Preconceitos fotográficos

Você pode não admitir, mas tem preconcepções fotográficas. Todos nós temos. Elas são inevitáveis. Elas pairam nas profundezas da mente, escondidas na sombra, quietas no silêncio, esperando. Na visão de uma flor, uma face ou qualquer outra isca fotográfica, as preconcepções se desenrolam em uníssono, como um cardume de peixes, e lhe carregam sem que você perceba. Fugidias e intangíveis, as preconcepções sempre concordam, sempre elogiam, nunca se queixam, nunca criticam. Elas tornam a fotografia algo fácil. Elas liberam você do suor do pensamento, do exercício mental que deixam o cérebro cansado, a mente ardida, a imaginação ofegante. Guiado pelas preconcepções, você só precisa posar o assunto (“sorria”), disparar (“não se mexa”), e se dar um tapinha nas costas (“muito bem”). Por que evitar criaturas tão agradáveis? Porque elas inibem a sua fotografia.

Derek Doeffinger — The Kodak Workshop Series — The Art of Seeing

Nós somos frutos dos nossos condicionamentos. A forma como agimos e pensamos está de acordo com aquilo que nos foi ensinado, com o que vimos nos outros como nossos modelos e com o que aprendemos na nossa história de vida. A partir daí, criamos nossas regras mentais sobre nós, sobre o mundo, sobre o certo e o errado. Quando isso acontece numa área mais específica da nossa atividade, como a fotografia, a rigidez fica mais evidente.

Basta pensar na etapa mais importante de qualquer criação fotográfica: aquilo que decidimos fotografar. É como se tivéssemos, nas nossas mentes, duas caixinhas: a do que é fotografável e o que não é. Como o texto diz, flores, faces e sorrisos são alvos fáceis. E, em tempos de redes sociais, pratos de comida e espelhos de academia também entram na lista. Existe apenas uma parcela de coisas e experiências que enxergamos como ‘fotografáveis’.

Foto de pawel szvmanski

Outra esfera das nossas preconcepções — ou preconceitos — fotográficas se refere a como fotografar. Seja utilizando uma câmera dedicada no modo manual, com lentes fixas ou o próprio celular, costumamos ter um modo de fazer as fotos. Posso apensas usar grandes aberturas para ter desfoque de fundo, ou inclinar o smartphone de uma certa forma para o melhor ângulo na selfie.

Tudo isso porque o nosso preconceito fotográfico estabelece que existe um modelo daquilo que é aceitável numa fotografia. O assunto, a forma e a estética esperada definem se a fotografia vai para a caixinha mental da aprovação, do bom, do certo ou da desaprovação, do ruim, do errado. Nós estamos o tempo todo julgando e classificando aquilo que vemos e fazemos, bem como aquilo que os outros são e fazem.

Como essas ideias são tão pessoais e rígidas, fica muito difícil apreciar quem faz algo diferente, seja no assunto, na forma ou na estética. Essa dicotomia na hora de ver torna isso praticamente impossível, pois é como se o fato de eu apreciar o diferente invalidasse aquilo que eu faço. Como geralmente só existem duas caixas, a do bom e a do ruim, se algo está numa caixa, o diferente daquilo obrigatoriamente teria que estar na outra. Daí a nossa incompreensão e intolerância.

É quase desnecessário dizer que é por isso que os bons fotógrafos — e os bons manuais de fotografia — insistem na experimentação, em sair da zona de conforto, em descondicionar o olhar. Só dessa forma será possível uma fotografia desinibida, sem medo e criativa. É claro, eu continuo achando que o sorriso do meu bebê de seis meses é a cena mais fotografável do mundo, mas se eu realmente quiser buscar uma fotografia expressiva, preciso perceber as minhas caixinhas mentais e fazer o máximo para ir além delas.

Originalidade e cópia

A visão que temos da originalidade, da criatividade e do processo de criação artística de forma geral talvez seja um pouco idealizada. Pensamos que a criatividade é algo que brota de dentro de nós, que a originalidade se deve a uma genialidade em pensar o que nunca se pensou antes. E que o artista é essa pessoa que gera, do nada, uma série de obras incríveis. Encarar esses processos dessa forma acaba sendo um tiro no pé para quem quer criar, pois ele pode procurar nos lugares errados algo que simplesmente não está lá.

