A criação sincera

Na China antiga, antes que um artista começasse a pintar qualquer coisa — uma árvore, por exemplo — ele sentava-se na frente dela por dias, meses, anos, não importa quanto, até que ele fosse a árvore. Ele não se identificava com a árvore, ele era a árvore. Isso significa que não havia espaço entre ele e a árvore, nenhum espaço entre o observador e o observado, nenhum experienciador experienciando a beleza, o movimento, a sombra, a profundidade de uma folha, a qualidade da cor. Ele era a árvore totalmente, e apenas nesse estado ele podia pintar.
Krishnamurti

O que será que nós chamamos de criação? O que significa a palavra criatividade? Dependendo da nossa concepção sobre esses conceitos, podemos dizer que nós criamos o tempo todo. Ao escrevermos, ao falarmos, ao fotografarmos. Estamos constantemente interagindo com o mundo e uns com os outros de forma que ideias, textos e imagens surjam, como decorrências dessa interação. Isso é criação? Sim, no sentido geral da palavra, mas isso não parece suficiente — soa raso ou banal. Imaginamos que exista — e procuramos produzir — um tipo de criação que se destaque, que seja de alguma forma mais sublime, mais pura, mais verdadeira. É comum que essa se torne a busca de quem quer criar de fato, seja na área que for.

Essa busca pelo que estamos chamando de sublime implica que a nossa criação diária, por algum motivo, não é suficiente. Talvez seja porque nossa criação diária está impregnada dos nossos condicionamentos, censuras e bloqueios. Reprocessamos ideias, repetimos velhas fórmulas, decidimos sobre aquilo que mostramos baseados no nosso receio — ou no nosso desejo — da opinião dos outros. Ao perceber isso, tentamos o diferente, alguma forma de libertação, de autonomia. Mas, na maioria das vezes, falhamos, pois buscamos o diferente fazendo igual.

Tentamos, por exemplo, ser originais. Não há nada mais comum do que tentar ser original. Ao buscar algo novo, estamos totalmente presos ao velho. Como posso ser honesto se estou preocupado com a originalidade? Estou olhando para fora, para o passado, para os outros, procurando uma brecha e tentando adequar o que eu faço a uma lacuna externa. Dessa forma, nos identificamos através da negação, e a obra que surge disso já está totalmente contaminada por tudo aquilo que ela pretende negar.

Ou pior, tentamos usar os mesmos métodos de outra pessoa. Procuramos oficinas, lemos livros, na esperança de que alguém nos dê a fórmula ou o modelo para fazer as coisas funcionarem. “Vá por esse caminho”, “siga por aquele”, “você está indo bem”, é o que queremos ouvir. Essas fórmulas podem até ajudar você a re-produzir obras que servem para um determinado fim, como reproduzir uma determinada estética, chamar a atenção, chocar, ou o que for. Mas é uma mera repetição. Quando você busca, por exemplo, uma maneira de fazer com que as pessoas gostem das suas fotos, você perdeu qualquer possibilidade de criação real. Ainda que você consiga fazer com que gostem de suas fotos, se a sua criação foi pautada nos moldes daquilo que seria agradável para quem vê, você apenas produziu mecanicamente.

Oliver Hammond
Oliver Hammond

Você não pode receber uma fórmula para a criatividade, pois a criação sincera é um percurso pessoal. Ele não pode ser moldado, acelerado ou conduzido. Você precisa estar consciente e atento ao seu próprio funcionamento: como você pensa, quais são seus desejos, quais são seus medos. Quais armadilhas você coloca para si mesmo? Quais são seus bloqueios? O que, realmente, lá no fundo, você quer com a sua arte, com a sua fotografia? Ninguém pode dar uma receita, uma resposta pronta nem percorrer esse processo por você. O máximo que está ao alcance de um professor, um livro ou curso é fazer essas perguntas, é provocar, para que você percorra o caminho.

