu caso, voc? sabe bem como sou fan?tico por composi??o e enquadramento e como me incomoda a id?ia de cortar uma foto. Cortar uma foto ? como confessar a falha. Prefiro jogar a foto fora.

    Mas a foto digital, ? digital, e assim sendo ela traz com ela uma etapa de edi??o posterior. Uma etapa de desenvolvimento, n?o de corre??o.

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