Desconstrução da ilusão fotográfica

A fotografia é uma construção humana, uma forma artificial de produzir representações através de um aparelho. Através da programação desse aparelho, são determinadas as formas como a luz refletida por objetos tridimensionais é descrita num plano retangular. Por conta de questões culturais e históricas, a fotografia assumiu, na nossa sociedade, o papel de atestado da verdade, de que algo houve – o “isto foi” de Barthes. Alguns usos da fotografia dependem muito desse mito, como o jornalismo e a publicidade. Entretanto, um exame mais próximo do processo de construção de uma foto – o desvendamento da caixa preta – mostra que essa concepção é um grande engodo.

Esse exame mais próximo foi a proposta do workshop Fotografia: Desconstrução, Realidade, Interpretação, realizado durante o último fim de semana no Espaço de Fotografia F/508, em Brasília. A base teórica do curso foi construída a partir de três obras: Filosofia da Caixa Preta, de Vilém Flusser, A Ilusão Especular, de Arlindo Machado (PDF para download, 90MB) e O Universo das Imagens Técnicas, também de Flusser. Sugeriu-se, então, que os participantes produzissem imagens que denunciassem o processo de funcionamento da câmera: movimento, desfoques, cortes, sobreposições e distorções. O objetivo era o impedimento da leitura automática da foto: dessa forma, o observador não pode olhar direto para a cena, ignorando a existência de um aparelho em funcionamento e um autor por trás dele.

Participaram do workshop Adriana Camilo, Antônio Nepomuceno, Edmílson Pinto, Bete Coutinho, Fred Cintra, Jean Peixoto, José Renato da Silva, Júlia Salustiano, Marco Antônio Gonçalves, Rafael Dourado e Vania Almeida. O grupo pôde, na saída fotográfica realizada na Vila Planalto, exercitar a desconstrução através do programa das câmeras ou criando formas de subverter o funcionamento dos equipamentos, produzindo resultados iniciais que podem servir de subsídio para novas linhas de pesquisa pessoal. Uma vez que se amplia a forma de fotografar, incorporando métodos distintos, cria-se um repertório mais diversificado que fortalece a representação de intenções, emoções e conceitos através da arte fotográfica. Além disso, ao compreender os conceitos presentes na construção da imagem fotográfica, aprimora-se também na produção da fotografia convencional.

Abaixo, segue uma galeria com os trabalhos dos participantes. Fred Cintra foi além da fotografia estática e criou um vídeo com a produção resultante do workshop.

Todas as fotos têm direitos de reprodução reservados a seus respectivos autores.

Fotografia antisséptica

Enquanto navegava pelo blog El patio del Diablo, indicado pelo meu amigo Daniel Cobucci, certa inquietação em relação à fotografia ia se formando, conforme se passavam as páginas dessa antologia de grandes fotógrafos. Foto após foto, percebia que havia ali uma certa atmosfera comum, independentemente dos assuntos e estilos diversificados de cada autor referenciado. A maior parte dos trabalhos apresentados situa-se temporalmente em meados do século passado. Será essa atmosfera que permeava os trabalhos uma característica existente na luz do passado? Eram os estilos na verdade homogêneos, apesar de parecerem distintos?

Busquei uma referência atual no site do YPU. Lá encontra-se a mesma força nas imagens, a abordagem semelhante que dá ao banal uma fúria estética capaz de transformar a percepção que se tem do mundo. Mas ainda falta a tal atmosfera, a incerteza das fotos antigas. Detesto responder essas questões tão abertas, mas a diferença entre o velho e o novo é tão gritante que uma explicação se explicita.

Surge Flusser alertando, incessantemente, que o programa está embutido no aparelho. Operamos o aparelho dentro de uma gama limitada de possibilidades que já vêm pré-estabelecidas. E qual a grande diferença entre os aparelhos do século passado e os desse. Com relutância, a resposta se deixa admitir: o filme.