O mais importante nesse processo é a abertura que precisamos ter. Pois você não sabe aonde esse caminho vai lhe levar. Pode ser que o resultado seja de criações que não interessem a ninguém, que não tenham valor comercial. Pode ser que no fim desse processo, você não queira mais fazer o que imaginava querer no começo. Por isso, qualquer pré-concepção, qualquer ideia anterior sobre aonde se quer chegar só atrapalhará o processo. Uma grande — e árdua — dose de abandono das próprias ambições e regras é necessária.

Na fotografia, essa atividade pode ser ainda mais difícil. Pois a facilidade da fotografia dificulta a profundidade de uma criação sincera. Não importa se você usa uma câmera de celular ou uma topo de linha, ela sempre verá as coisas de seu jeito particular, o jeito para o qual ela foi programada. De qualquer forma, o trabalho a ser feito mesmo não é com a câmera, nem com a luz, nem com o assunto. É consigo mesmo, é o trabalho mental, a observação de si, o abandono dos velhos condicionamentos, das fugas fáceis, dos desejos superficiais. A fotografia, ou qualquer outra criação, estará no fim desse processo, que, se percorrido com afinco, resulta na sinceridade. Nesse fim, a obra resultante é o menos importante. O que se ganha mesmo é a coragem de ter olhado para si mesmo.

Foto do cabeçalho: Ben Collins

Estilo fotográfico

Nós gostamos de criar conceitos. Nomes, categorias, rótulos. Sua função é nos ajudar a descrever e entender o mundo. Olhamos para o mundo e, a partir dele, inventamos palavras que significam algo. É muito prático: em vez de termos que descrever ou olhar para o mundo toda vez que queremos nos referir a ele, podemos usar apenas uma ou duas palavras e pronto. Mas, com o tempo, esquecemos que a linguagem não é o mundo, e que os conceitos que criamos não existem por conta própria: eles são apenas uma representação simplificada de algo que vai muito além.

Um desses conceitos é o de estilo na criação fotográfica. Olhamos para os trabalhos de alguns fotógrafos e percebemos que há algo ali. Um padrão, uma repetição, uma conjugação de elementos. No assunto, na estética, na forma de fazer. Algo que, após vermos algumas obras, nos permite identificar outras. O estilo é aquilo que torna as obras reconhecíveis. É a coesão.

Toffee Maky
Toffee Maky

Muitos fotógrafos iniciantes acreditam que precisam criar, inventar ou descobrir seu estilo, como se o estilo surgisse antes da produção. Querer encontrar um estilo antes de se aprofundar no fazer fotográfico é como querer estar bronzeado antes de sair no sol. É colocar o carro na frente dos bois.

Esquecem-se que o estilo, como algo isolado, não existe: é apenas uma palavra para descrever uma linha tênue e abstrata que percorre a produção de um autor. Em termos concretos, não há estilo, há apenas o trabalhos. O fotógrafo cria fotografias, ele vê o mundo e o retrata. O que chamamos de estilo é uma criação mental, um conceito, uma interpretação que deriva das obras na visão do espectador. Se nos prendermos demais ao conceito de estilo, perderemos o contato com a obra. Pior, podemos artificializar demais a nossa própria fotografia ao querer enquadrá-la em uma ideia sem que haja conteúdo que a sustente.

Se admiramos o “estilo” de um fotógrafo, na verdade admiramos o que ele faz, como ele faz. É a força do seu trabalho. Quando o trabalho é intenso, quando há dedicação, há o resultado. Para quem cria, é o processo que conta. Se olharmos apenas para o resultado, sem entender o caminho até lá, ficaremos perdidos.

Esqueça o estilo e concentre-se na busca. O que existe, o que você faz, o que os outros veem é a sua fotografia. O que chamamos de estilo é apenas uma consequência, que acontece dependendo da força do seu fazer fotográfico. Estilo é o resultado natural de uma busca sincera.

