A criação sincera

Na China antiga, antes que um artista começasse a pintar qualquer coisa — uma árvore, por exemplo — ele sentava-se na frente dela por dias, meses, anos, não importa quanto, até que ele fosse a árvore. Ele não se identificava com a árvore, ele era a árvore. Isso significa que não havia espaço entre ele e a árvore, nenhum espaço entre o observador e o observado, nenhum experienciador experienciando a beleza, o movimento, a sombra, a profundidade de uma folha, a qualidade da cor. Ele era a árvore totalmente, e apenas nesse estado ele podia pintar.
Krishnamurti

O que será que nós chamamos de criação? O que significa a palavra criatividade? Dependendo da nossa concepção sobre esses conceitos, podemos dizer que nós criamos o tempo todo. Ao escrevermos, ao falarmos, ao fotografarmos. Estamos constantemente interagindo com o mundo e uns com os outros de forma que ideias, textos e imagens surjam, como decorrências dessa interação. Isso é criação? Sim, no sentido geral da palavra, mas isso não parece suficiente — soa raso ou banal. Imaginamos que exista — e procuramos produzir — um tipo de criação que se destaque, que seja de alguma forma mais sublime, mais pura, mais verdadeira. É comum que essa se torne a busca de quem quer criar de fato, seja na área que for.

Essa busca pelo que estamos chamando de sublime implica que a nossa criação diária, por algum motivo, não é suficiente. Talvez seja porque nossa criação diária está impregnada dos nossos condicionamentos, censuras e bloqueios. Reprocessamos ideias, repetimos velhas fórmulas, decidimos sobre aquilo que mostramos baseados no nosso receio — ou no nosso desejo — da opinião dos outros. Ao perceber isso, tentamos o diferente, alguma forma de libertação, de autonomia. Mas, na maioria das vezes, falhamos, pois buscamos o diferente fazendo igual.

Tentamos, por exemplo, ser originais. Não há nada mais comum do que tentar ser original. Ao buscar algo novo, estamos totalmente presos ao velho. Como posso ser honesto se estou preocupado com a originalidade? Estou olhando para fora, para o passado, para os outros, procurando uma brecha e tentando adequar o que eu faço a uma lacuna externa. Dessa forma, nos identificamos através da negação, e a obra que surge disso já está totalmente contaminada por tudo aquilo que ela pretende negar.

Ou pior, tentamos usar os mesmos métodos de outra pessoa. Procuramos oficinas, lemos livros, na esperança de que alguém nos dê a fórmula ou o modelo para fazer as coisas funcionarem. “Vá por esse caminho”, “siga por aquele”, “você está indo bem”, é o que queremos ouvir. Essas fórmulas podem até ajudar você a re-produzir obras que servem para um determinado fim, como reproduzir uma determinada estética, chamar a atenção, chocar, ou o que for. Mas é uma mera repetição. Quando você busca, por exemplo, uma maneira de fazer com que as pessoas gostem das suas fotos, você perdeu qualquer possibilidade de criação real. Ainda que você consiga fazer com que gostem de suas fotos, se a sua criação foi pautada nos moldes daquilo que seria agradável para quem vê, você apenas produziu mecanicamente.

Oliver Hammond
Oliver Hammond

Você não pode receber uma fórmula para a criatividade, pois a criação sincera é um percurso pessoal. Ele não pode ser moldado, acelerado ou conduzido. Você precisa estar consciente e atento ao seu próprio funcionamento: como você pensa, quais são seus desejos, quais são seus medos. Quais armadilhas você coloca para si mesmo? Quais são seus bloqueios? O que, realmente, lá no fundo, você quer com a sua arte, com a sua fotografia? Ninguém pode dar uma receita, uma resposta pronta nem percorrer esse processo por você. O máximo que está ao alcance de um professor, um livro ou curso é fazer essas perguntas, é provocar, para que você percorra o caminho.