A fotografia com filme é meio suja, mais incerta, menos corrigível… Talvez sejam esses elementos que criam toda a atmosfera que se vê nas imagens antigas. Há certa crueza nas fotos, grãos aparentes, cores irreais (mas sedutoras). Fotografias analógicas têm textura, enquanto as digitais são lisas.

Uma vez que o programa está embutido no aparelho, podemos apenas escolher entre as possibilidades que nos são oferecidas. Entretanto, o rumo adotado pela indústria, independentemente de marca ou modelo de câmera, é apenas um: o da antissepsia. Antisséptico “se refere se refere a tudo o que for utilizado no sentido de degradar ou inibir a proliferação de micro-organismos” (Wikipedia). Na fotografia, esses micro-organismos são os grãos, a textura. A fotografia digital tem horror a isso. O objetivo dos engenheiros é projetar câmeras que gerem imagens cada vez mais limpas, lisas, livres de quaisquer irregularidades. Objetiva-se imagens cada vez mais nítidas e livres de imperfeições. O vilão da fotografia digital, o ruído, característico do ISO alto, é desagradável, já que é uma interferência na imagem, enquanto o grão do filme, mesmo que aparente, é o constituinte da imagem formada pela câmera.

A indústria, então, propões uma direção única para os equipamentos fotográficos. Relaciona-se qualidade com uma pretensa reprodução “fiel” da realidade, sem interferências, criando uma ilusão cada vez mais perfeita, em que se oculta cada vez mais sua criação dentro da caixa-preta que é o equipamento. Uma tendência que segue muito bem o paradigma da fotografia publicitária, em que a antissepsia é fundamental. Mas, espere um pouco, as pessoas não querem fazer propaganda com suas câmeras e fotografias. Ou querem?

Sim, a ficha está caindo

Ontem, o Eduardo Buscariolli indicou a leitura de dois posts de fotógrafos colaboradores da National Geographic Brasil. A NatGeo sempre foi vista como uma referência em fotografia, então é interessante saber o ponto de vista dos seus profissionais sobre o tema. Pois bem, no texto “Liberdade”, de Ivan Petterle, há o seguinte questionamento:

Sinto que existe um cansaço evidente na atual fotografia de caráter documentarista. Mostrar o exótico ou a beleza de coisas naturalmente belas, é na minha opinião, uma armadilha para cair-se na obviedade. Desperdiçamos, assim, uma possibilidade de se fazer imagens originais e criativas. É necessário libertar-nos de velhas e batidas fórmulas que apenas trazem tédio ao público espectador.

No outro texto, “Jornada fotográfica feita de ousadia e criatividade”, Roberto Linsker sugere: Continue lendo “Sim, a ficha está caindo”

Fotografia autoral

O termo fotografia autoral – ou fotografia de autor – é usado com frequência para descrever as fotografias que são fruto de um projeto pessoal de um profissional consagrado, ou ainda para referir-se à fotografia que é vista como arte, em oposição à fotografia documental ou utilitária.

Mas o que é a fotografia autoral? Quais são seus limites e delimitações, quais são as suas características essenciais? Não há uma definição rígida sobre isso – se houvesse, não seria necessário escrever um artigo sobre o tema – de forma que podemos especular um pouco sobre as qualidades que colocam a obra nessa categoria diferenciada. Obviamente, esse texto refere-se apenas à minha opinião, uma vez que o tema é tão subjetivo.

Se formos ser literais, todas as fotografias são autorais, uma vez que sempre há um autor. É preciso, então, de alguma forma de classificação. Que critério pode ser estabelecido como decisivo para classificar uma fotografia como autoral? Podemos pensar em algumas possibilidades: estética, originalidade, validação externa, transgressão da relação entre operador e aparelho.

gregory mc.