Agradeço ao Eduardo Buscariolli pela conversa que gerou a ideia desse texto.
Imagem do cabeçalho: sciencesque

Inveja fotográfica

Gosto muito de ver fotografias. Não ligo tanto para fotógrafos famosos, gosto mesmo de ver a produção dos milhares de fotógrafos anônimos que existem por aí. Uma das formas que utilizo para isso é navegar pelo Flickr, por fóruns de fotografia e sites de fotógrafos amadores. Embora na maior parte do tempo eu passe admirando as imagens, reconheço que de vez em quando bate uma “inveja fotográfica”.

A inveja fotográfica é aquela voz no fundo da cabeça que diz coisas como: queria ter feito essa foto, vivido esse momento, estado nesse lugar, ter essa câmera, visto essa luz, conseguido essas cores. Imagino que isso deva ser algo comum entre os que gostam de fotografia e algo meio inevitável. A questão é: o que fazer com isso?

É claro, podemos não fazer nada. Mas sinto que esse tipo de sensação, quando estamos vendo uma foto, nos faz perder a conexão com a fotografia. É como se tirássemos os olhos da imagem e os virássemos para nós mesmos, para nossas faltas, nossos desejos, nossos anseios. Então, quando sentimos a inveja fotográfica, surge uma boa oportunidade para nos encararmos.

Muitas vezes, não conseguimos fazer isso. Não percebemos que a sensação ruim que temos ao ver as fotos do outro tem mais a ver conosco do que com o outro. E aí, a inveja pode se tornar raiva, agressividade ou desdém. Critica-se o trabalho, o equipamento e até o fotógrafo. Uma das situações em que vejo isso com frequência é quando um fotógrafo tem uma proposta artística diferente e consegue reconhecimento. Quando não se consegue “engolir” a repercussão da fotografia do outro, fala-se que o trabalho não tem qualidade técnica, não tem conteúdo, que é de mau gosto e coisas do tipo. Nesses casos, a crítica tem menos a ver com a produção em si e muito mais com as dificuldades de quem está criticando — não raramente, sob a crítica há a inveja da produção ou do sucesso.

Karla Lopez
Karla Lopez

Por outro lado, se reconhecermos que a sensação negativa provocada pelo trabalho do outro tem a ver com nosso próprio ego, há uma oportunidade de mudança. Podemos, por exemplo, usar aquele trabalho como inspiração. Tentar fazer algo parecido, usar o outro como modelo, é algo totalmente válido no campo da criação fotográfica. Se a questão é o equipamento, talvez seja a questão de trocar o equipamento, ou viajar para o lugar em que aquela foto magnífica do outro foi feita.

Mas essas alternativas devem ser consideradas com cuidado. Pois podemos nos perder nesse processo de pura imitação, comprando câmera atrás de câmera, ficando obcecados por conseguir uma determinada foto e até esquecendo de viver para registrar tudo em fotografias. Podemos olhar para o outro, mas depois há o momento, fundamental, de olhar para si mesmo e para a própria produção. E aí, entender que não é possível tirar todas as boas fotos do mundo, ter todos os equipamentos, estar em todos os lugares. Percebemos que temos limitações, e ao longo da vida teremos apenas a nossa própria história para contar. Em vez de querer tudo, podemos passar a querer fazer o melhor possível dentro dos nossos limites, dentro daquilo que vivemos de fato — e não do que poderíamos ter vivido.

Se entendermos isso, algo muito interessante acontece: passamos a admirar, sem inveja, o trabalho do outro. Aprendemos a valorizar o diferente, pois vemos que o outro tem seu lugar e nós temos o nosso — e eles não precisam ser conflitantes. A inveja desaparece porque não sentimos mais necessidade de tomar posse da fotografia alheia. Deixamos o outro ser quem ele é e ao mesmo tempo valorizamos o nosso próprio trabalho, pois compreendemos que a nossa produção e a do outro não estão competindo, e sim coexistindo. Aceitamos, enfim, que cada caminho é único.