O mais importante nesse processo é a abertura que precisamos ter. Pois você não sabe aonde esse caminho vai lhe levar. Pode ser que o resultado seja de criações que não interessem a ninguém, que não tenham valor comercial. Pode ser que no fim desse processo, você não queira mais fazer o que imaginava querer no começo. Por isso, qualquer pré-concepção, qualquer ideia anterior sobre aonde se quer chegar só atrapalhará o processo. Uma grande — e árdua — dose de abandono das próprias ambições e regras é necessária.

Na fotografia, essa atividade pode ser ainda mais difícil. Pois a facilidade da fotografia dificulta a profundidade de uma criação sincera. Não importa se você usa uma câmera de celular ou uma topo de linha, ela sempre verá as coisas de seu jeito particular, o jeito para o qual ela foi programada. De qualquer forma, o trabalho a ser feito mesmo não é com a câmera, nem com a luz, nem com o assunto. É consigo mesmo, é o trabalho mental, a observação de si, o abandono dos velhos condicionamentos, das fugas fáceis, dos desejos superficiais. A fotografia, ou qualquer outra criação, estará no fim desse processo, que, se percorrido com afinco, resulta na sinceridade. Nesse fim, a obra resultante é o menos importante. O que se ganha mesmo é a coragem de ter olhado para si mesmo.

Foto do cabeçalho: Ben Collins

Satisfação não garantida

Temos grandes expectativas em relação à vida. Esperamos e lutamos para ter momentos de grande felicidade, êxtase, euforia. Abominamos o tédio, a monotonia, o ordinário. Queremos o especial sempre. Durante a semana, queremos que o fim de semana chegue. Durante o ano, queremos que cheguem as férias. Quando estamos em casa, desejamos o momento em que poderemos viajar. Se estamos sozinhos, torcemos pela hora em que estaremos com outros. No trânsito, ansiamos pelo momento em que chegaremos. Ficamos ansiosos à espera da nossa vez.

Certos autores na psicologia defendem que vivemos em constante falta. Há sempre uma coisa que poderia ser melhor, uma situação que poderia ser diferente, um incômodo que poderia não existir. A falta gera desejo, movimento, nos impele à ação, na tentativa de suprir essa carência. E aí vamos atrás de dinheiro, de pessoas, de lugares, de experiências. Às vezes, chegamos bem perto dessa satisfação. Conseguimos o que queremos e, por alguns instantes, temos paz. Mas ser humano não é fácil: a satisfação é sempre temporária. Por mais que tentemos nos agarrar, a paz escapa por entre nossos dedos e nos colocamos em movimento de novo. Para piorar, parece que os prazeres que experimentamos nunca são iguais à primeira vez, em que ele é desconhecido e inesperado. Passamos por uma situação boa, mas ao buscá-la novamente, ela não é mais tão completa. Há sempre um quê de frustração. Para conseguir o mesmo patamar de bem estar, precisamos de mais e mais, enquanto a tendência da repetição é ter menos. Não é à toa que alguns psicanalistas tinham uma visão bastante pessimista sobre a existência humana: as nossas únicas opções são a insatisfação ou a resignação.


Toni Palau 

A fotografia, enquanto atividade humana, não está livre desse paradigma. A busca pela satisfação, pelo melhor possível, pela completude pode afetá-la em vários níveis, como na forma como lidamos com os equipamentos ou no ato fotográfico em si. O marketing de qualquer empresa, incluindo fabricantes de câmeras, sabem explorar isso muito bem. Para ter a melhor foto, precisamos da melhor câmera. Mas isso não existe. Mesmo que você compre a Leica ou a Hasselblad top de linha, a satisfação durará, no máximo, até o lançamento do próximo modelo top de linha que deixará a sua câmera obsoleta. E nunca os fabricantes lançarão um modelo completo, pelo simples motivo que, se o fizerem, não venderão mais câmeras.