Estética: não é necessário entrarmos nos aspectos complexos de como analisar visualmente uma fotografia. Para o nosso interesse, podemos pensar numa foto bem resolvida esteticamente, em termos gerais. O que constatamos, no entanto, é que a maior parte das fotografias utilitárias, como as publicitárias, encaixam-se nesse critério. Em contrapartida, veremos que muitas fotografias autorais não têm o mesmo apelo visual, por vezes em detrimento de um conceito ou uma impressão. Concluímos, então, que a estética não é um fator definidor – e nem mesmo necessário – para a fotografia autoral.

Originalidade: é comum a ideia de que a arte deve ser inovadora. Isso pode ter sido verdade até meados do século passado. De lá para cá, as características da obra perderam importância na determinação da sua validade enquanto arte. Na fotografia, a tendência contemporânea tem pouco de inovação e mais de um olhar sobre a vida atual, pouco romantizada e quase antisséptica. Ou seja, a fotografia autoral não requer a reinvenção da roda.

John Curley

Validação externa: poderíamos ser extremamente pragmáticos e pensar na fotografia autoral como aquela que é tachada como arte nas galerias e museus. Embora grande parte da fotografia, especialmente nas galerias, encaixe-se nessa classificação, muitas vezes vemos trabalhos documentais, que foram feitos com objetivos específicos, como os jornalísticos, adquirirem valor artístico por outros aspectos, como o histórico ou o social, o que nos leva a descartar esse critério como determinante.

Transgressão: Flusser, em Filosofia da Caixa Preta, coloca o fotógrafo como um operador da câmera, um funcionário que atua de acordo com um programa pré-estabelecido. Para ele, quando alguém fotografa normalmente, está apenas confirmando esse programa. A fotografia criativa deveria ser a experimental, ou seja, a que quebra o domínio do aparelho através de modificações na câmera ou na ilusão de realidade montada por ela. Embora muito da fotografia autoral tenha um caráter experimental, o que vemos é que isso não é uma condição sine qua non para que sejam produzidos trabalhos relevantes.

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Podemos perceber, então, que qualquer critério rígido que busque classificar a fotografia autoral não dá conta de englobar todos esses tipos de trabalho. Não é a minha intenção propor uma solução pra isso, mas podemos pensar em alguns caminhos. Uma das questões é que, se estamos falando de um autor, então esse autor deve estar na foto. Não basta apertar o botão. Antes que se pense em questões técnicas, não estou falando de como fotografar, ou de usar o modo manual, nada disso. Refiro-me a desenvolver uma linguagem pessoal coesa, consistente, expressiva, que revele, através das imagens, o autor por trás delas.

Da mesma forma que reconhecemos um determinado escritor ou um músico pelo seu estilo, pela forma, o mesmo se aplica ao autor fotográfico. Fotógrafos consagrados conseguem imprimir sua linguagem independentemente da função da foto, seja ela experimental, documental ou utilitária. Portanto, a fotografia autoral tem uma característica abstrata que permeia a produção, mas que é sólida o suficiente para lhe dar unidade e coerência. Sendo assim, qualquer um pode tornar a sua fotografia autoral. No entanto, isso não está no referente, nem na câmera: o autor precisa encontrar a si mesmo.

O fotógrafo e o real

Desde a sua criação, no século XIX, a fotografia tem, perante a sociedade, o status de representação fiel da realidade. Com a criação de um dispositivo que registrava as imagens sem a mediação de um agente humano, tornou-se possível a obtenção desses registros apenas pela ação da luz na superfície fotossensível. Por isso, a fotografia logo ganhou espaço na feitura de retratos, e também no registro de eventos historicamente relevantes, atividades que, até então, ficavam a cargo da pintura. Nasceu o chamado fotojornalismo, e cada vez mais, numa escalada constante que permanece até os dias de hoje, a imagem disputa a importância com o texto.