Foto do cabeçalho: Fatma Gultekin

Autoconhecimento através da fotografia

Quando a fotografia assume um papel de relativa importância na vida de alguém, ela pode ser uma ilustração de como aquela pessoa encara a sua própria existência e o mundo à sua volta. Sendo assim, a fotografia pode ser um instrumento de autoconhecimento. Para tanto, é preciso olhar para a própria produção e, mais importante ainda, para a maneira como a fotografia permite nos relacionar com o mundo. Algumas perguntas podem servir como guia para a compreensão de si através da fotografia, como as que são listadas abaixo. Gostaria de ressaltar, no entanto, que essas são apenas direções iniciais, quase uma brincadeira. Pois o autoconhecimento é algo que demanda tempo, coragem e persistência a fim de conseguir olhar para dentro e reconhecer aquilo que se é de fato, pois não é raro que passemos grande parte da vida fazendo o oposto, que é fugir de nós mesmos.

1. Qual é a sua motivação para fotografar?
Muitas razões podem nos levar a começar a fotografar. O encantamento com a estética da fotografia, com sua expressividade, com sua força. A presença da fotografia é quase universal na nossa cultura. E, de uma forma ou de outra, todo mundo fotografa. Sendo assim, é um passo simples encará-la como uma atividade que nos proporcione algum tipo de significado, ou de sentido. Podemos tentar fazer com que a nossa fotografia fale por nós, expresse nossa visão. Todos nós procuramos por algo, e a arte — no caso, a fotografia — pode ser um pilares em que sustentamos nossa busca.

2. O que você consegue através das suas fotos?
Nem sempre aquilo que nos mantém fotografando foi o que fez com que começássemos a fotografar. No meio do caminho, podemos conquistar o reconhecimento que almejávamos, o que pode ser tornar uma armadilha: pois passamos a ter como objetivo manter o reconhecimento, e por isso passamos a fotografar para agradar, para manter-se num determinado padrão que funcionou. É fácil nos enrijecer e sabotar a própria criatividade quando a fotografia começa a dar certo. Perguntar-se, então, qual a função atual da fotografia na própria vida é uma forma de entender o que valorizamos, o que exerce influência sobre nós e, sobretudo, se o caminho que estamos percorrendo é o que de fato queremos percorrer. Se não for, talvez seja necessário deixar de fotografar apenas para agradar e receber elogios. Entretanto, passa-se a ser mais coerente com a motivação pessoal, resgatando a autenticidade, muitas vezes tendo a rejeição como preço.

Laura Thorne
Laura Thorne

3. O que você fotografa?
Pessoas? Lugares? Detalhes? Formas? Fotografamos aquilo que nos interessa, que nos é importante, que nos diz algo. Em resumo, fotografamos aquilo que vivemos, que experimentamos. Não podemos fotografar algo com o que não estamos tendo contato direto, no momento. Nas nossas fotos encontramos aquilo com o que nos envolvemos.

Às vezes gostaríamos de fotografar algo diferente daquilo que conseguimos de fato fotografar. Sonhamos com fotografar certos lugares, pessoas ou situações. Podemos entender esse desejo como um desejo de que a nossa vida talvez fosse diferente. Perguntar-se “fotografo aquilo que é significativo para mim?”, de certa forma pode significar: “vivo a vida que quero viver?”.

4. Qual a importância da técnica para você?
A forma como fotografamos e como editamos as nossas fotos pode dizer bastante sobre a nossa forma de lidar com as situações da vida, de forma geral. Você fotografa de forma espontânea, despreocupada ou meticulosa, buscando a melhor técnica, a melhor luz, o melhor enquadramento? O quanto você é severo com a qualidade das suas próprias fotos? Você busca controlar o ambiente em que fotografa, montando cenários, criando luzes? Ou apenas fotografa aquilo que vê, do jeito que está lá? Deixa a fotografia como ela sai da câmera ou passa um bom tempo fazendo ajustes nos programas de edição de imagens? Não existe um jeito certo ou errado de abordar a fotografia, do mesmo jeito que não há uma maneira certa de se viver. A questão apenas é identificar qual é a sua maneira.

