Fotografia perdida na linguagem

Palavras e números estão tão intrincados na nossa vida que já passamos a um ponto em que os confundimos com aquilo que se pretende descrever através deles. Embora sejam apenas símbolos — que podem ser usados na forma de sons ou estímulos visuais — é comum que eles assumam maior importância do que a realidade. Nós nos encantamos tanto com essa ferramenta fantástica que criamos, a linguagem, que não percebemos o quanto ela pode ser enganosa. A linguagem é essencial, determinante para a nossa vida e para a nossa história tanto enquanto indivíduos como quanto civilização. E justamente por estarmos imersos nela o tempo todo — eu mesmo não tenho outra forma de falar sobre isso a não ser a utilizando — temos dificuldade em perceber como ela molda a nossa forma de viver e perceber o mundo.

Para notar como a linguagem permeia nossas experiências, podemos prestar atenção em como a usamos no dia a dia: para representar, categorizar, classificar e julgar. Nosso pensamento acaba sendo totalmente determinado pela linguagem. Tanto que a diferença nas estruturas de um idioma para o outro podem ter influências sobre como indivíduos que falam uma ou outra língua se relacionam com o mundo. Na fotografia, como em qualquer outra atividade humana, isso está presente nos mais diversos níveis.

Inicialmente, podemos falar dos equipamentos. Quando procuramos um equipamento para comprar, olhamos bem pouco para o que realmente importa: as fotos que ele faz. Em vez disso, nossa atenção se volta para uma série de especificações técnicas, palavras e números que representariam as qualidades da câmera, mas que no fundo significam quase nada: 20 megapixels; 7 quadros por segundo; ISO 32000; zoom de 24x. Ou a preocupação existente com a categoria “profissional”, essa palavra mágica que atribui à câmera em questão grandes poderes. Essa nossa fixação por palavras e números na hora de comprar é o sonho dos publicitários: para causar uma impressão boa, basta usar números impressionantes ou termos extravagantes, não importando o que isso significa na prática.

Mas não paramos por aí. Necessitamos categorizar a fotografia em si. Os rótulos que colocamos naquilo que acreditamos serem “tipos” de fotografias: retratos, paisagens, fotojornalismo, fotografia autoral, esportes, macro, moda, eventos. Quando queremos que o rótulo seja mais pomposo — afinal de contas, o rótulo vale mais do que aquilo que ele representa — usamos palavras em inglês, como newborn ou wedding, em vez de recém-nascido ou casamento. Adicionamos assim mais um nível de distanciamento entre a descrição e a realidade.

Wayne Lo
Wayne Lo

Em seguida, temos os julgamentos. Nossa linguagem nos dá essa possibilidade: a de descrever as coisas de forma que a descrição em si determine qual será a nossa atitude frente às coisas. Se classificamos algo como bom, bonito, agradável, valioso, condicionamos uma atitude de aproximação ou de desejo. Se, ao contrário, categorizamos algo como ruim, feio, desagradável ou sem valor, nossa atitude é a de desprezo, afastamento ou aversão. O quanto dessa nossa atitude frente à realidade é determinada pela própria realidade ou pela forma com que a rotulamos? Pior ainda é quando tentamos interpretar, ou seja, além de apenas descrever e categorizar, criamos um outro significado para algo, distinto do significado descritivo original.

Embora estejamos presos nela o tempo todo, é muito fácil perceber como a linguagem é limitada. As discussões sobre fotografia geralmente são discussões sobre os conceitos relacionados à fotografia. Essa câmera pode ou não ser chamada de profissional? Essa fotografia é autoral ou fotojornalismo? Essa fotografia é nítida o suficiente? Essa é ou não uma boa fotografia? E é melhor nem entrarmos nas discussões sobre o que é ou não fotografia e o que é ou não arte. Discutimos para tentar estabelecer qual o melhor rótulo para uma fotografia, sem perceber que “melhor” também é apenas mais um rótulo. Ou seja, ficamos dando voltas nos conceitos sobre os conceitos, numa espécie de bola de neve metalinguística. Não é à toa que ficamos tão confusos e que normalmente não cheguemos a lugar algum. Não podemos resolver problemas da linguagem dentro dela mesma.