A força do referente, na fotografia, sempre foi avassaladora. Entende-se como referente àquilo que dá forma à imagem, através da reflexão dos raios luminosos. Esse peso do “real” presente na fotografia foi tão grande que mudou o curso da história da arte, sendo um dos responsáveis pelo surgimento do abstracionismo. Roland Barthes, em seu “A Câmara Clara”, evoca esse peso ao dizer que o noema, ou a essência, da fotografia é tão somente atestar a existência de algo: “isto foi”.

Contudo, a partir do século XX dois questionamentos à “pureza” da fotografia foram colocados. Primeiro, é o fotógrafo apenas um manipulador do equipamento, impotente frente ao poder do referente? Segundo, a captura fotográfica, através da câmera, é desprovida da necessidade de codificação e interpretação, ou seja, é de fato uma cópia fiel da realidade?

Ivan Constantin
Ivan Constantin

Passou-se a discutir, então, o quanto o ato de fotografar era influenciado por quem estava atrás da câmera. Concluiu-se, obviamente, que a fotografia não era assim tão pura. Afinal de contas, o fotógrafo tem, em suas mãos, diversos instrumentos para guiar a captura fotográfica a fim de induzir uma determinada interpretação. O mais poderoso deles talvez seja o corte. Ao decidir o que permanece dentro do retângulo da foto e o que fica fora, o fotógrafo tem o poder de isolar ou contextualizar uma cena, alterando a forma como ela é percebida. Outras formas de distorção também são possíveis, como o uso de lentes de distância focal curta ou longa, que alteram completamente a noção de espaço, já que esticam ou achatam os planos na representação bidimensional do espaço tridimensional. Além disso, as fotos podem ser montadas e manipuladas, tendo como expoente o uso de tais procedimentos durante o período stalinista na antiga União Soviética.

Arlindo Machado, em “A Ilusão Especular”, mostra que mesmo a representação fotográfica obedece à perspectiva central consagrada no renascimento e há uma série de preocupações técnicas para que essa representação realmente se pareça com a realidade, ou seja, torne-se uma boa ilusão. Quando, pela alteração desses elementos técnicos, há um resultado que se afasta desse ideal (como uma imagem tremida, uma luz que achata a imagem, um borrão por movimento), a conseqüência é uma sensação de estranheza, já que a fragilidade da representação vem à tona.

A câmera fotográfica, então, não era mais detentora da verdade e o fotógrafo não era mais um mero apertador de botão. Isso, contudo, reflete mais uma posição teórico-acadêmica do que a visão do senso comum. A fotografia, para a maioria das pessoas, ainda é vista como entidade soberana, tanto que é tida como prova de que algo realmente aconteceu. Quando uma pessoa, flagrada em ato questionável numa imagem argumenta que a foto foi montada ou adulterada, isso não convence ninguém. E, com o uso cada vez maior das imagens pelo jornalismo, esse status não tende a mudar cedo.

skazama
skazama

Esse contexto evidencia a característica da fotografia quando olhada pelo prisma da relação entre o fotógrafo e a sua ferramenta. Ao contrário de outras artes, como a pintura e a literatura, em que há muito mais liberdade e as criações encontram menos obstáculos, na fotografia a obra está intimamente ligada às características do aparelho, como afirma Flusser em “Filosofia da Caixa Preta”. Há, então, uma queda de braço entre o fotógrafo, que busca atribuir à realidade conceitos pessoais, e o referente, que é o que é por si só e não está nem aí para os desejos do fotógrafo.

As técnicas disponíveis pelo fotógrafo, como o corte e a distorção, poderosas quando servem ao propósito de alterar a realidade, podem ser toscas e insuficientes quando o referente é muito diferente daquilo que o fotógrafo quer mostrar. A saída, para o fotógrafo, é construir a sua própria realidade, a partir, especialmente do trabalho no estúdio. Não é à toa que as fotos publicitárias são, na grande maioria dos casos, produzidas em estúdio, em que a realidade pode ser construída para parecer mais real do que a realidade “verdadeira”.