5. Qual a importância do equipamento para você?
É impossível fotografar sem uma câmera. A forma como nos relacionamos com a nossa fotografia muitas vezes engloba a forma como nos relacionamos com nosso equipamento. Geralmente desenvolvemos um certo apego, pois é a câmera que nos permite registrar aquilo que vivemos ou criar expressões do que sentimos em uma determinada experiência. No entanto, não é raro que a fotografia se torne um mero pretexto para o consumo e a manipulação de aparelhos. Você sabe que está nesse ponto quando passa mais tempo “testando” seus equipamentos do que de fato colocando-os em uso. Quando de fato estamos usando o equipamento para fotografar, ele fica em último plano. Quando fotografamos para usar o equipamento, ele é o protagonista.

Or Hiltch
Or Hiltch

6. O que você faz com as suas fotos?
Depois de fotografar, as fotos podem ter diversos destinos: permanecerem esquecidas em algum HD ou cartão de memória, serem publicadas em redes sociais ou galerias online, impressas, emolduradas, presenteadas, expostas. Olhar para esse aspecto permite esclarecer melhor qual é o papel da fotografia para você: ela pode servir apenas para recordação, para expressão, para buscar reconhecimento ou dinheiro. Mostrar fotografias é uma forma de falar. De que forma você fala? Você monologa, dialoga? Sua fala é simples ou é complexa? O que você tem a dizer? E a sua fotografia, o que diz?

7. O que você vê quando olha para suas fotos?
Quando você olha para suas fotos, você vê a si mesmo. Na maior parte das vezes, você não estará lá — a menos que você seja um aficionado por autorretratos. Ali estará o que você viu, o que você viveu. Quando você percebe o fluxo do tempo, dos interesses, dos lugares e das pessoas cuja luz passou pelas lentes da sua câmera, você tem uma boa impressão disso que chamamos de “eu”. É possível que esse “eu” seja algo ilusório — assim como as fotografias, que também não são a realidade — mas é nessa ideia de continuidade que se baseia nossa identidade.

É bom lembrar, entretanto que há um porém nas fotografias e que nos adverte que talvez não devamos nos apegar demais ao que está ali. A fotografia, por mais fantástica que a possa ser, tem uma limitação crônica: está sempre situada num momento que não é mais. Da mesma forma, você não é mais o que foi ontem, e amanhã será diferente do que é hoje. Conhecer-se significa reconhecer esse fato básico sobre nós mesmos: que o que encontrarmos será sempre algo momentâneo, tal qual um instantâneo fotográfico.

Apague suas fotos

Quando pensamos num artista criando, o que imaginamos? Geralmente, um espaço de trabalho cheio de ferramentas, material de referência, obras completas, incompletas, rascunhos… Sim, muitos rascunhos, estudos, esboços. Mas e na fotografia? Qual o lugar dos rascunhos e esboços?

O problema da fotografia é que não se pode fazer uma foto aos poucos. Antes de se apertar o botão, só se tem uma ideia, e depois, já a foto pronta. Não dá pra fotografar metade da foto e terminar depois. É impossível ir ajustando a cor do céu enquanto a máquina faz a captura. O fato é que na fotografia, um esboço inevitavelmente será uma foto pronta. Qual a diferença, então, entre o esboço e a obra finalizada? A diferença é que o esboço é a foto que você jogará fora.

Muitos criticam a fotografia digital por dizer que na “época do filme” se pensava mais, não se tiravam tantas fotos como se faz hoje. Mas isso acontecia porque cada foto gastava filme, requeria revelação, ampliação e tempo. Ou seja, dava trabalho. Hoje o resultado é instantâneo. É óbvio que, quando as circunstâncias mudam tanto, a maneira de fotografar também muda. Em relação aos esboços, o que se pode dizer é que antigamente o rascunho era mental: o fotógrafo passava mais tempo analisando cena, luz, ângulo, para só então tirar a foto. Além do custo, havia o risco de cometer um erro que só seria detectado com a foto revelada, quando poderia ser tarde demais. Hoje esse cuidado não é mais necessário. Pode-se fotografar, ver o resultado e fazer outra foto com as devidas alterações para obter o resultado que se tem em mente. Um método não é melhor do que o outro, eles são apenas decorrentes das circunstâncias distintas em torno do ato fotográfico.