Sejamos honestos: nós não criamos. Nós copiamos, roubamos ideias, adaptamos conceitos que ouvimos dos outros. O cara “criativo” é aquele que consegue remixar tudo que absorveu e produzir uma mistura diferente, uma cópia mais elaborada. Nada é criado do zero. E não há nada de errado com isso. É assim que o processo criativo funciona, e quanto mais cedo entendermos isso, melhor podemos produzir.

Para escrever um texto, uso palavras que não criei, apenas aprendi. Escrevo na forma em que fui ensinado — sou grato a meus professores de português e redação, lá da época do colégio — e na forma que absorvi de tudo que já li até hoje. Para fazer uma foto, uso uma câmera, que não fui eu quem criei, fotografo um mundo, que também não fui eu que criei, utilizo regras e conceitos de outras pessoas sobre o que é bonito, o que é válido, o que é significativo. Uso receitas, regras e materiais externos para escrever e fotografar. Mesmo assim, gostamos de dizer que “criei uma história”, “criei uma foto”. O engraçado é que posso usar da mesma forma uma receita, feijão, cebola, alho e carne de porco, mas não digo que “criei” uma feijoada.

Não há nada exclusivamente meu naquilo que faço. O que eu chamo de “eu” nada mais é do que a soma e a mescla de todas essas influências que recebi. Quando recebo um elogio por um texto ou uma foto, meu ego se alegra e quer tomar para si o mérito, mas sei que quem deveria ser elogiado são meus professores, amigos, familiares e desconhecidos de quem roubei, mesclei e reproduzi a forma de fotografar ou de escrever. E, por sua vez, o mérito também não é deles, mas sim de quem os influenciou.

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Ian

Isso que dizer que, quando se quer fomentar o próprio processo criativo, quando se busca inspiração, não adianta muito ficar consigo mesmo, ruminando ideias até que saia algo que valha a pena. Faz muito mais sentido procurar algo que se gosta e tentar copiar. Ver exposições, livros, olhar para o trabalho de fotógrafos admirados, e tentar fazer igual. Se você copiar bem e bastante, de fontes diferentes, um dia terá uma produção significativa e que será vista como original, pois você produzirá um remix único de tudo aquilo que copiou. E aí, se alguém quiser copiar suas fotos, tome isso como um reconhecimento, e não como uma ofensa. Primeiro, porque 99% das fotos que são feitas são simplesmente ignoradas. Segundo, porque a sua foto não é de fato sua, você já a roubou antes de outros.

A nossa tendência é não gostar muito da ideia de que somos fruto das nossas influências. Gostamos de pensar que somos únicos, especiais, que a nossa criatividade é algo que possuímos, como se pudéssemos criar a criatividade por conta própria. Nosso ego não gosta de dividir os louros com os outros. Mas isso é uma mera ilusão. Tudo que “criamos”, criamos a partir do que já existe, nos apoiando no que foi feito antes. Cada um de nós coloca um pequeno tijolo numa parede gigantesca que é essa criação cultural humana. Nosso tijolo se apoia nos anteriores e servirá de apoio para os posteriores.

Cada texto que escrevemos, cada foto que fazemos, tem embutidos em si 10 mil anos de civilização.

Só a nossa soberba egocêntrica é capaz de nos fazer passar por cima disso para dizer que aquilo que crio é exclusivamente “meu”. É interessante tentar abandonar as nossas restrições egóicas e nos permitirmos copiar, nos apoiar conscientemente nas nossas influências e a enxergar a nossa própria produção como um trabalho coletivo, não algo que é exclusivamente nosso.

P.S.: A ideia desse post foi roubada motivada pelo livro “Steal Like an Artist”, de Austin Kleon, que me foi indicado pela Mariana Rebello.

Perplexidade

É da nossa natureza buscar respostas. Quando fazemos perguntas, queremos soluções, definições, regras. Qual a melhor câmera? Como fazer esse tipo de foto? Que tipo de fotógrafo eu sou? Do que gosto mais? Qual o jeito certo de tratar uma imagem? Quando encontramos respostas para as nossas perguntas, anotamo-nas com satisfação no nosso livro mental de regras e dogmas e seguimos em frente, consultando-as sempre que necessário e raramente as alterando.