Mas mesmo o trabalho no estúdio tem as suas limitações, e não é tudo que se pode controlar, mesmo com holofotes, maquiagens e fundos infinitos. Essa queda de braço entre aquilo que o fotógrafo quer mostrar contra a forma como o real se apresenta inevitavelmente leva à frustração. Com isso, muitos seguem o caminho adicional de manipulação da imagem, que se assemelha, em sua forma, com a pintura, com o problema que ela ocorre sobre uma base pré-estabelecida, a captura fotográfica.

chillhiro
chillhiro

Percebe-se, então, que essa disputa de controle se dá com o fotógrafo atuando antes e depois do clique, alterando luzes, corte, assunto, abertura, velocidade e manipulando o resultado, a fim de cercar o único fator que ele não tem, de fato, acesso, que é a própria captura fotográfica. Enquanto o obturador está aberto, não há nada que o fotógrafo possa fazer; é o referente que está irradiando sua luz sobre a superfície fotossensível: resta ao operador esperar e torcer para que o resultado seja o que ele espera.

Ou seja, aqueles que almejam o uso da fotografia como mais do que um registro documental (que sucumbe à força do referente), é preciso que se tenham maneiras criativas de como lidar com a realidade, sem tentar bater de frente com ela, ou o resultado será invariavelmente frustrante. Não é incomum que o fotógrafo frustrado busque novos equipamentos, ou vá cada vez mais longe à procura de imagens que se encaixem naquilo que quer fazer. Isso dificilmente resolve o problema.

Não resolve porque a imagem está circunscrita no aparelho, como coloca Flusser. O fotógrafo, quando busca novas imagens, busca coisas que o aparelho ainda não fez, e isso significa muitas vezes novos referentes, embora a mesma abordagem com referentes distintos pareça repetitiva. A saída pode ser simplesmente deixar de brigar com essa questão, entendendo ser a fotografia também, um testemunho pessoal.

É útil também entender as limitações da fotografia e perceber que muitas vezes a saída mais criativa reside em outras formas de expressão. A fotografia, inexoravelmente, é limitada, embora esse limite seja incrivelmente amplo. Para tornar o caminho menos doloroso, é preciso aceitar o referente, aceitar a limitação do programa fotográfico e adotar uma abordagem que coloque o fotógrafo como complemento desses fatores, de forma que ele seja visível na obra, entendendo que ele é parte da construção, mas não necessariamente a parte dominante.

Técnica e linguagem: resolução e pontos

Nos últimos anos, o principal aspecto no qual as câmeras digitais mudaram foi na sua resolução, expressa na quantidade de megapixels. Enquanto há 10 anos as câmeras tinham, quando muito, 1 ou 2 megapixels, hoje qualquer câmera compacta e baixo custo tem mais de 10 e os modelos profissionais mais comuns passam de 20.

O que é, no entanto, um megapixel e qual o impacto prático da sua quantidade? Os pixels são os minúsculos receptores de luz presentes no sensor da câmera, responsáveis por formar a imagem. O prefixo mega corresponde à sua quantidade, sendo que 1 megapixel = 1 milhão de pixels. A quantidade de megapixels no sensor da câmera (e, consequentemente, na formação da foto) é obtida através da sua resolução. Uma foto que tenha, por exemplo, 3mil pixels no seu eixo horizontal e 2000 pixels no seu eixo vertical terá uma resolução descrita em 3.000×2.000 que corresponde a 6.000.000 de pixels, ou 6 megapixels. Continue lendo “Técnica e linguagem: resolução e pontos”

Fotografia: vedete do admirável mundo novo

No Flickr, mais de três mil fotos são publicadas a cada minuto. No Twitter, o número de mensagens superou os dez bilhões. A previsão de Flusser, feita 20 anos atrás, de que seríamos subjugados pelas imagens técnicas (telas de computadores, de televisão, de celulares) e apenas nos submeteríamos a uma avalanche infinita de informações “novas” a cada dia nunca pareceu tão concreta. A esperança de que talvez fosse possível usar a difusão da informática a das telecomunicações para o aumento da consciência sobre o funcionamento desse sistema, ao permitir uma espécie de contracontrole, diminui a cada movimento que “facilita” a comunicação.