fluffisch
fluffisch

Ou seja, a fotografia digital permite que façamos rascunhos o tempo todo. O problema é o que já comentamos: o “rascunho” já é uma fotografia pronta e podemos não conseguri ver o rascunho como apenas um rascunho. Até porque quem decide o que é rascunho ou não é o próprio fotógrafo, ao ter em mente o que deseja e descartar aquilo que não é o resultado final. O fotógrafo que não consegue descartar suas fotos-rascunho sem piedade corre o risco de ser como aquela tia que aparece no almoço de domingo com um DVD com as 4000 fotos da sua última viagem, para desespero do resto da família.

A chave para fotografar bem é não ter dó de apagar suas fotos. Livros que trazem folhas de contato de fotógrafos consagrados mostram o nível de seleção que eles tinham com o próprio trabalho. Se no tempo do filme eram necessárias 100 fotos para conseguir uma realmente boa, hoje são necessárias 1000. O que significa que você deve enxergar as outras 999 como esboços que vão para a lata do lixo, do mesmo jeito que o desenhista descarta a maior parte do material que produz enquanto cria. Num mundo em que todo mundo fotografa tudo o tempo todo, aquilo que você não mostra pode contar muito mais do que aquilo que você mostra.

Se você olhar para uma foto e tiver dúvidas sobre se ela é boa, é porque não é. Se você achar que uma foto é boa, mesmo assim talvez ela não seja. Quando uma foto é boa você olha e pensa “essa é uma baita foto!”. E, a menos que essa seja sua impressão, não vale a pena manter – menos ainda mostrar – as suas fotos. Enxergue as fotos descartadas como um passo na jornada para as boas fotos, e não o destino. O destino é aquela foto arrebatadora que nos impressiona, nos comove. E, depois de cada uma dessas, começamos novamente a percorrer o caminho, que pode ser mais longo ou mais curto até mais uma foto significativa. As fotos intermediárias, que fazem parte dessa jornada, são muito importantes para você, mas não precisam ser guardadas: aquilo que elas ensinam fica marcado no seu cérebro, não no seu disco rígido. Apague-as sem medo e valorize apenas aquilo que de fato mostra a qualidade da sua fotografia; do contrário, sua produção corre o risco de se tornar banal, repetitiva e desinteressante.

A eloquência das séries

Nós, fotógrafos amadores ou profissionais, temos uma relação quase de fetiche com a foto perfeita. Usualmente, nossos esforços são voltados para conseguir essa imagem idealizada, seja qual for a nossa forma de fotografar. Pensamos na melhor luz, no melhor equipamento, no momento crucial, no tratamento adequado. Não é à toa: as boas fotografias têm um poder meio mágico de, em apenas um quadro, condensar uma mensagem, uma impressão ou uma cena marcante.

Além disso, temos os nossos modelos: associamos os nomes de grandes fotógrafos a uma ou outra imagem mais conhecida, como se elas pudessem representar toda a obra do artista. É possível que isso tenha se originado na pintura, em que cada quadro é visto isoladamente, ainda que o pintor tenha um mesmo tema nos seus trabalhos. Com isso, tendemos a nos lançar, muitas vezes empenhando um grande esforço, na busca dessa imagem idealizada, aquela foto que nos trará orgulho e irá para a parede, num lugar de destaque.

No entanto, convenhamos, a fotografia é uma prática imensamente mais fácil e rápida do que a pintura. Dificilmente passaremos dias, semanas ou até meses trabalhando numa única foto. Ao contrário, podemos obter uma fotografia em uma ínfima fração de segundo. Podemos, ainda, tirar várias fotos em poucos segundos. Será que essa característica não indica que um caminho mais promissor seja justamente o de criar bons conjuntos de fotografias?