A linguagem é uma ferramenta. Uma forma de descrever o mundo e nos comunicarmos. Palavras e números são símbolos. Costumamos confundir os símbolos com a coisa em si, e aí passamos a dar mais valor ao símbolo, à ideia, do que à realidade e à experiência. Se olharmos para todas as descrições, categorizações, classificações e julgamentos que fazemos, podemos perceber que nada disso existe. Tudo é uma mera criação mental. Talvez seja difícil de perceber isso porque ainda estamos dentro da linguagem, eu escrevendo e você lendo esse texto. Mas estamos apontando para fora dela, de forma que talvez possamos, individualmente, sair desse emaranhado. A fotografia, justamente por não ser verbal, pode ajudar nisso. Você já experimentou, por exemplo, tentar olhar para uma fotografia apenas com seus olhos, livre de qualquer julgamento?

Foto do cabeçalho: namtaf

Técnica e linguagem: flash

Quando se aprende a fotografar, um dos aspectos mais relevantes é como explorar a luz. Nos cursos e livros de fotografia, incentiva-se o uso da luz natural ou de sofisticados esquemas de iluminação para que as sombras fiquem suaves, as formas volumosas. Foge-se do flash direto a qualquer custo. Flash direto é o flash sem qualquer rebatimento ou suavizador da luz, disparado direto da câmera (ou de um aparelho de flash externo) para o assunto fotografado. A luz resultante é dura, fria, gerando sombras marcadas e formas chapadas.

Há dois motivos principais pelos quais os profissionais ou amadores avançados fogem do flash direto: primeiro porque associam essa técnica aos amadores “comuns”, ou os fotógrafos de fim de semana, cujas câmeras automáticas sempre utilizam esse recurso quando há escassez de luz. Criar iluminações mais sofisticadas é uma espécie de atestado de conhecimento fotográfico. Além disso, o flash direto denuncia a captura fotográfica, o funcionamento da câmera e a sua limitação: uma vez que não é capaz de captar a cena apenas com a luz existente, é preciso lançar mão de um recurso artificial, quebrando a ilusão da fotografia como cópia da realidade.

No entanto, a luz do flash não rebatido é apenas mais um tipo de luz, como qualquer outra. Ela descreve a cena de uma maneira particular que, por si só, não é melhor ou pior do que outras maneiras, até que utilizemos algum critério subjetivo. O uso do flash direto, pelo seu caráter de desconstrução da ilusão, também é algo subversivo, proporcionando uma forma interessante de fotografar de forma mais autoral.

Fotografia autoral

O termo fotografia autoral – ou fotografia de autor – é usado com frequência para descrever as fotografias que são fruto de um projeto pessoal de um profissional consagrado, ou ainda para referir-se à fotografia que é vista como arte, em oposição à fotografia documental ou utilitária.

Mas o que é a fotografia autoral? Quais são seus limites e delimitações, quais são as suas características essenciais? Não há uma definição rígida sobre isso – se houvesse, não seria necessário escrever um artigo sobre o tema – de forma que podemos especular um pouco sobre as qualidades que colocam a obra nessa categoria diferenciada. Obviamente, esse texto refere-se apenas à minha opinião, uma vez que o tema é tão subjetivo.

Se formos ser literais, todas as fotografias são autorais, uma vez que sempre há um autor. É preciso, então, de alguma forma de classificação. Que critério pode ser estabelecido como decisivo para classificar uma fotografia como autoral? Podemos pensar em algumas possibilidades: estética, originalidade, validação externa, transgressão da relação entre operador e aparelho.