Os e-mails já estão fora de moda. Os blogs já parecem pesados e antiquados. Fóruns de discussão são ferramentas rudimentares e seletivas. As formas de comunicação pela internet seguem a lógica da sigla TLDR, que significa too long; didn’t read, ou seja, “muito longo; não li”. A comunicação é cada vez mais fácil, imediata, curta, objetiva, clara. Porque escrever um e-mail se com 140 caracteres se cria uma mensagem no celular ou no Twitter?

Paul Hockett
Paul Hockett

No seu célebre 1984, escrito nos anos 50, George Orwell descreve a sociedade totalitária futurística no qual todos são vigiados através das teletelas. São monitores que ao mesmo tempo mostram e captam imagens, utilizados como instrumento de controle do governo. A privacidade não existia e cada cidadão precisava controlar até mesmo seus pensamentos: falar mal do líder (o Grande Irmão, ou Big Brother) até mesmo durante o sono poderia evidenciar um traidor, que era punido exemplarmente. O que Orwell não previu é que não seria necessário um governo totalitário para forçar as pessoas a perder sua privacidade. As pessoas voluntariamente, e com prazer, abrem suas vidas e sua intimidade para quem quiser ver. E não estou falando daqueles que aparecem em reality shows na TV, como o que tem o título ironicamente baseado no romance de Orwell. Falo de todos nós que nos expomos diariamente no Facebook, no Orkut, no Twitter, no Flickr. Somos o sonho de qualquer ditador.

No entanto, não há ditador. Há apenas um sistema baseado na comunicação cada vez mais rápida e simples, que premia com 15 minutos de fama e segue em frente, na necessidade voraz de produzir, a cada segundo, “novas” informações e “novas” imagens.  A arte já era “contemporânea” antes mesmo da telemática de Flusser se tornar tão evidente: já não importa mais a qualidade dos trabalhos, o valor das obras. Vale a rede do comunicação, os contatos, o networking. Quem faz o artista não é sua produção, é sua capacidade de se adequar a essas contingências. Para os que não aceitam esse novo estado de coisas: o próprio Flusser já diz que não adianta gastar voz contra a qualidade dos trabalhos ou pela restauração dos valores ultrapassados; é preciso conhecer o sistema e subvertê-lo de dentro, já que ele não é planejado nem controlado por ninguém. Ele simplesmente existe.

Daniela Munoz-Santos
Daniela Munoz-Santos

A fotografia digital é a vedete dos novos tempos. Ao permitir sua visualização e disseminação imediata (já existem câmeras que fazem upload automático das fotos para o Facebook ou outras redes sociais), ao não ser necessário o conhecimento de nenhum tipo de código para sua produção e leitura, como na escrita, ela é o combustível perfeito para essa roda de moinho que precisa de impulso constante. O conteúdo importa pouco, desde que seja de fácil compreensão e de preferência com uma forma impactante. Isso ajuda na sensação de que aquilo que está sendo visto é novo e relevante, embora se preste atenção por apenas um segundo e um minuto depois já foi esquecido, na medida em que nossa atenção já flutuou por dezenas de outros estímulos. Em última análise, não passa de mais do mesmo.

Obviamente, existem ótimos trabalhos expostos na internet (como os que ilustram este artigo, e foram postados justamente… no Flickr). A questão é que infelizmente eles se pulverizam sobre o mar de banalidades. Se forem vistos, poderão ao menos gerar uma dezena de comentários vazios e delegados ao esquecimento, logo em seguida. Os trabalhos mais apreciados na rede são aqueles que seguem a lógica do TLDR, que também vale para imagens: fotos de fácil compreensão, mensagem rasa, clara e limpa, que  alimente a roda e não a trave, exigindo reflexão ou uma leitura mais apurada.

