A fotografia como tarefa

Já havia comentado, no texto sobre fotografia e entretenimento, como a fotografia poderia ser vista como uma atividade produtiva, que aplacaria a necessidade de estarmos sempre fazendo alguma coisa, mesmo nas horas livres. Esses dias, relendo o Sobre Fotografia, da Susan Sontag, encontrei uma passagem em que ela fala sobre o mesmo assunto, em meio a uma análise mais complexa sobre o ato fotográfico feito por amadores.

“Viajar se torna uma estratégia de acumular fotos. A própria atividade de tirar fotos é tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso dá forma à experiência: pare, tire uma foto e vá em frente. O método atrai especialmente pessoas submetidas a uma ética cruel de trabalho – alemães, japoneses e americanos. Usar uma câmera atenua a angústia que pessoas submetidas ao imperativo do trabalho sentem por não trabalhar enquanto estão de férias, ocasião em que deveriam divertir-se. Elas têm algo a fazer que é uma imitação amigável do trabalho: podem tirar fotos.” (p.20)

Esse trecho aponta que ficamos tão marcados ao modo de vida do trabalho que temos dificuldade em viver de outra forma, mesmo fora do expediente. A fotografia, para o amador, mais do que um prazer, pode ser uma tarefa. Como tarefa, tem normas a serem seguidas, rotinas de execução, precisam ter começo, meio e fim. No entanto, quando se está trabalhando, esses aspectos são naturais pois a tarefa deve ser cumprida de uma determinada forma, a fim de que seu objetivo seja atingido. Só que não há objetivos na fotografia amadora. Sendo assim, não faz sentido atribuir a ela aspectos de tarefa a ser cumprida.


Andre Guerette

A consequência imediata dessa visão é que a fotografia amadora acaba sendo encarada de forma desnecessariamente séria, já que está impregnada de “deveres”. A fotografia tem que ser nítida, tem que ser feita no momento certo, tem que ser bem composta, tem que ter uma mensagem, tem que ser fantástica. Assim como no trabalho temos uma série de metas a serem alcançadas, atribuímos à fotografia uma série de qualidades que devem ser atingidas. Do contrário, a fotografia não é boa. A questão é que uma atividade feita por lazer ou amor não tem que ter metas, não tem que passar por nenhum tipo de controle de qualidade. A fotografia pode ser simplesmente um testemunho da relação que temos com aquilo que nos cerca. A qualidade desse testemunho não tem a ver com uma série de critérios técnicos, e sim ao significado que o autor atribui à imagem.

A foto não é uma peça resultante de uma linha de produção, que precisa ser feita sempre da mesma maneira e obedecer a uma série de normas no processo e no resultado: ela é maleável e pode ser produzida como se bem entende. Ainda bem. Pois, ao entender isso, podemos nos ater ao que realmente importa ao fotografar, que é mostrar o nosso mundo, e talvez ainda ter um pouco de diversão no processo. Você pode fazer da sua fotografia aquilo que desejar. Não há nenhum chefe que vai vir conferir se ela foi bem feita. Submeter suas fotografias a um crivo externo – especialmente de pessoas desconhecidas – é pedir pra encontrar vários chefes e transformar sua fotografia em trabalho. Isso não combina com os possíveis papéis da fotografia amadora: ser um lazer ou uma forma de expressão pessoal.

A fotografia amadora não tem que ser nada. Ela pode ser qualquer coisa. Mas você tem autonomia total para decidir isso, sem se basear em nenhum tipo de norma. Sobretudo, ela não tem que ser uma tarefa. Você provavelmente já trabalha o suficiente e não precisa transformar seu lazer, sua criatividade ou sua arte em trabalho. Aprenda a relaxar.

Referência:
Sontag, S. (1977). Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras.

Vida online e vida offline

Em seu “Sobre Fotografia”, Susan Sontag aponta algumas funções contundentes da fotografia. Uma delas é o uso da câmera como uma espécie de escudo ou arma, especialmente nas situações em que a realidade é exótica ou incômoda. Como turistas, ao entrar em um novo ambiente, colocamos a câmera na frente do rosto e vemos o mundo através dela. Como a câmera tende a embelezar tudo, a visão do diferente torna-se mais fácil de ser digerida. Nossa visão se tornou fotográfica e a nossa referência de mundo se transformou naquilo que vemos nas fotos, mas do que com os próprios olhos.

Se considerarmos a expansão das redes sociais e a facilidade de compartilhar fotografias digitais, veremos que muitos aspectos da nossa vida necessitam de validação através desses instrumentos. Anunciamos no Twitter o que estamos fazendo, pensando, onde estamos e pra onde iremos. Compartilhamos nossas fotos de viagem e dos momentos significativos quase imediatamente através do Facebook, Flickr, fóruns ou, para os menos “atualizados” tecnologicamente, por e-mail. É quase como se não existíssemos se não estivermos na web; e se algo não foi anunciado nas redes sociais, não aconteceu.

Por que será que não compartilhamos os maus momentos da mesma forma? As redes sociais estão repletas de fotos de pessoas sorridentes, extasiadas, em alegria constante. Não vejo fotos de ninguém entristecido, chorando, com raiva. Parece que de repente os problemas do mundo acabaram. Finalmente chegou o dia em que a humanidade é totalmente feliz. Podemos parar o que estamos fazendo para viver nessa maravilhosa utopia. As mágoas e a feiura continuam existindo, mas apenas numa realidade paralela: no mundo offline.