Ter o nosso livro de regras conforta. Sentimos que as coisas são estáveis, estabelecidas e seguras. Sabemos o que queremos, para onde vamos e o que nos agrada. É claro que ter clareza sobre o que fazemos pode ser muito útil, especialmente quando trabalhamos com fotografia e precisamos ser eficientes no cumprimento das demandas do dia a dia. Ainda assim, não podemos deixar de considerar o outro lado da nossa busca por respostas definitivas.

A desvantagem mais óbvia de estabelecer uma forma rígida de ver e fazer a fotografia é que isso mina a criatividade. Criar envolve, necessariamente, a experimentação, a tentativa e o erro, a utilização de métodos alternativos. Quando pensamos invariavelmente que “retratos devem ter fundo desfocado”, “paisagens devem ser nítidas”, “cores devem ser reais”, restringimos enormemente as possibilidades que a fotografia oferece. Considerando, ainda, que com o digital a experimentação não custa nada, não tentar o diferente praticamente não faz sentido. Temos dificuldade em experimentar porque se abalarmos nossas regras, abalaremos nossa concepção de mundo, o que nos gera desconforto. Nossa tendência é permanecer naquilo que acreditamos ser seguro.

A partir disso, podemos ir um pouco mais fundo e questionar a nossa própria maneira de questionar. Por que precisamos necessariamente de respostas? Por que buscamos sempre a afirmativa? Talvez a alternativa mais relevante para mudar e nos permitir ser mais criativos seja justamente conseguirmos ficar mais confortáveis com a incerteza. Até porque, se pensarmos bem, apenas criamos ilusões de certeza e estabilidade. As coisas mudam o tempo todo e o controle que exercemos é ínfimo, quando não é nulo.


Konstantin Merenkov

Então, podemos experimentar nos contentar com as questões, sem perseguir e nos prender em respostas definitivas.

– Qual a melhor maneira de fazer tal foto?
– Existem infinitas maneiras e nenhuma é melhor.

– Qual a melhor câmera?
– Qualquer câmera é boa.

– De que tipo de fotografia eu gosto?
– Hoje é uma, amanhã será outra.

– O que torna uma foto boa?
– Não há boas fotos. Nem fotos ruins.

Acredito que a fotografia depende do espanto com o mundo, com a perplexidade. Nosso olhar para as coisas é uma grande pergunta. A resposta que acreditamos encontrar é, na verdade, uma limitação. Fotografar é uma forma de lidarmos com essa questão, com essa perplexidade, com o encanto que as coisas nos provocam. Não precisamos definir nada. Podemos apenas contemplar e transformar nossas perguntas em imagens, abrindo mão das palavras.

Flusser e o mito da criatividade

Poderíamos tomar “O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade” (São Paulo, Annablume) e abordar diversas questões que se relacionam com a fotografia nesse profético livro de filosofia escrito por Vilém Flusser em 1985. Estão presentes a questão da superficialidade das imagens técnicas (caracterizadas na fotografia, televisões, computadores, filmes), a da crescente entropia de uma sociedade que se pulveriza e abandona os valores já inúteis para o nosso tempo e dificuldade em imaginarmos um mundo sem as estruturas que estão se desintegrando. Por conta de todas essas questões, considero o ensaio, sucessor de “Filosofia da Caixa Preta“, uma leitura obrigatória não só para aqueles que querem entender melhor o papel da fotografia, mas também alguns aspectos da sociedade atual.

No entanto, achei interessante abordar  um aspecto do livro estritamente ligado à produção de imagens dentro do contexto de comunicação em massa e do mundo conectado no qual vivemos. Na página 104, dentro do capítulo “Criar”, o autor argumenta contra um dos mitos em relação à produção cultural ainda muito arraigados no senso comum, o mito do criador, do gênio. Dois parágrafos elucidativos seguem abaixo.

the dance of the dark figures
Drew Baker

“Toda informação se produz como síntese de informações precedentes, por diálogo que troca bits de informação para conseguir informação nova. O mito do autor pressupõe que o ‘fundador’ (o gênio, o Grande Homem) produz informação nova a partir do nada (da ‘fonte’). O autor mítico cria na solidão da geleira, nos mais altos picos (Nietzsche). Por certo, muitos mitólogos da criatividade admitirão que o autor está inserido em determinado contexto cultural do qual sorve as informações que o nutrem, mas também afirmarão que tais informações são elaboradas pelo autor em diálogo interno e solitário, e que há algo misterioso no íntimo do autor que faz com que algo de inteiramente novo se acrescente às informações recebidas. Destarte tais mitólogos projetam visão da história que passa a ser uma série de picos altos que se elevam sobre a bruma amorfa da planície a partir da qual os picos se nutrem. Ora, a informática torna inoperante essa visão da história.