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Estética: não é necessário entrarmos nos aspectos complexos de como analisar visualmente uma fotografia. Para o nosso interesse, podemos pensar numa foto bem resolvida esteticamente, em termos gerais. O que constatamos, no entanto, é que a maior parte das fotografias utilitárias, como as publicitárias, encaixam-se nesse critério. Em contrapartida, veremos que muitas fotografias autorais não têm o mesmo apelo visual, por vezes em detrimento de um conceito ou uma impressão. Concluímos, então, que a estética não é um fator definidor – e nem mesmo necessário – para a fotografia autoral.

Originalidade: é comum a ideia de que a arte deve ser inovadora. Isso pode ter sido verdade até meados do século passado. De lá para cá, as características da obra perderam importância na determinação da sua validade enquanto arte. Na fotografia, a tendência contemporânea tem pouco de inovação e mais de um olhar sobre a vida atual, pouco romantizada e quase antisséptica. Ou seja, a fotografia autoral não requer a reinvenção da roda.

John Curley

Validação externa: poderíamos ser extremamente pragmáticos e pensar na fotografia autoral como aquela que é tachada como arte nas galerias e museus. Embora grande parte da fotografia, especialmente nas galerias, encaixe-se nessa classificação, muitas vezes vemos trabalhos documentais, que foram feitos com objetivos específicos, como os jornalísticos, adquirirem valor artístico por outros aspectos, como o histórico ou o social, o que nos leva a descartar esse critério como determinante.

Transgressão: Flusser, em Filosofia da Caixa Preta, coloca o fotógrafo como um operador da câmera, um funcionário que atua de acordo com um programa pré-estabelecido. Para ele, quando alguém fotografa normalmente, está apenas confirmando esse programa. A fotografia criativa deveria ser a experimental, ou seja, a que quebra o domínio do aparelho através de modificações na câmera ou na ilusão de realidade montada por ela. Embora muito da fotografia autoral tenha um caráter experimental, o que vemos é que isso não é uma condição sine qua non para que sejam produzidos trabalhos relevantes.

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Podemos perceber, então, que qualquer critério rígido que busque classificar a fotografia autoral não dá conta de englobar todos esses tipos de trabalho. Não é a minha intenção propor uma solução pra isso, mas podemos pensar em alguns caminhos. Uma das questões é que, se estamos falando de um autor, então esse autor deve estar na foto. Não basta apertar o botão. Antes que se pense em questões técnicas, não estou falando de como fotografar, ou de usar o modo manual, nada disso. Refiro-me a desenvolver uma linguagem pessoal coesa, consistente, expressiva, que revele, através das imagens, o autor por trás delas.

Da mesma forma que reconhecemos um determinado escritor ou um músico pelo seu estilo, pela forma, o mesmo se aplica ao autor fotográfico. Fotógrafos consagrados conseguem imprimir sua linguagem independentemente da função da foto, seja ela experimental, documental ou utilitária. Portanto, a fotografia autoral tem uma característica abstrata que permeia a produção, mas que é sólida o suficiente para lhe dar unidade e coerência. Sendo assim, qualquer um pode tornar a sua fotografia autoral. No entanto, isso não está no referente, nem na câmera: o autor precisa encontrar a si mesmo.

Fotografia é discurso

Imagine uma folha de papel em branco. Com uma simples caneta, você poderia encher essa folha de papel com uma história, um poema, seus pensamentos, seu ponto de vista. Se você consegue ler este texto é porque foi treinado, durante anos a fio, na habilidade da leitura e da escrita. Você pode, através de sinais especiais e combinações — letras e palavras — organizar qualquer discurso que o idioma permitir.