Zephyrance Lou

Parece-me, na verdade, que a massificação das comunicações e da vida em geral faz com que busquemos constantemente afirmar que somos diferentes e especiais. Quanto mais temos contato com um contingente maior e maior de pessoas, mesmo que virtualmente, mais necessitamos reforçar a nossa individualidade. E aí, como se estivéssemos numa grande competição, precisamos dizer: “veja como seu feliz, como sou bonito/a, como sou bem sucedido/a”. Através de fotografias, obviamente. Não é à toa que as pessoas querem melhores câmeras e aprender a fotografar melhor. A fotografia precisa ser a melhor possível para sustentar esse exercício de afirmação e busca de identidade. Queremos fazer fotografias que pareçam com aquelas que vemos nas propagandas – em parte porque queremos mostrar que temos uma vida que parece com a que se tem nas propagandas.

O que acontece, então, é que se passa a viver em função de mostrar. A fotografia, então, se interpõe nos momentos, impedindo-nos de experimentá-los plenamente. Em vez de mergulharmos nas viagens, nas baladas, nos passeios e até mesmo num momento tranquilo em casa, fotografamos tudo o tempo todo. Perdemo-nos na necessidade de validar tudo por meio da câmera e, pior, perdemos a chance de simplesmente viver de verdade. Não acho que seja tão comum as pessoas substituírem a vida real pela virtual, como se fala muito – acho que isso só acontece em casos extremos – mas o que acho plausível é que a vida online passe a controlar muitos aspectos da vida offline.

Você já considerou fazer uma viagem e não tirar nenhuma fotografia? Já pensou em não contar pra ninguém depois de ter ido a uma festa fenomenal? Em ter tirado uma fotografia fantástica e apenas imprimir para você mesmo, em vez de compartilhar no Flickr? Talvez eu esteja exagerando um pouco, mas se você acha que essas coisas são impensáveis, talvez seja um sinal para considerar se você faz o que faz pelas coisas em si ou pela função que essas atividades têm para outras pessoas. Em outras palavras: para qual vida você vive? A online ou a offline?

“Contra a Interpretação”, de Sontag, e a fotografia

Sempre que vejo tentativas de explicação de obras de arte ou, mais especificamente, de fotografias, tenho a sensação de que algo não se encaixa ou falta, como se a transposição do visual para o verbal não fosse algo totalmente viável. Deparei-me, esses dias, com um ensaio da Susan Sontag, intitulado “Contra a Interpretação”, em que há o seguinte trecho:

“In most modern instances, interpretation amounts to the philistine refusal to leave the work of art alone. Real art has the capacity to make us nervous. By reducing the work of art to its content and then interpreting that, one tames the work of art. Interpretation makes art manageable, comformable.”

A tradução seria mais ou menos essa: “Na maioria das instâncias modernas, a interpretação equivale à recusa filistina de deixar a arte por conta própria. A arte real tem a capacidade de nos deixar nervosos. Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e interpretá-lo, a obra é domada. A interpretação torna a arte manejável, submissa.”

Na fotografia, uma das formas de se reduzir a obra é através da análise técnica, como já descrevi em “O Anteparo Técnico“. No entanto, não é a única forma. Uma outra forma bastante comum é tentar ler o que o autor quis dizer, como se houvesse todo um discurso subliminar em cada fotografia, e esse discurso seria mais importante do que aquilo que é mostrado claramente.

Temos uma tradição dualista que nos leva a pensar que tudo sempre tem uma razão, um motivo ou um conteúdo oculto. Mas na realidade, na maior parte das vezes as coisas são simplesmente o que são, e a busca por esses conteúdos, como diz Sontag em seu texto, é o “elogio que a mediocridade faz ao gênio”. Tanto que muitas formas de arte, como a pintura abstrata, fogem intencionalmente da possibilidade de interpretação – e, por isso, causam ainda mais incômodo.

Tomemos como exemplo a foto que ilustra esse artigo, de Chad Treolar, intitulada “Electrified”. É uma imagem incômoda. No entanto, o autor adiciona uma legenda explicativa ao postá-la, dizendo que é “uma tentativa de visualizar o conceito de que nossos corpos são carregados eletricamente que são essas cargas que, em última instância, dirigem nossos pensamentos”. Tivesse o autor deixado a imagem falar por si só, ela teria muito mais força do que com a sua própria interpretação.

Isso nos leva a pensar em como criticar fotografias. O primeiro passo é aceitar a foto, e não imaginar outra que poderia ter sido feita – mas não foi. O segundo é evitar excessivamente a interpretação, procurando significados ou intenções ocultas pelo autor. Não há forma de arte mais direta que a fotografia; procurar algo por trás é ir contra a própria natureza da obra. Seguindo esse preceito, a análise direta, através da descrição, da leitura atenta é um caminho interessante, reconhecendo não apenas o que a foto é como aquilo que ela suscita em nós como observadores.

Isso é difícil, pois o fato é que temos grande dificuldade em aceitar as coisas como elas são. Em contemplar sem entender, sem traduzir racionalmente aquilo que nos encanta, nos assombra ou nos incomoda. Talvez abrir mão desse expediente seja um primeiro passo para experimentar a arte tal qual ela é, sem tentar domá-la, ou aplacar o próprio incômodo frente aquilo que não pode ser circunscrito por palavras.

Referência: Sontag, S. (1964). Against interpretation. http://www.coldbacon.com/writing/sontag-againstinterpretation.html