Atualmente, a massa das informações disponíveis adquiriu dimensões astronômicas: não cabe mais em memórias individuais, por mais ‘geniais’ que sejam. Por mais ‘genial’ que seja, a memória individual não pode armazenar senão parcelas das informações disponíveis. E tais parcelas armazenadas aumentaram, elas também, de modo que o consumidor médio detém atualmente mais informações do que o ‘gênio’ renascentista. Tais parcelas de informação exigem processamento de dados para serem sintetizadas em informação nova: a memória humana se revela lenta demais para poder processar semelhante quantidade de dados. O diálogo interno e solitário se tornou inoperante. Exigem-se grupos de memórias individuais assistidos por memórias artificiais (laboratórios, comités, grupos de pesquisa e de realização) e, estes sim, produzem informação nova em quantidade e qualidade jamais sonhada no passado. De forma que o autor, o Grande Homem, não apenas se tornou redundante como estritamente impossível.”

Oblivion Is All We Crave
Dead Air

Mesmo a noção inicial de que seria possível uma criação a partir do nada, apenas de diálogo interior, já é questionável. Aquele que produz qualquer tipo de imagem ou peça cultural bebe do seu tempo, dos seus antecessores, dos mestres, daqueles com quem dialoga. No entanto, ainda que essa concepção um dia tenha feito sentido, torna-se claro, pelos argumentos acima, que frente à quantidade de informações e possibilidades que temos hoje, criar sozinho dificilmente levaria a uma produção de qualidade e em boa quantidade.

Flusser argumenta ainda que as formas de comunicação atuais permitem que cada um seja um potencial produtor que dialoga com muitos outros, aumentando as chances de gerar informações (imagens, trabalhos, conceitos) novas e relevantes. No entanto, o autor não é tão otimista: essa mesma estrutura que possibilitaria a todos serem participantes também pode levar a sociedade à entropia, ao fim em si mesmo, à constante repetição de informações que “parecem” novas, mas que na verdade são uma tediosa cultura massificante de entretenimento vazio. Naturalmente, o autor considera essa última possibilidade mais provável. Haja visto os programas de televisão, como novelas ou futebol que, aparentemente, são novos a cada dia, mas que na verdade são uma repetição infinita das mesmas coisas. Não é difícil imaginar o mesmo acontecendo com a fotografia. Basta acessar as galerias de fotos na internet para vermos fotografias espetaculares sendo produzidas a cada segundo, apenas para serem esquecidas no segundo seguinte. Contentamo-nos com microespetáculos que não nos tiram da letargia induzida por uma torrente cada vez maior de informações massificantes.


Oliver Zelinski

Entretanto, com a Internet, ícone maior do conceito de “telemática” proposto pelo autor (imagem técnica + telecomunicação), teríamos uma ferramenta poderosíssima para combater esse movimento. Temos sites, fóruns, blogs, numa rede imensa que permite que criemos grupos de articuladores a fim de produzir diálogos e trabalhos novos. Essa é a real forma de criação atual. No entanto, Flusser avisa: para isso, é preciso esquivar-se do entretenimento, dos microespetáculos das imagens técnicas. Em vez de preocupar-se em produzir imagens fantásticas, bonitas, vistosas, é preciso afastar-se e falar do processo em si: de como se dá produção e disseminação das imagens, do funcionamento da sociedade, numa tentativa de esclarecer quais são os fios que tecem essa rede e usá-la a favor do nosso aprimoramento, e não da repetição de padrões. Ou seja, a opção está entre continuar alimentando a roda de mesmice ou criar uma metalinguagem que nos possibilite ver, de fato, o que acontece no mundo.