Tenho visto as pessoas que de fato gostam da fotografia lidando de diferentes formas com esse cenário. Algumas simplesmente não conseguem se adaptar a ele, não postando fotos na internet e mantendo o velho hábito de imprimir as imagens ou apenas compartilhá-las com conhecidos. Outros, de forma inversa, entendem que é preciso lutar pela visibilidade a cada dia, e de fato obtêm sucesso com um trabalho consistente: embora muitas vezes ele seja pautado simplesmente pelos comentários de desconhecidos e envolva uma necessária repetição, o que inevitavelmente acaba tolhendo as possibilidades criativas. Alguns preferem uma perspectiva mais introspectiva, buscando fotografar para si mesmos, ainda que publiquem os resultados na internet. Inevitavelmente, nesse caso, há um conflito entre a perspectiva pessoal e a expectativa geral, de que as fotos devem comunicar algo menos particular. E há aqueles que não se preocupam tanto com a questão, simplesmente publicando imagens de forma indiscriminada: e essas imagens médias são o grosso desse oceano.

Andre Fromont
Andre Fromont

E há, de fato, poucas alternativas para quem fotografa e quer, de alguma forma, validar ou expor seu trabalho. Afinal de contas, a explosão da internet e de outras formas modernas de comunicação fazem com que se você não está online, é como se não existisse. O dilema é como se situar entre a inexistência e a pulverização no oceano de informações. Se alguém souber a resposta, me avise.

Passaram-se duas horas desde que comecei a escrever esse texto. Nesse meio tempo, mais de 360 mil fotos foram publicadas apenas no Flickr. Diversas pessoas acordaram e narraram suas atividades no Twitter. Inevitável pensar que é quase um exercício de simplesmente falar sozinho. Estarmos totalmente conectados, ao invés de propiciar a troca e a criação em conjunto de que Flusser fala, a partir de um patamar que é impossível de se obter sozinho, apenas nos torna mais narcisistas. Mas, se você chegou ao fim desse texto, é porque a lógica do TLDR ainda não é universal. E talvez nem tudo esteja perdido.

Flusser e o mito da criatividade

Poderíamos tomar “O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade” (São Paulo, Annablume) e abordar diversas questões que se relacionam com a fotografia nesse profético livro de filosofia escrito por Vilém Flusser em 1985. Estão presentes a questão da superficialidade das imagens técnicas (caracterizadas na fotografia, televisões, computadores, filmes), a da crescente entropia de uma sociedade que se pulveriza e abandona os valores já inúteis para o nosso tempo e dificuldade em imaginarmos um mundo sem as estruturas que estão se desintegrando. Por conta de todas essas questões, considero o ensaio, sucessor de “Filosofia da Caixa Preta“, uma leitura obrigatória não só para aqueles que querem entender melhor o papel da fotografia, mas também alguns aspectos da sociedade atual.

No entanto, achei interessante abordar  um aspecto do livro estritamente ligado à produção de imagens dentro do contexto de comunicação em massa e do mundo conectado no qual vivemos. Na página 104, dentro do capítulo “Criar”, o autor argumenta contra um dos mitos em relação à produção cultural ainda muito arraigados no senso comum, o mito do criador, do gênio. Dois parágrafos elucidativos seguem abaixo.

the dance of the dark figures
Drew Baker

“Toda informação se produz como síntese de informações precedentes, por diálogo que troca bits de informação para conseguir informação nova. O mito do autor pressupõe que o ‘fundador’ (o gênio, o Grande Homem) produz informação nova a partir do nada (da ‘fonte’). O autor mítico cria na solidão da geleira, nos mais altos picos (Nietzsche). Por certo, muitos mitólogos da criatividade admitirão que o autor está inserido em determinado contexto cultural do qual sorve as informações que o nutrem, mas também afirmarão que tais informações são elaboradas pelo autor em diálogo interno e solitário, e que há algo misterioso no íntimo do autor que faz com que algo de inteiramente novo se acrescente às informações recebidas. Destarte tais mitólogos projetam visão da história que passa a ser uma série de picos altos que se elevam sobre a bruma amorfa da planície a partir da qual os picos se nutrem. Ora, a informática torna inoperante essa visão da história.