Independentemente do equipamento fotográfico, também fazemos o possível pela melhor imagem. Viajamos grandes distâncias, esperamos pela melhor luz, ajustamos minuciosamente a configuração de um estúdio, procuramos as paisagens mais fotogênicas. Tudo pela fotografia perfeita. E, às vezes, conseguimos uma dessas, que acreditamos ser o ápice da nossa prática. Colocamos a foto na parede, recebemos elogios, postamos na internet e pipocam duzentos “curtiu”. E o que fazemos em seguida? Vamos procurar outra atividade? Damo-nos por satisfeitos? Não, passamos a pensar em repetir o feito, na próxima foto perfeita. Queremos trezentos “curtiu”, porque de repente duzentos já não parecem suficientes. E continuamos num ciclo sem fim. É esse mecanismo que faz a humanidade caminhar, sendo tão bem explorado pela lógica capitalista.

Há uma alternativa? Boa pergunta. Devemos desistir, nos resignar, parar? Talvez. A única coisa mais certa em relação ao que fazer com isso é ter consciência que a “foto perfeita” é inalcançável, pelas limitações da fotografia e pela nossa própria natureza insatisfeita. Teremos, no máximo, alguns momentos de glória que não perdurarão. Parece uma perspectiva pessimista, mas que também pode ser libertadora. Se a perfeição é inatingível, então podemos abrir mão de certas coisas: não precisamos mais do equipamento mais caro, da luz totalmente ideal, da paisagem mais estonteante. Podemos dar mais atenção e valor ao simples, ao ordinário, ao monótono. Afinal de contas, 99% da vida são feitos disso.

Fotografia: tributo à impermanência

A psicologia diz que o ser humano, ao se comportar voluntariamente, o faz basicamente por dois motivos: obter consequências agradáveis ou evitar/fugir de situações desagradáveis. Cada ação humana, no entanto, é muito complexa e geralmente tem múltiplos fatores envolvidos. Mas as premissas básicas são essas. Não seria demais dizer que, em geral, passamos os nossos dias buscando prazer e fugindo da dor. Quando não conseguimos evitar as situações que nos incomodam, nos sentimos tristes e irritados.

Mas qual é a nossa tendência ao nos encontrarmos numa situação prazerosa, como estar com alguém querido, assistir a um bom filme ou contemplar uma paisagem visualmente estimulante? O movimento é de tentar perpetuar o momento, buscar garantias de que ele continuará ou se repetirá. É muito difícil simplesmente nos satisfazermos com a situação em si: preocupamo-nos com o futuro e com formas de fazer que ela, de alguma forma, dure para sempre. Na nossa cultura, somos lembrados disso o tempo todo. Consumimos desenfreadamente a fim de buscar a satisfação que, quando ocorre, dura muito pouco; na tentativa de perpetuá-la ou mantê-la, voltamos a consumir, num ciclo sem fim.


Justin De La Ornellas

Dentre os diversos aspectos da fotografia – ou, nesse caso, do fotografar – está justamente essa tentativa de manter as coisas como elas são num determinado momento especial. Quando viajamos, nos deparamos com diversos cenários que nos causam boas sensações, seja pelo espetáculo visual, cultural ou histórico. E tentamos levar um pouco disso conosco, através das fotografias. Quando estamos numa festa ou numa reunião de amigos, fotografamos, em parte, em função do desejo de manter um pouco da alegria que é se estar com as pessoas de quem gostamos.

Entretanto, nada dura para sempre. A forma de ser do mundo é a mudança, a finitude das situações, das relações e até mesmo da natureza em si. Ao nos darmos conta disso, chega a ser irônico que utilizemos um dispositivo que captura uma fatia ínfima do tempo – a câmera fotográfica – na tentativa de perpetuá-la. A fotografia, então, é tão antagônica à natureza de constante mudança das coisas que acaba reforçando a ideia de impermanência. Ao olharmos uma foto, ainda na câmera, no instante seguinte em que ela foi tirada, já podemos ver que aquilo já não existe mais. Cada fotografia torna-se, então, imediatamente, um tributo à impermanência daquilo que ela retrata. Não é à toa que alguns autores associam a fotografia com a morte: de certa forma, ela é um atestado de óbito, ainda que apenas de um determinado momento.