A fotografia também é uma espécie de discurso. Como qualquer arte visual, ela oferece, através da imagem, a possibilidade de se contar uma história, mostrar uma cena poética, expressar a sua opinião e a sua forma de ver o mundo. No entanto, nós não recebemos anos e anos de treinamento nos elementos do discurso fotográfico como recebemos no uso de palavras e frases. Isso torna a construção e a leitura de fotografias uma tarefa que, embora pareça fácil na prática, é difícil ao se considerar as possibilidades que o idioma da câmera nos permite. Continue lendo “Fotografia é discurso”

Técnica e linguagem: resolução e pontos

Nos últimos anos, o principal aspecto no qual as câmeras digitais mudaram foi na sua resolução, expressa na quantidade de megapixels. Enquanto há 10 anos as câmeras tinham, quando muito, 1 ou 2 megapixels, hoje qualquer câmera compacta e baixo custo tem mais de 10 e os modelos profissionais mais comuns passam de 20.

O que é, no entanto, um megapixel e qual o impacto prático da sua quantidade? Os pixels são os minúsculos receptores de luz presentes no sensor da câmera, responsáveis por formar a imagem. O prefixo mega corresponde à sua quantidade, sendo que 1 megapixel = 1 milhão de pixels. A quantidade de megapixels no sensor da câmera (e, consequentemente, na formação da foto) é obtida através da sua resolução. Uma foto que tenha, por exemplo, 3mil pixels no seu eixo horizontal e 2000 pixels no seu eixo vertical terá uma resolução descrita em 3.000×2.000 que corresponde a 6.000.000 de pixels, ou 6 megapixels. Continue lendo “Técnica e linguagem: resolução e pontos”

Técnica e linguagem: Enquadramento

Uma das maiores decisões no processo de criação de uma fotografia tem pouco a ver com a operação da câmera. Todas as fotografias são quadrados ou retângulos, e é esse retângulo que o fotógrafo sobrepõe ao mundo e faz um recorte mais ou menos amplo que serve de base para o processo fotográfico. A grande escolha é o que colocar dentro desse quadro, o que mostrar.

Tão importante quanto aquilo que é mostrado, é também aquilo que opta por não se mostrar. O que está fora-do-quadro pode ser apenas inferido, imaginado, suposto. Esse jogo entre o que há e o que não há, entre o que é mostrado ou não, entre o claro e o obscuro, quando bem explorado, pode criar trabalhos extremamente interessantes ou instigantes. Nem sempre vale a pena mostrar tudo, de forma explícita.

Fica claro que há poucos aspectos técnicos envolvidos. Um deles pode ser a distância focal. As mais curtas, com maior ângulo de visão, permitem incluir mais elementos no quadro, criando um recorte mais amplo. Já as lentes mais longas levam a enquadres mais fechados, caracterizando um corte mais agressivo. O recorte não precisa ser pensado antes da captura ou se subordinar à distância focal da lente. O fotógrafo pode, através de programas de edição de imagens, realizar o recorte que quiser a partir de um arquivo gerado pela câmera. Abaixo seguem alguns exemplos de fotografias em que há o jogo entre o que é mostrado e o que está fora-do-quadro.

Aurelio Asiain
Aurelio Asiain

Conor Ogle
Conor Ogle

purplemattfish
purplemattfish

Romolo Milito
Romolo Milito

Laura Burlton
Laura Burlton

Técnica e linguagem: Movimento

Como já comentamos antes, a operação da câmera deve ser subordinada às ideias e intenções do fotógrafo, para que o processo criativo envolvido na fotografia seja mais completo. A manipulação da câmera de acordo com o conceito permitirá obter os resultados esperados e é o que pode fazer do ato fotográfico uma forma de expressão. Conhecer a técnica é útil para construir um discurso eloquente através da linguagem característica das câmeras.

Podemos abordar, como exemplo, uma questão simples. As câmeras fotográficas têm uma forma particular de lidar com o movimento. Projetadas para construir suas imagens a partir de frações ínfimas de tempo, a fotografia tem, geralmente, a característica de congelamento, necessário para produzir fotos nítidas e fáceis de entender. Quando não há condições para esse efeito de congelamento (e.g. falta de luz suficiente), o que está em movimento aparece na fotografia como um borrão. Continue lendo “Técnica e linguagem: Movimento”