Atualmente, a massa das informações disponíveis adquiriu dimensões astronômicas: não cabe mais em memórias individuais, por mais ‘geniais’ que sejam. Por mais ‘genial’ que seja, a memória individual não pode armazenar senão parcelas das informações disponíveis. E tais parcelas armazenadas aumentaram, elas também, de modo que o consumidor médio detém atualmente mais informações do que o ‘gênio’ renascentista. Tais parcelas de informação exigem processamento de dados para serem sintetizadas em informação nova: a memória humana se revela lenta demais para poder processar semelhante quantidade de dados. O diálogo interno e solitário se tornou inoperante. Exigem-se grupos de memórias individuais assistidos por memórias artificiais (laboratórios, comités, grupos de pesquisa e de realização) e, estes sim, produzem informação nova em quantidade e qualidade jamais sonhada no passado. De forma que o autor, o Grande Homem, não apenas se tornou redundante como estritamente impossível.”

Oblivion Is All We Crave
Dead Air

Mesmo a noção inicial de que seria possível uma criação a partir do nada, apenas de diálogo interior, já é questionável. Aquele que produz qualquer tipo de imagem ou peça cultural bebe do seu tempo, dos seus antecessores, dos mestres, daqueles com quem dialoga. No entanto, ainda que essa concepção um dia tenha feito sentido, torna-se claro, pelos argumentos acima, que frente à quantidade de informações e possibilidades que temos hoje, criar sozinho dificilmente levaria a uma produção de qualidade e em boa quantidade.

Flusser argumenta ainda que as formas de comunicação atuais permitem que cada um seja um potencial produtor que dialoga com muitos outros, aumentando as chances de gerar informações (imagens, trabalhos, conceitos) novas e relevantes. No entanto, o autor não é tão otimista: essa mesma estrutura que possibilitaria a todos serem participantes também pode levar a sociedade à entropia, ao fim em si mesmo, à constante repetição de informações que “parecem” novas, mas que na verdade são uma tediosa cultura massificante de entretenimento vazio. Naturalmente, o autor considera essa última possibilidade mais provável. Haja visto os programas de televisão, como novelas ou futebol que, aparentemente, são novos a cada dia, mas que na verdade são uma repetição infinita das mesmas coisas. Não é difícil imaginar o mesmo acontecendo com a fotografia. Basta acessar as galerias de fotos na internet para vermos fotografias espetaculares sendo produzidas a cada segundo, apenas para serem esquecidas no segundo seguinte. Contentamo-nos com microespetáculos que não nos tiram da letargia induzida por uma torrente cada vez maior de informações massificantes.


Oliver Zelinski

Entretanto, com a Internet, ícone maior do conceito de “telemática” proposto pelo autor (imagem técnica + telecomunicação), teríamos uma ferramenta poderosíssima para combater esse movimento. Temos sites, fóruns, blogs, numa rede imensa que permite que criemos grupos de articuladores a fim de produzir diálogos e trabalhos novos. Essa é a real forma de criação atual. No entanto, Flusser avisa: para isso, é preciso esquivar-se do entretenimento, dos microespetáculos das imagens técnicas. Em vez de preocupar-se em produzir imagens fantásticas, bonitas, vistosas, é preciso afastar-se e falar do processo em si: de como se dá produção e disseminação das imagens, do funcionamento da sociedade, numa tentativa de esclarecer quais são os fios que tecem essa rede e usá-la a favor do nosso aprimoramento, e não da repetição de padrões. Ou seja, a opção está entre continuar alimentando a roda de mesmice ou criar uma metalinguagem que nos possibilite ver, de fato, o que acontece no mundo.