Uma série é um grupo de fotografias que se comunicam e se complementam, seja por serem do mesmo tema, assunto ou por apresentarem uma execução técnica semelhante. Com isso, o processo de criação é totalmente diferente de quando se procura a foto única. O fotógrafo se perguntará: qual será o tema?, quantas fotos terá a série?, como elas dialogarão entre si?, como elas serão apresentadas? Na série, o valor de cada uma das fotos está na sua contribuição para o conjunto, como a peça de um quebra-cabeça. Isso faz com que busquemos menos uma foto perfeita e mais uma parte perfeita tendo em vista o todo.

Séries, obviamente, podem comunicar mais do que apenas uma foto. Mas o segredo para sua força está na coesão. É importante que as imagens tenham relação estreita entre si, seja pelo conteúdo como pela forma. O observador, em vez de se concentrar em apenas uma foto, circulará pelas partes da série, buscando apreender um sentido geral. Esse sentido vem justamente daquilo que une as fotos.

A série seguinte, cujo autor se apresenta com o apelido Sigma.DP2.Kiss.X3, tem como eixo a descrição de um ambiente. Aspectos técnicos, como a luz, as cores e o foco curto ajudam na coesão.

Já o conjunto seguinte, de Mr. Wood, se apoia na técnica não ortodoxa que permeia as fotos. A temática rural, ou seja, o conteúdo, é o elemento secundário por trás da coesão da série.

Dez maneiras de fugir dos clichês

Há milhões de ótimas fotos na Internet. Fotos surpreendentes, bem trabalhadas, expressivas, contundentes. Basta procurar um pouco em qualquer galeria online. É admirável que, mesmo com tantas fotografias já feitas, ainda assim fotógrafos consigam criar ótimas imagens a cada dia, ou a cada minuto. Ao mesmo tempo em que percebo isso, pergunto-me porque a maior parte das pessoas que fotografam têm dificuldades para sair do lugar comum, para arriscar mais e deixar de usar as velhas fórmulas fotográficas: enquadramentos clássicos, fundos desfocados, nitidez no plano principal, exposição correta etc. Em geral, as fotos mas expressivas não se preocupam com a correção, com o método convencional. Reuno aqui alguns exemplos, descrevendo o que cada uma dessas fotos aponta sobre como fotografar bem, indo além das convenções. Continue lendo “Dez maneiras de fugir dos clichês”

Faça-se a luz

Infelizmente para nós, fotógrafos amadores e profissionais, não somos o Deus do Antigo Testamento e não podemos criar luz a partir das nossas palavras. A luz é o elemento essencial da fotografia, e ainda assim temos que nos render aos seus caprichos, acordando de madrugada para capturá-la na sua calidez matinal, ajustando flashes e rebatedores para que ela atenda à nossa imaginação e a tocando com fotômetros a fim de avaliar o seu humor.

Gostamos de acreditar que nossas fotografias são nossas criações. Entretando, não somos pintores. Não exercemos, sobre o mundo visto pela câmera, o controle que gostaríamos. Quem pinta, de fato, é a luz. A única coisa que podemos fazer é reconhecer suas cores, as curvas que ela faz em torno dos objetos e sua nêmesis — a sombra — ambas sempre presentes, irrenconciliáveis. O que podemos fazer, então, é nos curvar aos seus pincéis naturais, recortar suas criações com a câmera e, humildemente, agradecer. Continue lendo “Faça-se a luz”

Sobre autoria

Temos uma tendência a venerar os inventores e seus esforços individuais. Sabemos quem inventou o avião, o telefone, o rádio, a fotografia. Ao pensar nessas pessoas, temos a impressão de que elas criaram, do nada, objetos revolucionários. Olhando de perto, no entanto, podemos perceber que não é bem assim. Por que foram os irmãos Wright e não Leonardo da Vinci que inventou o avião? Entre outros motivos, porque só no início do século passado havia tecnologia suficiente para possibilitar a construção de um aparelho que voasse, ainda que da Vinci dominasse os conceitos necessários para idealizar tal objeto. Quem possibilitou a existência dessa tecnologia? Diversos outros anônimos que aprimoraram técnicas e materiais, por exemplo.

A invenção, assim, não é obra de apenas uma ou duas pessoas. Qualquer tipo de invento é uma somatória de esforços que ocorre durante anos, décadas e, não raro, até séculos. Quando dizemos alguém inventou alguma coisa, estamos reconhecendo apenas aquele que realizou a última etapa do processo, sem olhar para todo o caminho percorrido.


Stephan Olsen

Se formos a fundo nessa concepção, veremos que qualquer tipo de criação humana cai no mesmo tipo de funcionamento. Mesmo as criações intelectuais consideradas artísticas. Quando escrevo um texto, produzo algo impregnado de todas as referências que já tive: da forma dos meus pais falarem, de todos os livros que li, das minhas aulas de gramática e redação, do que leio diariamente na internet, dos modelos que tive ao longo de toda a minha vida. Mesmo os assuntos sobre os quais me interesso têm a ver com aquilo que me foi apresentado por outras pessoas; não nasci com nada disso programado. Tudo o que fazemos é resultado de milhões de condições prévias que moldam o comportamento atual. Por mais que queiramos nos ver como seres únicos e especiais, não passamos do amálgama dos genes e ideias que vieram de outras pessoas.

Na fotografia não poderia ser diferente. Temos fotógrafos que admiramos, fotografias que nos inspiram, técnicas que aprendemos. Tudo isso foi criado por outras pessoas. E o que elas criaram foi influenciado por outras pessoas antes delas. Não há uma criação individual e totalmente autônoma, a partir do zero. Tomamos emprestado muito mais do que admitimos, ou sequer percebemos. Copiamos uns aos outros, querendo ou não.


José Pedro Costa

Qual é, então, o mérito do autor? Se ele apenas reorganiza ideias e conceitos pré-existentes, geralmente adicionando pouco ao que já foi construído, pode ele querer dominar aquilo que produziu? Seria o mesmo que eu tomar um muro em construção, adicionar um tijolo e dizer que o muro é meu. Pode-se argumentar que quem escreve, cria ou produz arte coloca seu tempo e esforço naquela produção. É uma posição válida e acho que isso justifica a existência do crédito (fui eu quem colocou este tijolo). Mas não acho que isso é suficiente para justificar a posse sobre todo o muro, ou seja, o conteúdo.

Uma das formas que encontrei para lidar com essa questão foi liberar todos os meus textos e fotos sob Creative Commons. Mas mesmo essa minha atitude pode ser analisada em função das influências que tive: sendo um acadêmico que desenvolve atividades em universidade pública, é de praxe entender que o que produzo deve voltar, de forma irrestrita, para quem o financiou. Da mesma forma, como entendo que tudo o que escrevo sobre fotografia não é mais do que uma reorganização de outras ideias, não vejo sentido em querer assumir, sobre os artigos, uma ideia de posse. O mesmo vale para a minha fotografia. Por mais que tenha uma relação de afeição com algumas de minhas produções, nunca consegui senti-las como absolutamente minhas. Quando olho para minhas fotos, vejo conceitos elaborados por outra pessoa; técnicas aprendidas com outras pessoas; outros fotógrafos tomados como modelo. Tomar posse da minha própria produção como algo autônomo e independente seria injusto com todos eles.

Sendo assim, talvez seja mais útil, para o autor, em vez de vangloriar seus feitos individuais e buscar a originalidade, entender melhor quais são as suas referências e influências. Se enxergarmos a nós mesmos – assim como nossos trabalhos – como resultado de milhões de condições prévias, não há outro caminho para nos entendermos e àquilo que fazemos a não ser identificar essas condições. E aí, pode ser que o sentimento de posse com o que produzimos caia por terra e faça mais sentido devolvermos livremente para os outros tudo aquilo que inevitavelmente pegamos.